Cristovam Buarque: Filosofia da construção

Até recentemente, havia filosofias que empolgavam os debates políticos

Todo político sem causa é um corrupto em potencial: usa o poder para enriquecer ou para ficar no poder. Por isso, a escassez de bons filósofos é tão grave quanto o excesso de maus políticos.

Até recentemente, havia filosofias que empolgavam os debates políticos: capitalismo, socialismo, comunismo, liberalismo, desenvolvimentismo, nacionalismo, oferecendo bases filosóficas que justifiquem as causas das lutas dos políticos.

Com a globalização, robotização, comunicação instantânea, crise ecológica, pobreza persistente, desigualdade crescente, migração em massa, fracasso do socialismo e injustiças do capitalismo, essas filosofias ficaram ultrapassadas, sem bandeiras claras no horizonte filosófico e político.

Neste vazio de propostas, surgem três alternativas possíveis para orientar o comportamento político. A “filosofia do conformismo”, justificando aqueles que assistem sem reação nem alternativa à marcha da História em direção à modernidade técnica descontrolada, aceitando o progresso global provocar desemprego estrutural, separar as pessoas por “mediterrâneos invisíveis”, muros e cercas, desequilibrar a ecologia, assistindo à generalização das drogas e da violência, crianças sem futuro.

Por esta filosofia, o caminho seguido nas últimas décadas é inexorável e não caberia à política controlar o rumo social. A “filosofia da resistência” é praticada por aqueles que não aceitam a marcha do avanço tecnológico, mas não buscam propostas alternativas: limitam-se à luta para impedir o progresso técnico e fechar as fronteiras nacionais; defendem direitos adquiridos no passado, sem buscar entender quais destes direitos ficaram obsoletos, quais amarram o futuro, e que novos direitos precisam ser conquistados.

A “filosofia da construção” aceita o progresso em marcha, mas não se acomoda aos desastres sociais e ecológicos que ele provoca. Comemora o avanço técnico e a globalização, mas ao mesmo tempo busca definir regras para manter o equilíbrio ecológico, salvaguardar as diversidades, inclusive nacionais, educar as novas gerações para um futuro com emprego reduzido e proteger os que ficam desempregados, mas com tempo livre bem ocupado e com renda mínima assegurada.

Tenta propor um progresso que respeite a natureza, substitua o PIB pelo bem-estar, promova atividades culturais, seja responsável com as finanças públicas. Que estabeleça um Piso Social que assegure a todos o atendimento dos bens e serviços essenciais e também um Teto Ecológico acima do qual ninguém poderá consumir.

A formulação desta “filosofia da construção” é um desafio para aqueles que desejam fazer política com causa, sem ignorar nem naufragar nas vertiginosas transformações que ocorrem no mundo contemporâneo.

 

 


Cristovam Buarque: Do Che ao Chico

A América Latina precisa evoluir das ideias do Che para as ideias do outro argentino, Francisco, com sua proposta da teologia da harmonia no lugar da teologia da libertação

Correio Braziliense

Os mitos políticos vivem mais quando morrem heroicamente e antes de suas ideias. Na semana passada, fez 50 anos da morte de Che Guevara, com o reconhecimento do heroísmo revolucionário ainda vivo, mas com as ideias ultrapassadas pelas avassaladoras mudanças ocorridas desde então.

Elas eram movidas pelo sonho de uma utopia social maior do que o desejo de consumo individual; a maldade do imperialismo ainda se fazia mais presente do que a atração pela globalização; o consumo era restrito a poucos produtos e poucas pessoas, sem ser sonhado pelas massas.

A tecnologia avançava em movimento contínuo ao longo de décadas e não em saltos a cada poucos anos; as classes trabalhadoras formavam conjunto razoavelmente homogêneo de proletários e camponeses usando as mãos, com rendas baixas para todos. O meio ambiente ainda não estava ameaçado, nem limitava o crescimento econômico, oferecendo um futuro de riqueza para todos.

Hoje, uma parte dos trabalhadores adquiriram conhecimento e são operadores, não mais operários. Com renda e consumo elevados, temem dividir privilégios com os que ficaram do outro lado dos muros que segregam ricos e pobres.

Che encarnava os sonhos de utopia para a sociedade e de realização existencial para o indivíduo desejoso de dedicar a vida à revolução a serviço do povo e da nação. Com isso, seduzia a juventude militante portadora de utopia social, em busca de uma causa para vida: a independência do país, a derrubada da ditadura, a conquista da igualdade de renda e consumo entre as pessoas.

Cinquenta anos depois, o mundo não está dividido pela guerra fria, nem pelo muro de Berlim, mas por “mediterrâneos invisíveis” que separam incluídos e excluídos da modernidade. As ditaduras foram derrubadas e a independência foi conquistada sob a forma de incorporação no mundo global.

Muitos herdeiros do mito heroico do Che não querem atualizar as ideias para não abrir mão dos direitos que foram conquistados e não podem ser estendidos a todos pelos padrões mais altos de consumo. A esquerda europeia assume claramente essa realidade ao aliar-se à direita para defender barreiras contra imigrantes.

A esquerda que se diz guevarista caiu no populismo de prometer uma igualdade impossível ou na demagogia de prometer o que sabe ser impossível. A proposta do Che era da igualdade na austeridade para todos, o que não mais atrai os jovens de hoje, sonhadores de consumo restrito para poucos.

A juventude guevarista precisa manter o respeito ao herói e, em sua homenagem, ajustar as ideias de Che aos nossos tempos. Na China, os jovens fizeram isso, lembrando Mao com seus méritos e falhas, mas substituindo-o por Jack Ma, o Steve Jobs chinês, que, usando técnicas modernas, fez uma revolução na China, agregando mais pessoas nos benefícios do progresso do que o velho revolucionário social.

Apesar das críticas, dos métodos e propósitos autoritários na política, Che merece estar vivo na lembrança da luta e do heroísmo revolucionário, mas precisa ser substituído nas ideias utópicas que ele tinha para o seu tempo e nos métodos armados que usava. Da guerrilha à democracia, da igualdade plena à tolerância ética com a desigualdade entre um piso social e um teto ecológico galgado licitamente pelo talento, pela persistência e pela vocação. Com a garantia da máxima qualidade e igualdade na oferta pública de saúde e educação para cada indivíduo; na garantia de liberdade individual, de democracia política e de direitos civis e humanos das minorias; sobretudo na percepção de que não há utopia libertária sem economia eficiente.

O Che de hoje deve entender que a revolução não se faz por dentro da economia, sacrificando a eficiência, mas usando os resultados da economia eficiente, subordinada a regras morais como proibição de trabalho escravo, de produção de drogas ilícitas, de depredação ambiental. Nessa visão, a injustiça não decorre da distribuição entre lucro e salário, da desigualdade de renda, nem da propriedade do capital, mas da exclusão de pobres do acesso aos bens e serviços essenciais e da depredação do meio ambiente pelo excesso de consumo.

No cenário atual da realidade social, econômica, ecológica, técnica e científica, a China evoluiu de Mao a Ma, e a América Latina precisa evoluir das ideias do Che para as ideias do outro argentino, Francisco, com sua proposta da teologia da harmonia no lugar da teologia da libertação.


Cristovam Buarque: O labirinto de nossos erros

O jornalista Roberto D’Ávila me perguntou como chegamos à situação em que nos encontramos e na qual parecemos aprisionados. A sensação é de que fomos cometendo erros, como se dobrássemos esquinas caminhando por um labirinto, sem saber o caminho de volta, ainda menos de ida: para fora das amarras que nos impedem de progredir civilizada e sustentavelmente. O labirinto se inicia com a escravidão e o latifúndio, mas não temos desculpas para os erros dos caminhos tomados nas últimas décadas, que foram contaminando o Estado, a economia e a sociedade por erros na política.

Dobramos uma esquina do labirinto ao conquistarmos a democracia e fazermos uma Constituição para apagar o passado autoritário, mas sem usá-la para construir o futuro da nação. Garantimos direitos sem determinar deveres, sem definir sentimento de coesão nacional. Ficamos presos ao imediato de cada grupo sem instrumentos nem vontade para formular e construir o rumo para todos no longo prazo.

Nos aprofundamos no labirinto por causa do endividamento público e privado, sem responsabilidade, de acordo com nossos recursos; derrubamos florestas, secamos rios; transformamos nossas cidades em “monstrópoles” divididas por “mediterrâneos invisíveis”. Protegemos com subsídios empresas ineficientes, sem buscar aumentar produtividade, competência, inovação.

Elegemos governos progressistas, mas eles não fizeram as reformas necessárias; dobramos uma esquina do labirinto usando o Estado para financiar campanhas eleitorais com propinas e dando emprego a afilhados dos políticos e a filiados dos partidos, sem respeito à competência dos nomeados. Depois do impeachment, no lugar de recuperar a credibilidade na política, pedida por milhões nas ruas, embrenhamo-nos no labirinto, com o vice-presidente aparecendo sob suspeita de conivência com a corrupção.

O mergulho no labirinto foi aprofundado por parlamentares que aprovam leis sem o necessário rigor, olhando o imediato e seus próprios interesses eleitorais; cortamos verba para setores prioritários e liberamos recursos públicos para financiar campanhas eleitorais. Os tribunais, que trazem a esperança do enfrentamento da corrupção, agravam o caminho labiríntico ao se viciarem em privilégios e ao criarem instabilidade jurídica.

A injustiça social, a impunidade legal, o incentivo obsessivo ao consumo, a falta de bons exemplos vindos dos quadros dirigentes profundaram a marcha adentro no labirinto. Para sair dele, seria fundamental dispor de interpretações atualizadas sobre a crise da modernidade e o futuro do Brasil, mas nossas universidades parecem aceitar passivamente o contínuo caminhar no labirinto, sem inovação ou ineditismo e até sem respeito ao mérito.

O labirinto é o resultado de sucessivas escolhas erradas ao longo da história, mas a principal foi o descuido com a educação de nossas crianças, do nascimento até a vida adulta.

 


Cristovam Buarque: E agora, Merkel?

A chegada de um partido xenófobo e conservador ao Parlamento é prova de que até mesmo uma líder como ela não consegue atrair a população inteira para um projeto democrático e humanitarista

A vitória do partido da chanceler Angela Merkel mostra que ela é a grande líder no mundo em transformação de hoje. Mostra também que o eleitor alemão não recusa sua política econômica responsável e sua generosidade nas relações com os imigrantes. Mas a redução no número de eleitores em seu partido e o crescimento da bancada neonazista, ganhando direito a participar do Parlamento, apontam para o esgotamento das bandeiras e do partido de Frau Merkel.

Com o crescimento da imigração para a Europa, com rebeliões de países contra a Comunidade Econômica Europeia, o desemprego crescente, crises econômicas, esgotamento das finanças estatais e corte em gastos sociais, cada vez será mais difícil reeleger a proposta que Merkel simboliza. Ela própria reconheceu isso, ao dizer que o eleitorado deu um recado, e seu partido precisa rever suas posições para recuperar eleitores perdidos.

Com essa fala, mostrou sua grandeza, pois no lugar de só lamentar o crescimento da direita, admitiu que a vitória do adversário decorreu de erros dela própria e de seu partido. O que acontece na Alemanha não é muito diferente do resto do mundo democrático.

Tudo indica uma tendência ao crescimento da preferência do eleitor por posições xenófobas e conservadoras, que no Brasil se manifestam com o crescimento de candidatura com propostas claramente autoritárias, manifestações de militares a favor de uma possível intervenção e com a forte rejeição da população contra os políticos.

É provável que no futuro Frau Merkel tenha pouca chance de eleger propostas moderadas e solidárias. Possivelmente serão crescentes as resistências à sua coalizão, se não for capaz de apresentar soluções para um novo modelo civilizatório, sustentável e humanitário, e de sensibilizar a opinião pública a favor de um novo pensamento e nova filosofia social.

Há quase 40 anos, os alemães comemoram o bom funcionamento da economia e aceitam pagar um imposto para permitir a redução da desigualdade social com a Alemanha Oriental. Nos últimos dois anos, a Alemanha de Angela Merkel vem estendendo a mão aos imigrantes que atravessam o Mediterrâneo, recebendo quase um milhão de refugiados.

O eleitor deu aval a essa postura, mas a chegada de um partido xenófobo e conservador ao Parlamento é prova de que até mesmo uma líder como ela não consegue atrair a população inteira para um projeto democrático e humanitarista. Nos próximos anos, as forças progressistas do resto do mundo precisarão perceber que a população alemã votou por uma economia eficiente, usando socialmente os recursos obtidos pela economia, mas sem interferir na sua sustentação e equilíbrio.

A Alemanha é um exemplo do compromisso com a eficiência e com o equilíbrio fiscal como forma de garantir fundos para os investimentos sociais com sustentabilidade. Fica o alerta para que as forças progressistas de cada país reconheçam que não estão convencendo a população de suas propostas e, em consequência, iniciando a marcha para alternativas autoritárias e conservadoras conduzirem o país. (O Globo – 30/09/2017)

 


Cristovam Buarque: 'Suissinato’ do futuro  

Se o Brasil quer encontrar um rumo, precisamos salvar a Uerj

O futuro de um país tem a cara de sua escola no presente. Cortar recursos para a universidade é como suspender transfusão de sangue para o país. O que acontece com a Uerj é um exemplo disso; portanto, o futuro do Brasil não parece bonito nem próspero. Ainda mais quando percebemos que a crise é de todo o conjunto de nosso ensino superior.

Embora a falta de verbas seja a causa mais visível, a tragédia tem motivos internos que exigem uma autocrítica. Há décadas a universidade estatal brasileira vem cometendo o suicídio de uma morte anunciada, apressada pelo assassinato por governos irresponsáveis: abandono e acomodamento formam o veneno do “suissinato”.

A qualidade do ensino superior depende diretamente da educação de base. Apesar disso, a universidade assistiu à degradação do ensino infantil, fundamental e médio sem lutar politicamente para forçar prioridade para elas. Também não se dedicou a formar bons professores para nossa educação de base.

A comunidade acadêmica falhou ao não lutar contra a irresponsabilidade fiscal, aplaudindo a construção de estádios e a implantação de programas populistas e fechando os olhos à corrupção, o déficit agora é pago com o corte de verbas. A universidade deve lembrar que a gratuidade é paga com dinheiro do conjunto da sociedade.

Diante do previsível esgotamento fiscal do Estado, a universidade precisa ser mais eficiente na gestão dos recursos que recebe e na captação de verba complementar em fontes não estatais, como fazem as universidades em todo o mundo. Mesmo em tempo de austeridade gastamos mais do que as universidades europeias e asiáticas que estão entre as melhores do mundo.

A universidade se contenta em ser basicamente escada social, pela outorga de diplomas, no lugar de ser alavanca para o progresso, pela inovação do saber em todas as áreas. Está desconectada do setor produtivo. Perdemos a sintonia com os rápidos avanços do conhecimento: considerar carreiras e diplomas como permanentes. Não se internacionaliza nem adota os novos métodos de ensino à distância.

Além do corte de verbas, a crise da universidade tem tudo a ver com sua rendição ao corporativismo, ao partidarismo, desprezando o mérito e sem um pacto de qualidade com a sociedade. Ao longo de anos foram tantas greves que a população chega a imaginar que a atual paralisação da Uerj é apenas mais uma delas, não decorre da falta de recursos por irresponsabilidade do governo estadual.

Se o Brasil quer encontrar um rumo, precisamos salvar a Uerj e as demais universidades do país da crise financeira do momento. Mas para isso, as universidades precisam salvar a si próprias, fazendo autocrítica, reformando-se para estar à altura dos desafios do conhecimento e, ao mesmo tempo, do esgotamento de recursos.

Abandonar as universidades, como acontece especialmente com a Uerj, é uma forma de assassinar o futuro do Brasil, mas manter a universidade sem uma profunda reforma é cometer suicídio institucional.

* Cristovam Buarque é senador (PPS-DF)


Cristovam Buarque: Comemoração incompleta

Daqui a cinco anos, o Brasil ingressará no terceiro centenário de sua história como país independente. Neste 7 de setembro, aos 195 anos de nossa independência, é possível comemorar o que nossos antepassados conseguiram.

Atravessamos quase 200 anos consolidando um imenso território soberano e unificado por redes de transporte, de comunicações, de distribuição de energia, a economia brasileira está entre as maiores do mundo no valor do produto, passamos de 200 milhões de habitantes. Não há dúvida de que temos que comemorar os primeiros dois séculos.

Mas se, no lugar de olharmos para a história, olharmos ao redor, a festa perde seu brilho. Comemoramos um elevado PIB, o oitavo do mundo, mas 84º por habitante, por causa de nossa baixa produtividade.

Igualmente grave, nossa economia se concentra em bens agrícolas e minerais ou indústrias tradicionais, porque somos um país de baixa capacidade de inovação.

Do ponto de vista social, carregamos a vergonha de sermos campeões em concentração de renda, temos formidáveis ilhas de riqueza e um trágico mar de pobreza.

Chegamos ao nosso terceiro século divididos tão brutalmente que podemos nos considerar um sistema de apartação, um país onde a população está dividida e separada por “mediterrâneos invisíveis” intransponíveis.

Somos um país integrado fisicamente e desintegrado socialmente. Por isso, somos hoje, em parte, campeões de violência urbana com mais de cem mil mortos por ano, 50 mil assassinatos e 45 mil vitimados por acidentes de trânsito.

Na política, apesar de comemorarmos o aniversário com um sistema democrático e instituições funcionando, em nenhum outro momento tivemos uma classe política tão desacreditada.

As promessas foram descumpridas, a corrupção se alastrou, os partidos se desfizeram, as finanças públicas foram quebradas, as estatais arrombadas, as corporações dividiram o país em republiquetas sem sentimento nacional.

A sensação é de que o país entra no seu terceiro século desagregando-se, sem coesão social, sem rumo histórico.

O mal-estar se explica por muitas causas, mas certamente a principal está no descaso com a educação de nossa população, desde a primeira infância. Chegamos ao nosso terceiro século com 13 milhões de compatriotas adultos incapazes de reconhecer a própria bandeira da República, por não saberem ler o lema “Ordem e Progresso”.

Além destes, segundo o IBGE, são quase 28 milhões de adultos analfabetos funcionais, apenas um pequeno número de jovens recebe formação necessária para construir a economia e a sociedade do conhecimento que vai caracterizar o século adiante.

Passados dois séculos, ainda somos um país com baixíssimo grau de instrução e com abismal desigualdade no acesso à educação conforme a renda da família.

E não seria difícil fazer com que, bem antes do quarto século, o Brasil conseguisse ser um país com educação de qualidade para todos: os filhos dos mais pobres em escolas com a mesma qualidade dos filhos dos mais ricos; uma sociedade que não dispensaria um único talento intelectual de sua população. Sem isso, certamente não teremos o que comemorar quando o quarto centenário chegar.

 

 

http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2017/09/comemoracao-incompleta.html


Cristovam Buarque: Aliança para salvar Brasília

Muitas vezes, a política promove alianças eleitoreiras e em outras, patrióticas. Não é fácil reunir em um mesmo projeto políticos com divergências anteriores. Quando isso ocorre, em geral, estão sacrificando princípios, programas e ideias em função de interesses puramente eleitorais.

Em ocasiões distintas, políticos adversários deixam de lado as divergências para se unirem em defesa de interesses maiores do país ou da cidade. São alianças para salvar a comunidade da crise que atravessa.

O Brasil viu isso quando Prestes, depois de anos preso e sabendo que sua esposa fora enviada para a morte na Alemanha, se uniu a Getúlio Vargas para trazer de volta a democracia; ou quando Mandela se uniu a De Klerk para acabar com o apartheid na África do Sul. São alianças salvadoras. Brasília está precisando de uma dessas.

Governos anteriores do Distrito Federal deixaram uma imagem negativa na política e um desastre fiscal nas finanças. O último governo, além de péssima imagem moral, deixou as contas públicas absolutamente falidas, diante dos compromissos assumidos, irresponsavelmente, para obter votos e se reeleger.

O Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha é o símbolo perfeito desse desastre. Uma obra sem sintonia com as necessidades da população, foco de corrupção de dirigentes, tanto nas prioridades, quanto no comportamento. Gastos de quase R$ 2 bilhões no estádio, no lugar de escolas, saneamento e saúde. Apropriou-se de parte disso sob a forma de propina, segundo a Polícia Federal.

Lamentavelmente, o estádio é uma entre dezenas de outras medidas imorais que destruíram o bom funcionamento da nossa cidade e a credibilidade de nossos políticos. O governador atual assumiu uma cidade com compromissos que não tem como cumprir, sejam aqueles determinados por seu antecessor, sejam alguns que ele prometeu na campanha eleitoral de 2014.

O resultado é que seu governo se arrasta há dois anos e meio no pântano das dificuldades fiscais — todos recursos são para pagar salários e outros poucos custeios. Apesar de receber mais de R$ 13 bilhões do Fundo Constitucional, que o resto do Brasil, inclusive estados pobres, nos transferem anualmente, agora não temos como pagar os salários de nossos servidores em dia.

Quando o governador assumiu, em 2015, deveria ter chamado todas as lideranças políticas, inclusive, os seus opositores, para tentar encontrar um caminho, com apoio de todos, e enfrentar as dificuldades. No lugar disso, preferiu se isolar com um pequeno grupo de auxiliares, que se consideram em condições de resolver todos os problemas. Fracassaram.

Brasília precisa superar sua dupla tragédia: fiscal e moral. Equilibrar suas contas, usar seus recursos para servir à cidade e ao seu povo e recuperar a credibilidade de seus dirigentes. Isso não será tarefa de nenhum líder carismático, de nenhum partido. Exige uma aliança de todos que tenham sentido de responsabilidade e respeito aos interesses públicos.

A aliança para salvar Brasília não deve abrir mão de convicções e não pode ter preconceitos: deve unir todos os políticos, independentemente de suas posições no passado, desde que respeitem princípios como:

— Não estarem sob suspeitas de corrupção;

— Terem responsabilidade no uso dos recursos públicos, não apenas pela ética no comportamento, mas também na responsabilidade do respeito pelas contas do erário;

— Entender que a gestão pública eficiente é um dos maiores compromissos necessários para servir bem à população;

— Não aparelhar e usar a máquina governamental para beneficiar seus partidos;

— Respeitar o mérito dos escolhidos para cargos e comprometer-se com a austeridade que elimine as chamadas mordomias e vantagens pessoais;

— Em nenhum momento cair na demagogia de prometer mais do que poderá fazer. Não se submeter às reivindicações de grupos corporativos, seja de empresários, seja de igrejas, seja de sindicatos de servidores;

— Definir um programa claro para corrigir os graves problemas na saúde, no emprego, na educação, na mobilidade, na segurança, no crescimento da economia e, obviamente, no equilíbrio fiscal.

Em termos políticos, os últimos que governaram Brasília contribuíram para que a população tivesse uma visão negativa do Distrito Federal. É preciso que nossas lideranças tenham grandeza e se unam pela cidade em uma aliança patriótica.

 


Cristovam Buarque: O pior déficit

O Congresso Nacional se prepara para saltar da responsável aprovação do teto nos gastos públicos para a irresponsável aprovação do desvio de R$ 3,6 bilhões, com o objetivo de financiar as campanhas eleitorais no próximo ano. Um dia, preocupado, o povo assiste ao presidente da República dizer que o Brasil sofre a falência dos serviços públicos por falta de dinheiro; no outro, perplexo, assiste que haverá dinheiro para financiar campanha milionária: R$ 2 milhões por eleito — deputados federais e estaduais, governadores, presidente; R$ 30 pagos por eleitor. Ao assistir a estes dois fatos — falta de dinheiro para os serviços e dinheiro sobrando para as eleições —, o povo desacredita ainda mais de seus governantes, sobretudo depois do reconhecimento de um déficit de R$ 159 bilhões em 2017.

A oposição também fica desacreditada ao tratar o povo como se ele não soubesse que este déficit foi provocado sobretudo pela irresponsabilidade de seu período no governo. Chega a ser cínica a afirmação de que este custo das eleições é pequeno, quando sabemos que seria suficiente para enfrentar as dificuldades da nossa ciência e tecnologia, por exemplo. Também é cinismo dizer que a democracia exige estes gastos, sem levar em conta que nossas eleições estão entre as mais caras do mundo; ou ainda ao dizerem que o recurso sairá das emendas de parlamentares, quando este dinheiro é pago pelo contribuinte, e as emendas dirigidas para atender necessidades da população.

Graças ao teto dos gastos, o povo sabe que o dinheiro é curto e será tomado dele para financiar as campanhas, caracterizando uma corrupção nas prioridades. É uma vergonha dizer que este gasto é necessário para fortalecer a democracia: não há democracia sem políticos com credibilidade e não há credibilidade em um Parlamento cujos membros um dia aprovam um necessário teto de gastos, e no outro continuam fazendo uma das mais caras eleições do mundo, sem dar exemplos próprios de austeridade. O Congresso devia determinar medidas que reduzam o custo das campanhas e que elas sejam financiadas pelos filiados e simpatizantes dos partidos e dos candidatos.

Além dos elevados gastos de campanha, o governo precisa dar exemplos: acabando com remunerações acima do já elevado teto salarial que equivale a 35 vezes o salário mínimo do trabalhador; precisa determinar que nenhum de seus dirigentes acumule salários, como aposentadorias; acabar com mordomias e subsídios pessoais. São gestos que têm pouco impacto fiscal, mas um imenso impacto moral. O Brasil não supera sua crise se seus dirigentes não derem o exemplo. E os políticos estão na contramão ao apresentar uma proposta de reforma política que, além de piorar o maldito sistema atual, desvia recursos públicos para campanha eleitoral. Pior que o déficit fiscal é o déficit moral. E esta reforma eleitoral está ampliando essa escassez e comprometendo nossa democracia, no lugar de fortalecê-la. (O Globo – 19/08/2017)


Cristovam Buarque: As causas do desastre

Basta olhar ao redor para perceber o desastre social, econômico, institucional que os líderes deste país, no governo e na oposição, estão deixando como herança maldita para o presente e o futuro. Por ação, omissão ou incompetência, todos somos responsáveis, mas a culpa maior recai sobretudo nos governos liderados pela coalizão PTMDB entre 2003 e 2016. O PTMDB desprezou a gestão pública e entregou os órgãos estatais, Petrobras, fundos de pensão, agências reguladoras e outros, nas mãos de pessoas despreparadas, sem respeito ao mérito e à competência. Até mesmo na escolha do vice-presidente da República, houve desprezo aos interesses maiores do país. Para manter a coalizão, tudo se justificava, inclusive o loteamento do patrimônio estatal.

Ao aliar-se ao PMDB, o PT perdeu também o vigor transformador que caracterizava seu discurso; distanciou-se das promessas reformistas e caiu no assistencialismo com fins eleitoreiros. No lugar de iniciar as transformações na educação para, um dia, os filhos dos pobres estudarem em escolas com a mesma qualidade das dos filhos dos ricos, preferiu vender a ilusão de que o aumento de vagas nas universidades resolveria o triste estado das escolas públicas.

Sem bandeiras transformadoras, aprisionado ao eleitoralismo, caiu na banalização e na institucionalização da corrupção.Deixou-se levar pelo comportamento dos políticos no uso de propinas, como também na definição de prioridades ao construir estádios em vez de melhorar as escolas. As manobras visando ao poder pelo poder, sem bandeiras para o futuro, levou o PTMDB à promiscuidade entre os dois partidos e destes com os empresários. Assumiram que, na política, todos são iguais na falta de propósitos transformadores e na voracidade da corrupção, desmoralizando a política e afastando os jovens da militância.

A corrupção e a falta de gestão teriam sido evitadas se não fosse a surdez às críticas e o culto à personalidade de seus líderes. Não se perguntou por que militantes com solidez ideológica, eticamente respeitados, saíram do partido; nem ouviram os alertas vindos de aliados. Dividiu o mundo político entre nós e eles, colocando do lado “nós” velhos coronéis corruptos e do lado “eles” pessoas sérias, apenas porque os primeiros batiam palmas e os outros criticavam. Políticos com forte tradição de direita viravam esquerda se batessem palmas; esquerdistas críticos eram tidos como de direita, se não aplaudissem.

Esse comportamento levou ao sectarismo, transformando os partidos em seitas, intolerantes com os críticos. Direções e militantes passaram a desconfiar das bases democráticas, da coerência dos partidos, da seriedade dos meios de comunicação, da neutralidade dos juízes. O sectarismo impediu de ver as transformações que ocorrem no mundo, deixando a militância para trás na história. O partido se firmou como defensor de interesses conservadores das corporações e do presente, relegando os interesses nacionais e o longo prazo. Confundiu sindicato com povo, presente com futuro. Não foi capaz de perceber as amarras que impedem o país de avançar.

Para manter-se reacionário sem perder o discurso progressista de antes, optou por falsas narrativas, preferiu marqueteiros a filósofos. Sem substância ideológica, porque os filósofos se transformaram em seguidores, perderam o compromisso com a verdade, passaram a acreditar nas próprias mentiras: “o pré-sal salvaria o Brasil,” o Bolsa Família emanciparia os pobres, “os que divergissem seriam traidores”. Caiu na armadilha dos que acreditam nos dogmas que criou. Tanto que certamente se negará a debater esse artigo, uma vez que só os aliados merecem ser lidos.

A luta do PT foi um dos maiores saltos de toda a história política do Brasil. Seus desvios nos últimos anos foram uma traição à pátria, ao provocar desperdício da esperança e do potencial para realizá-la. O enfraquecimento do PT, pela desconfiança da população, pelo afastamento de muitos de seus militantes e pela prisão mental em que estão os que ainda lhe são fiéis, sem espírito crítico, talvez seja o maior dos erros de suas direções nos últimos anos, além do desastre provocado no rumo do país e do povo ao progresso.

 


Cristovam Buarque: O tamanho da insanidade

Os professores, servidores e alunos das universidades precisam se mobilizar contra esta insanidade que vai retirar recursos de áreas prioritárias agravando ainda mais a tragédia fiscal pela qual passam nossas universidades

O Congresso brasileiro se prepara, mais uma vez, para dar um tapa na cara dos seus eleitores, aprovando gastos de R$ 3,6 bilhões para financiar as eleições de seus futuros membros.

Isso acontece no mesmo momento em que as universidades federais estão ameaçadas de fechar por falta de dinheiro para os gastos mais primários.

Nossos institutos de ciência e tecnologia estão parando suas pesquisas.

Se a proposta for aprovada no Congresso e o governo não vetar, o presidente Temer e o ministro Henrique Meireles passarão a ideia de que estão mentindo quando dizem que não há recursos para financiar nosso sistema universitário, que a previdência é deficitária, que é preciso demitir servidores.

Estão mentindo ou dirigem um governo insano.

Todos falam que, no lugar de novos impostos, o governo deveria reduzir gastos. No lugar disso, eles aumentam despesas para financiar campanhas eleitorais, tomando R$ 3,6 bilhões dos eleitores (R$ 60,00 por eleitor) que não foram consultados – inclusive daqueles 50 milhões que as pesquisas indicam que não vão votar ou votarão em branco.

Isto é uma insanidade coberta por uma mentira.

Isto poderia ser evitado cortando o custo da campanha.

Triste é que a comunidade acadêmica não parece mobilizada para impedir esta insanidade.

É hora de um movimento nacional contra parlamentares e contra o presidente Temer, para que não cometam esta insanidade, fazendo campanha mais barata e financiada pelos simpatizantes dos partidos e dos candidatos, não por cidadãos que sofrem a degradação dos serviços públicos e que são obrigados a financiar políticos que recusam.

Os professores, servidores e alunos das universidades precisam se mobilizar contra esta insanidade que vai retirar recursos de áreas prioritárias agravando ainda mais a tragédia fiscal pela qual passam nossas universidades.

 

 


Cristovam Buarque: A ocupação necessária

O Rio e o Brasil estão comemorando mais uma vez a entrada de nossos soldados na luta contra a violência que tomou conta desta bela cidade. Diante da guerra civil em andamento, não há como ficar contra a decisão do governo federal, mas é preciso estar alerta aos seus riscos e limitações.

Com as Forças Armadas (FFAA) nas ruas, a população carioca pode ter um fôlego de paz, mas sob o risco de envolver nossos soldados em mortes: a deles e a de bandidos nas ruas. As consequências destas mortes poderão ser muito graves para o necessário casamento entre os brasileiros e suas FFAA.

Ao escolhermos o caminho do enfrentamento entre nossos soldados e a guerrilha do crime, adotamos o risco de soldados matarem brasileiros, inclusive com prováveis efeitos colaterais: eufemismo para dizer vítimas inocentes de balas perdidas atiradas por armas de um lado ou de outro. Somente neste ano de 2017, 92 policiais militares e mais de 500 civis, inclusive crianças, foram mortos na guerra entre bandidos e policiais. São estatísticas assustadoras: ainda mais grave se envolver nossos soldados.

Igualmente grave são os limites desta opção. O Exército não pode ficar para sempre nas ruas do Rio, nem de outras cidades. No dia seguinte à saída dos militares, mesmo não sendo vista como derrota, os bandidos voltarão com espírito de vencedores. Sem falar no risco de sucesso da guerrilha do crime, se não diretamente no enfrentamento com nossos soldados, indiretamente pela disseminação da bandidagem em outras cidades.

A solução provisória será um agravante. Ainda que tenham sucesso momentâneo, os soldados não construirão a paz permanente, que só viria se o governo federal ocupasse o Rio com professores bem preparados, dedicados, bem remunerados, em escolas bonitas e bem equipadas, todas com horário integral.

Há anos, muitos dizem que se o Brasil não ocupar suas cidades com professores, teria de ocupá-las com soldados. Darcy Ribeiro dizia que, se não fizermos escolas, teremos que fazer cadeias. Ou ocupamos com professores ou não adianta ocupá-las com soldados.

Mas continuamos preferindo os soldados aos professores, a segurança provisória à paz permanente. Comemoramos a federalização da segurança, mas nos recusamos a federalizar a educação. Se todas as crianças do Rio tivessem escolas equivalentes aos Colégios Federais, Pedro II ou Militares, em uma geração teríamos um ambiente de paz, evitando a necessidade da precária e arriscada opção militar.

Talvez isto nunca vá acontecer, por causa da miopia em relação ao futuro que nos faz preferir soldados nas ruas, muros nos condomínios, carros blindados, a uma paz duradoura que vem da educação. Em grande parte, porque temos três ideias arraigadas: a educação não resolve o problema; não podemos esperar por ela; e, sobretudo, a ideia de que no Brasil não há como oferecer escola com a mesma qualidade para os filhos de ricos e filhos de pobres. Esta mentalidade é a principal origem da violência que agora tentamos barrar com soldados.