Cristovam Buarque: Improvisos seculares
Urgência de cuidar do fuzil nos faz desprezar a importância do lápis
Ainda no século XIX, um dos maiores brasileiros de nossa história, Joaquim Nabuco, disse que a Abolição ficaria incompleta se os escravos não recebessem terra para trabalhar, e seus filhos não recebessem escolas para estudar. Não lhe deram atenção. Cem anos depois, outro dos maiores brasileiros da história, Darcy Ribeiro, disse que se o Brasil não construísse escolas naquele momento, teria de construir cadeias no futuro.
Junto com o então governador Leonel Brizola, Darcy iniciou a construção de um sistema estadual de escolas públicas com máxima qualidade: os Cieps. Os governadores seguintes não deram continuidade a esse sistema em horário integral. Em 1990, o ex-presidente Collor tentou levar a ideia para o resto do Brasil com os Ciacs, mas, com o impeachment, a tentativa de federalização foi abortada.
A sociedade brasileira continuou sua marcha de pobreza, violência, desigualdade, ineficiência, improvisando soluções parciais para cada problema. Eleitos e eleitores não percebem que o berço de nossos problemas está na falta de um sistema nacional de educação com máxima qualidade; que o futuro de um povo tem a cara de sua escola no presente (83% dos jovens infratores abandonaram a escola ainda na educação de base). A população vê a ameaça de uma pessoa portando fuzil, mas não vê a esperança em um professor segurando um lápis, um livro, um computador dentro de uma boa escola. No momento, quase todo carioca apoia, e os demais brasileiros invejam, a decisão de federalizar a segurança do Rio de Janeiro, mas nem imaginam que a maior parte se opõe a uma federalização da educação de base.
Preferimos continuar nas improvisações seculares: “Abolição”, “República”, “desenvolvimento”, “democracia” e “segurança” sem educação. A urgência de cuidar do fuzil nos faz desprezar a importância do lápis, mas guiar-se apenas pelo desespero com a violência não leva à construção da paz.
Em sete meses, teremos eleições gerais, mas nenhum candidato a presidente parece consciente da dimensão de nossos problemas, nem interessado em oferecer uma resposta que não da improvisação pontual. Ainda menos, enfrentar os problemas imediatos considerando que a solução de longo prazo está na construção de um sistema nacional de educação com máxima qualidade.
Querendo apenas agradar ao eleitor assustado com o presente, ficam presos às improvisadas trapalhadas seculares dos discursos demagógicos. Os partidos boicotam seus candidatos que defendem a educação como solução, porque isso não atrai votos. Por mais consistência lógica que eles tenham, a urgência destrói os mais sólidos argumentos. Quem está com sede não aceita o aviso de que a água do poço em frente está contaminada e devemos cavar um novo poço em outro lugar. Poucos votam em quem propõe enfrentar fuzil também com lápis.
Por isso, não há ouvidos para a fala de Nabuco, nem de Darcy, nem para a ex-senadora Heloísa Helena quando, mais recentemente, disse: “Se adotássemos uma geração de brasileiros, ela depois adotaria o Brasil”.
Cristovam Buarque: Liberdade acadêmica plena
A disciplina será um bom teste para ver se o professor zela também pela liberdade acadêmica plena, aceitando a opinião de seus alunos
Ao manifestar preocupação com a disciplina “O Golpe de 2016 e o futuro da Democracia no Brasil”, prevista para a Universidade de Brasília (UnB), o ministro da Educação comete graves erros. Primeiro, porque seu papel é zelar pela liberdade acadêmica e sua intervenção não consideraria isso. Cabe aos órgãos colegiados alertar para os casos em que algum curso seja usado para a promoção de crime ou preconceitos. No caso dessa disciplina, trata-se de uma interpretação que o professor tem direito de oferecer ao definir os impeachments como golpe.
Errou também ao não perceber que, de fato, é possível essa categorização. Apesar de todo o rigoroso rito jurídico que foi seguido ao longo de 180 dias de julgamento dentro das normas constitucionais, há possibilidade acadêmica de dar essa interpretação. No caso do impeachment contra o Collor, a denominação de golpe é ainda mais plausível, porque ele não foi acusado de crime contra a Constituição.
Já Dilma foi acusada de ferir o artigo 85 da Carta Magna que define o crime de responsabilidade. Além disso, no caso do Collor, ele teve seus direitos políticos cassados por oito anos, enquanto a ex-presidente manteve seus direitos integrais e pode ser candidata para voltar ao cargo de presidente ou a qualquer outro, em 2018, com o eleitor tendo na memória que ela teria sido vítima de golpe.
Mesmo assim, a expressão golpe pode ser usada nos casos de 2016 e de 1992. Muitos consideram que a Proclamação da República foi um golpe, porque dissolveu o Parlamento, rasgou a Constituição imperial e destituiu o imperador, acabando com a dinastia. A própria Lei Aurea, embora tenha seguido rigorosamente o processo legislativo, foi considerada como golpe por diversos parlamentares escravocratas, porque Joaquim Nabuco teria usado mecanismos para apressar o debate.
Da mesma forma, qualquer professor deve ter o direito de chamar de golpe a manifestação do processo eleitoral de 2014, que caracterizou um verdadeiro estelionato ao manipular preço de combustível, taxa de juros, subsídios para empresários. O mensalão do governo Lula ou do Temer também podem ser chamados de golpes. A corrupção é um golpe, sobretudo, no nível antipatriótico como foi feito com a Petrobras, a Eletrobras; os roubos de dinheiro dos fundos de pensão podem ser chamados de golpes contra a democracia e contra o povo e a nação.
O terceiro erro do ministro é não reconhecer que essa disciplina pode ser útil para esclarecer se a expressão é correta para definir o que se passou em 1992 e em 2016, ou se ela vem sendo usada como um instrumento mitológico a serviço de marketing partidário. A oferta da disciplina “O Golpe de 2016 e o Futuro da democracia Brasileira” deve ser defendida por todos aqueles que respeitam a liberdade acadêmica e também porque essa ideia merece ser analisada como possibilidade. Mas, se a liberdade acadêmica for plena, essa hipótese deve ser investigada com base em fatos, não com o propósito de usar a universidade como veículo de marketing partidário.
Caso seja dada, seria conveniente que algumas perguntas fossem respondidas durante a disciplina: 1) Assumindo o conceito de golpe para 1992 e 2016, como chamar o golpe de 1964, quando a ordem constitucional foi suspensa por 26 anos, milhares foram presos e o presidente deposto só voltou 17 anos depois dentro de seu caixão fúnebre?; 2) Faz sentido chamar de golpistas os senadores que votaram para manter os direitos políticos integrais da presidente deposta, que até hoje mantêm todos os privilégios de qualquer ex-presidente?; 3) Se houve um golpe, por que a presidente deposta não se apresenta como candidata a presidente, para que os eleitores repudiem os golpistas?; 4) Quais foram as falhas jurídicas nos impeachments do Collor e da Dilma que permitiriam dizer que a constituição não foi respeitada?; e 5) Pode-se chamar de golpe os movimentos em que os presidentes depostos são substituídos pelos vices que eles escolheram, como no caso Itamar, escolhido por Collor, e Temer, escolhido duas vezes por Dilma?
Devemos cobrar que a UnB colabore com a verdade oferecendo disciplinas como “Onde a democracia errou ao manter a esquerda por 13 anos no governo sem uma única reforma estrutural na sociedade e na economia do país, sem erradicar o analfabetismo, sem elevar a consciência política da população e envolvendo-se no mais escandaloso período de corrupção da história?”. A disciplina será um bom teste para ver se o professor zela também pela liberdade acadêmica plena, aceitando a opinião de seus alunos.
*Cristovam Buarque é senador pelo PPS-DF e professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)
Cristovam Buarque: Kit sobrevivência
Cristovam Buarque: A verdade do momento
Dirigentes petistas perderam o sentimento da realidade, a noção da verdade
O jornalista Fernando Gabeira publicou neste jornal, no dia 25, artigo sob o título “O momento da verdade”, onde mostra que, ao não aceitar a condenação de Lula pela Justiça, o PT demonstra seu divórcio entre a imaginação política dos militantes e a verdade do sentimento da nação. Não houve, como esses dirigentes esperavam, um levante popular contra a Justiça. Porque não há uma causa em jogo. Trata-se apenas de manter ou não o Lula na disputa presidencial, sem um rumo diferente para o Brasil.
O que há de mais grave é que o PT não entendeu a gravidade do momento: não reconhece seus erros, não percebe que o mundo real aposentou a falsa verdade entranhada nas mentes dos seus militantes. Depois de quase duas décadas, as falsas narrativas — da “ascensão da classe média pela Bolsa Família”, do “salto científico pelo Ciência Sem Fronteiras”, da “revolução educacional pelas vagas na universidade” — transformaram-se em realidades alternativas, que não apenas criaram narrativas, mas se acreditam nelas.
A tragédia brasileira é não poder contar com o imenso potencial do PT e do Lula, porque eles perderam o sentimento da realidade, a noção da verdade, a credibilidade das propostas e o patrocínio de um novo rumo para o Brasil. E isso se deve por terem abandonado propostas de economia eficiente, sociedade justa, civilização sustentável, política ética. Perderam o vigor transformador que apresentavam, passando a acreditar na imagem de verdade que criaram para justificar o poder pelo poder, inclusive de que o Temer seria ótimo presidente se a Dilma tivesse algum problema que a impedisse de continuar seu mandato.
O povo não foi à rua para atacar a Justiça porque não vê uma causa por trás do PT ou de Lula. Em 1964, foi preciso usar tanques e soldados para impedir o povo de ir à rua pela legalidade e pelas reformas em marcha lideradas por Goulart. Hoje, o impeachment foi feito dentro da legalidade, o substituto foi escolhido pelo PT; o partido ficou 13 anos no poder, sem deixar qualquer reforma em marcha, apesar da expansão de programas assistenciais ameaçados pela inflação e recessão.
O povo não foi para a rua na semana passada porque não viu causa transformadora para defender e pela qual lutar; além de perceber no PT um partido condenado eticamente sob fortes evidências de corrupção na Petrobras, fundos de pensão etc., com indícios de benefícios injustificados, remunerações superfaturadas, compra de apartamento na praia e sítio de lazer.
A incapacidade para ver a realidade está impedindo o Brasil de beneficiarse do que ainda sobrevive no PT, inclusive aqueles que não se corromperam pelo poder ou por dinheiro com falsas narrativas. O Brasil ganharia muito se eles fizessem uma autocrítica e pedissem desculpas ao país pelos erros cometidos. Seria a verdade do momento para ajudar o Brasil a enfrentar o arriscado futuro próximo, que está ameaçado pelos desastres que cometeram.
Cristovam Buarque: Bola redonda, escola quadrada
O Brasil tem o maior número de grandes craques de futebol porque é um país com muitos habitantes, onde todos praticam o futebol quando crianças e a bola é redonda para todos. Desde pequenos, os meninos têm a oportunidade de desenvolver o próprio talento e a Seleção é escolhida entre os milhões de jogadores. Mas não temos até hoje um único Prêmio Nobel, porque milhões são impedidos de desenvolver o seu talento intelectual por falta de escola de qualidade. A bola é redonda para todos, mas a escola é quadrada para a maior parte dos brasileiros.
Ao mesmo tempo que faz o Brasil ser rico em futebol, a forma redonda de todas as bolas faz com que a maior parte dos craques tenham origem social humilde e sejam de origem racial africana. Se pobres e negros são maioria, os craques são pobres e negros também. Isso vai mudar porque já não basta bola redonda para fazer um jogador de futebol: é preciso também um campo onde a bola possa rolar, com duas barras para onde chutar.
Em 2006, o grande jogador francês Thierry Henry explicou o sucesso brasileiro no futebol dizendo que, na França, os meninos iam à escola; no Brasil, eles ficavam na rua jogando. Mas isso acabou. Não porque nossos meninos ficam na escola, mas porque já não podem ficar na rua devido à violência e à urbanização desastrosa. Nossos pobres ainda têm a bola redonda, mas estão perdendo os campos de pelada nas ruas. A formação de nossos craques agora é feita em clubes, escolinhas ou em boas escolas com horário integral.
Daqui para a frente, jogar futebol vai ser um privilégio para poucos e a qualidade do futebol vai cair. Como na educação, haverá uma seleção social na base da pirâmide: o talento será impedido por falta do espaço apropriado. Mesmo que a bola continue redonda para todos, vamos eliminar os futebolistas pobres na infância por falta de lugar onde jogar. Faremos com o futebol o que desde sempre fazemos com as profissões intelectuais: será preciso pagar para jogar, como hoje se paga para estudar em uma boa escola.
Alguns anos atrás, uma professora da Finlândia me contou que seus alunos estavam nervosos porque iam enfrentar um time de futebol júnior de alunos brasileiros. Até que um dos colegas finlandeses disse para não se preocuparem, porque, se os brasileiros podiam pagar a viagem, eles não tinham sido escolhidos por serem os melhores, mas por serem ricos.
Em poucos anos, mudará a cor da pele e a origem de classe de nossos craques, que terão pais mais brancos e mais ricos. E o Brasil vai cair no ranking mundial, não porque rico joga pior que pobre, mas porque o número de ricos é menor; e a interdição dos pobres ao futebol vai impedir muitos craques de desenvolverem o talento. Além de que as classes média e alta orientam seus filhos a deixarem o futebol para disputar ingresso em faculdade no lugar de um time profissional.
Devido à violência nas ruas e à má urbanização, para oferecer a mesma oportunidade necessária ao aproveitamento do talento futebolístico de nossos jovens, será preciso redondear as escolas, todas com a mesma qualidade, para que eles desenvolvam a prática de esportes na escola, porque já não será possível nas ruas. Mas nada indica o desejo brasileiro de continuar sendo campeão em número de craques se isso exigir garantir campos de futebol para todos, em escolas de qualidade em horário integral.
Em algumas poucas décadas, vai mudar a cor da cara e a origem social de nossa Seleção, e cairá sua qualidade pela limitação no número dos que disputam um lugar nela. Hoje incineramos cérebros; vamos incinerar pernas também. Inconscientemente, nossas elites resistem a redondear todas as escolas. Afinal, pobres e negros tomaram o lugar dos filhos da elite na seleção de futebol, desde que, a partir dos anos 1930, os negros puderam entrar nas quadras.
Agora, haverá resistência, ainda que inconsciente, para que não tomem os lugares dos filhos dos ricos na seleção do conhecimento. Correremos o risco de ficarmos sem Taça do Mundo nem Prêmio Nobel, porque até hoje não deixamos as massas terem acesso ao conhecimento. Com menor número de jogadores, perderemos talentos, como perdemos na ciência e demais atividades intelectuais.
Nem Nobel, nem campeões, esse é o destino do país que não redondeia suas escolas em um tempo em que não basta bola redonda, precisa também de um lugar onde jogar, sem medo de bala perdida, de atropelamento ou assaltos, além de mosquitos carregando dengue, malária, Zika ou febre amarela.
Cristovam Buarque: A luz do diálogo
Não há democracia sem respeito à legalidade
Se fosse um corpo celeste, o Brasil estaria ingressando num buraco negro, de onde nem a luz consegue escapar. O ano começa com o julgamento de Lula na segunda instância. Ele poderá ser absolvido da condenação na primeira instância ou, se confirmada, ele terá sua candidatura suspensa, por força da Lei da Ficha Limpa, sancionada por ele próprio em junho de 2010.
Se a sentença na primeira instância for rechaçada, as outras condenações da Lava-Jato ficarão sob suspeição. A população vai entender como uma volta ao tempo das propinas como prática aceita na política. Entraremos na escuridão da descrença na Justiça.
Mas a suspensão do direito do ex-presidente a se candidatar não vai diminuir a escuridão política. Apesar de tantos depoimentos, parte da opinião pública ainda não está convencida de que ele seja o dono do apartamento recebido em troca de propina. Os que conhecem o ex-presidente Lula têm sérias críticas à sua prática populista, ao aparelhamento que ele fez do Estado, desestruturando estatais e fundos de pensão.
Criticam sua responsabilidade na escolha da candidata Dilma, como também na escolha de Michel Temer para vice-presidente, sabendo das suspeitas que pairavam sobre ele; a subordinação que ele fez da educação aos interesses eleitorais, substituindo a Bolsa Escola pela Bolsa Família e iludindo o povo com mais vagas no ensino superior sem o correspondente esforço na educação de base.
Criticam seu uso, antes do Trump, de narrativas falsas para apresentar um Brasil que não era verdadeiro. Mas, ainda que acreditando no depoimento de Antônio Palocci sobre o “pacto de sangue”, muitos desses críticos não têm certeza das provas de que ele se corrompeu por um apartamento na praia.
Se for condenado, tudo indica que o ex-presidente usará o direito legal de apelar para instâncias superiores, mantendo a candidatura sub judice. Poderá ser candidato, vencer a eleição e a Justiça Eleitoral diplomar o segundo colocado, que tomará posse, conforme a lei.
A eleição com candidatos cassados pela Justiça é legal e democrática, mas tira parte da credibilidade que a democracia exige na escolha de um presidente capaz de liderar o país. Sobretudo quando o povo percebe que notórios corruptos não serão cassados pela Justiça. Mesmo assim, não há democracia sem respeito à legalidade; e a Lei da Ficha Limpa em vigor condena cassando.
Isso não ocorreria se no debate sobre a Lei da Ficha Limpa tivesse sido aceita a sugestão de condenar o político corrupto, obrigando-o a usar em todas suas mensagens e aparições a marca de ficha suja, deixando ao eleitor o direito de votar, mesmo sabendo da condenação. Como se faz com o cigarro: em que se informa que faz mal à saúde, mas ao fumante é deixado o direito de consumir. Agora não há como evitar o buraco negro político em que o Brasil entrou.
A escuridão vai demorar, porque a luz estaria no diálogo, e isso não parece possível hoje. O sectarismo, essa energia perversa que impede a luz na política, não aceita debate, inclusive o proposto por este artigo.
Cristovam Buarque: É a educação, gente!
A educação de um indivíduo não o faz mais honesto, mas a educação de todos os indivíduos faz um povo mais preparado para eleger pessoas decentes e sem demagogias, e com melhores e mais sérias promessas para o futuro
Quase sempre a permanência de um problema está no entendimento equivocado de suas causas. A pobreza e a concentração da renda continuam, apesar do crescimento econômico, porque é um erro entendê-las como problemas da economia, que seriam superadas pelo aumento da produção e do rendimento.
Ao longo do século 20, o Brasil foi um dos países que mais se desenvolveram, mas a renda se manteve concentrada e o país continua campeão em desigualdade social. Erramos no enfrentamento da questão, ao esperarmos que esse problema seria resolvido pelos economistas e empresários.
Essa não seria uma realidade hoje se antes ela tivesse sida enfrentada pelos educadores e políticos, usando a escola, não as fábricas, como vetor da distribuição de renda. Ela não decorre de seu aumento, mas da distribuição da educação entre todos; para que todos tenham acesso aos empregos e às atividades que propiciam a renda.
Sem distribuição de educação, não há distribuição de renda, porque sem educação o trabalho livre é uma ilusão, mantendo-se, portanto, a estrutura distributiva característica de sistemas servis. Por mais que o crescimento econômico levasse ao aumento da renda social, ela não seria distribuída para os escravos. O trabalhador pobre, mesmo livre da escravidão, continua incapaz de se inserir no mercado de trabalho porque, para isso, ele depende da educação a que não teve acesso.
Entretanto, se a educação fosse bem distribuída, como em Cuba, Coreia do Norte, Alemanha Oriental, o problema da concentração se resolveria, mas todos ficariam condenados à pobreza. A frase “é preciso fazer o bolo antes de distribuí-lo” não funciona no Brasil; assim como também não funciona a frase “a distribuição antecipada faz o bolo”.
Erramos ao acreditarmos que a economia colocaria um fim à pobreza social. Ao longo do século 20, conseguimos crescer ao ponto de nos tornarmos o sexto maior PIB do mundo, mas continuamos pobres, na 98ª posição mundial em renda per capita, porque nossa produtividade está em 78º lugar no ranking.
A renda social cresceu com a população, não com a capacidade de cada brasileiro de produzir. Enfrentamos o fim da pobreza pela economia e não pela formação de mão de obra qualificada. Com isso, a pobreza se manteve. Ao lado da baixa produtividade, não crescemos mais por causa da enorme preferência nacional pelo consumo imediato e pela baixa propensão nacional à poupança, o que impede investimentos que dinamizariam a produção.
Nós, economistas, fracassamos por não levarmos em conta que o problema não decorre da economia, mas da mentalidade nacional, da consciência, da educação que forma o individualismo, o consumismo, o corporativismo.
A pobreza, a concentração de renda, as visões imediatistas, consumistas e individualistas, sem um sentimento coletivo de nação, levariam quase que fatalmente ao maior de nossos problemas: a brutal violência que caracteriza a sociedade atual. Mais uma vez, por erro de foco, enfrentamos a violência como uma questão de polícia, não de escola.
Décadas atrás, nossos educacionistas, especialmente Darcy Ribeiro, alertaram para o fato de que o problema da violência não seria enfrentado corretamente enquanto fosse tratado apenas como uma questão de polícia. A violência, assim como a pobreza e a concentração de renda, é uma questão de impunidade, mas é, sobretudo, a educação que reduz a desigualdade e forma uma sociedade civilizada e pacífica.
A corrupção está, finalmente, sendo enfrentada por juízes, policiais, promotores e procuradores, mas não será vencida enquanto não for enfrentada pelos eleitores. O juiz consegue prender político corrupto, mas não elege político honesto. Isso só vai acontecer quando o eleitor for educado: primeiro, para não precisar sobreviver das promessas dos candidatos e dos favores de eleitos; segundo, para discernir as diferenças entre os candidatos.
A educação de um indivíduo não o faz mais honesto, mas a educação de todos os indivíduos faz um povo mais preparado para eleger pessoas decentes e sem demagogias, e com melhores e mais sérias promessas para o futuro. Há décadas tentamos garantir competitividade sem produtividade, usando subsídios, isenções fiscais e protecionismos. Na economia moderna, a competitividade só vem da produtividade e da inovação, que dependem da ciência e da tecnologia. Essas, por sua vez, dependem diretamente da educação de base.
Cristovam Buarque: O Brasil não vota
Brasileiros elegerão novo presidente sem eleger novo Brasil
Ao olhar ao redor, percebemos que o presente não está bem; olhando para frente, é o futuro que não parece bem. A sensação é de caminharmos sem coesão nem rumo para uma desagregação social e para o atraso econômico, científico e tecnológico. Mesmo assim, tudo indica que no próximo ano os brasileiros elegerão um novo presidente da República sem eleger um novo Brasil.
Estamos paralisados pela vergonha da corrupção, da concentração de renda, da baixa produtividade e consequente pobreza, da violência sob tantas formas. Estamos em dívida com os pobres, idosos e jovens, crianças e mulheres, com os índios e os negros.
Junte a isso um país sem instituições sólidas; um sistema judiciário bipolar; um Estado sem eficiência e privatizado política e sindicalmente; ciência e tecnologia deficientes; um sistema educacional precário e desigual; e, sobretudo, imenso descrédito nos políticos devido à corrupção generalizada. Reafirmo: o Brasil precisa eleger não apenas um novo presidente, mas também um novo Brasil.
Mas o eleitor não parece preocupado com o país de todos, apenas com o seu próprio presente ou de seu grupo social. Votará com raiva dos atuais políticos, e não com esperança nos que virão. Preocupado apenas com a vitória nas urnas, e não com o país. Em consequência, o candidato mira cada corporação e diz o que o eleitor quer ouvir, não o que ele precisa ouvir.
Uma prova de que os brasileiros não votam pelo Brasil é como as classes médias e ricas preferem gastar cerca de R$ 80 bilhões por ano — R$ 20 mil por família — com a educação de seus filhos a votar por uma escola pública gratuita com qualidade para todos. Talvez porque não queiram seus filhos misturados com o restante do país, talvez porque não acreditem que isso seja possível aqui, ou talvez porque, para ele, o Brasil não interessa. Por isso, o eleitor prefere pagar serviços especiais só para si e sua família a receber gratuitamente o mesmo direito de todos.
O eleitor prefere manter a Previdência insustentável no futuro, desde que pagando sua aposentadoria pessoal esperada para breve, a defender uma reforma que traga sustentabilidade garantida para todos. A Previdência é vista como um direito de cada aposentado, não como uma instituição do Brasil para os idosos de hoje e também aqueles das gerações futuras. Por não votar pelo Brasil, candidatos e eleitores preferem ilusões do “faz de conta” do que a realidade de “fazer as contas”.
Para eleger o Brasil, cada candidato deveria transformar a eleição em um plebiscito sobre qual país queremos, como fazê-lo, quanto custará, quem vai pagar e como atrair o eleitor para votar pelo bem comum. Mas isso dificilmente vai acontecer, porque o Brasil não vota!
Felizmente, o país não perde a esperança, porque transcende o presente e suas corporações, e tem vocação para se fazer nação, através dos séculos de história, com novas gerações de eleitores e com políticos diferentes.
Cristovam Buarque: Afogamento e fuga
Em 1995, nasceram 3,1 milhões de crianças no Brasil. Em 2017, 30 mil delas continuam analfabetas por não terem entrado ou terem abandonado a escola antes de aprender a ler. Cerca de 2,6 milhões concluíram o ensino fundamental. Apenas dois milhões terminaram o ensino médio e dessas, não mais do que 600 mil adquiriram conhecimento suficiente para enfrentar os desafios da sociedade do conhecimento onde viverão, falando línguas estrangeiras, dominando Matemática, Informática, Geografia, História, Literatura, Filosofia.
Pouco mais de 720 mil (49%) estão no ensino superior e, considerando a atual taxa de evasão/abandono nesse nível educativo, não chegará a 355 mil (11,5%) o número daquelas 3,1 milhões de crianças que, até o ano de 2022, concluirão o ensino superior. As avaliações mostram que a qualificação profissional desses graduados deixa muito a desejar. O aumento no número de vagas não teve correspondência no aumento do número e da qualidade do ensino médio. Apenas 17 mil (0,55%), no máximo, farão cursos de pós-graduação e terão condições de serem alguns dos raros cientistas de que o Brasil tanto carece.
Destes nascidos em 1995, o Brasil não terá mil como cientistas de nível internacional trabalhando com ciência. A perversidade dessa pirâmide é suficiente para mostrar o despreparo do Brasil para ingressarmos com eficiência no século XXI, com a economia global baseada no conhecimento. Ainda pior, boa parte dos nossos raros talentos científicos estão emigrando para países onde poderão desenvolver melhor suas atividades profissionais e terão melhores condições de vida para si e para suas famílias.
Entre o nascimento e a vida adulta, o Brasil afoga milhões de seus cérebros na infância e adolescência, e está provocando a fuga dos poucos que conseguem avançar até o último nível do conhecimento formal e do exercício da atividade científica. A dificuldade criada por estes dois fatos, afogamento e fuga de cérebros, mostra uma sociedade imediatista nos propósitos e sem vocação para o desenvolvimento intelectual. Os brasileiros se revoltariam se tomassem conhecimento de que nossos governos estão omissos diante da destruição de parte de nossas minas e deixando que países estrangeiros levem uma parte de nossos minérios.
Entretanto, nenhuma indignação é manifestada, e nada é feito para impedir essa realidade. Assistimos passivamente ao afogamento e fuga, sem ao menos percebermos que estamos perdendo nosso ouro do século XXI: o conhecimento, a ciência, a tecnologia e a cultura que nossos cérebros poderiam criar. Permitimos que levem a verdadeira e permanente riqueza: a inteligência de nossas crianças que deixamos de desenvolver e a inteligência de nossos doutores que partem para o exterior. Não teremos futuro se não formos capazes de aproveitar os cérebros de todas as nossas crianças, de mantê-los aqui em plena atividade profissional e de trazer de volta os nossos cientistas que emigraram para outros países, dando-lhes todas as condições de trabalho.
Cristovam Buarque: Retomada da coesão
Política e a sociedade atravessam um forte sismo
O próximo presidente terá grandes desafios em seu governo: no início do terceiro século de nossa independência, o país vive um processo de desagregação social, descrédito político, déficits fiscais, endividamento geral. Ao mesmo tempo, passa por uma paralisia econômica, com baixa produtividade, poupança reduzida, falta de competitividade e inovação.
O sucessor de Temer será eleito num cenário em que a política e a sociedade atravessam um forte sismo, sem luz teórica e intelectual para definir o rumo do futuro. E se essa situação perdurar por mais algumas décadas, o Brasil ficará para trás no cenário das transformações que ocorrem no mundo.
Aconteceu isso na Primeira Revolução Industrial, quando preferimos as amarras da escravidão e da economia agrícola exportadora, sem capacidade educacional ou técnica. Quando escolhemos, ainda nesta época, o protecionismo, a falta de educação, de ciência e tecnologia.
Por essas e outras razões, em nenhum outro momento de nossa história republicana o Brasil precisou tanto de um partido que conduza o país na direção de sua recuperação. Nesse quadro, o PPS sobra como uma alternativa ainda com credibilidade, embora tratada e se comportando como uma legenda irrelevante.
O primeiro passo para a retomada da coesão nos próximos anos consiste em recuperar a credibilidade e o respeito da sociedade, dos seus dirigentes e políticos em geral. Para isso, o próximo governo deverá:
a. Extinguir todos os privilégios e mordomias que beneficiam os quadros dirigentes do setor público; b. Ter transparência nas relações entre os poderosos para impedir o uso do Poder Executivo sob a forma de cooptação, mensalão ou nomeação de parlamentares para ocupar cargos públicos (nepotismo e fisiologismo);
c. Eliminar os subsídios dados para financiar gastos de empresas com recursos públicos para beneficiar seus sócios e funcionários;
d. Combater a impunidade, inclusive pela manipulação do tempo de julgamento (métodos protelatórios);
e. Apresentar uma reforma fiscal que seja fortemente progressista e simplifique o sistema;
f. Enfrentar o crime organizado e a violência urbana, com responsabilidade e intervenção do governo federal.
Para um direcionamento em sintonia com o futuro das transformações em curso, serão necessários:
a. Definir e dar total apoio à constituição de um Sistema Nacional do Conhecimento e da Inovação;
b. Construir uma educação de base de qualidade, que ofereça ao país o aproveitamento pleno de cada cérebro brasileiro para que, em três ou quatro décadas, o Brasil tenha um sistema educacional eficiente;
c. Reformar ou criar um sistema de previdência capaz de eliminar as desigualdades no tratamento de nossos aposentados e dar sustentabilidade ao sistema, no longo prazo;
d. Levar adiante todas as reformas necessárias para desamarrar a economia brasileira, enfrentando a burocracia e o atraso educacional.
Cristovam Buarque: A eficiência é progressista
China percebeu que seria necessário respeitar o mérito
Uma economia pode ser eficiente e não servir ao povo, mas uma economia ineficiente não serve ao povo. A China entendeu isso ao sair da visão da esquerda tradicional e antiquada de que a justiça se faria pela intervenção na economia, mesmo ao custo de sua eficiência. Antes, o Estado definia o produto a ser fabricado, os salários a serem pagos, a distribuição a ser realizada, mesmo que isso sacrificasse a eficiência da economia para produzir mais. A própria palavra e o conceito de eficiência eram vistos pela esquerda como assunto burguês, reacionário. O resultado dessa visão ideológica foi que a igualdade não serviu ao povo, porque, sem eficiência, pouco se distribuía.
A globalização, a robótica, a cooptação de parte dos assalariados no desejo e na possibilidade de alto consumo, o sonho de liberdade individual — inclusive para o consumo — e os limites ecológicos impostos ao crescimento econômico exigiram mudanças no pensamento e nas formulações socialistas. Os países do Leste não entenderam isso, e o “muro caiu”, a China entendeu e pôs em prática essas mudanças, beneficiando milhões de pessoas e construindo a primeira potência mundial do século XXI. Nas mãos dos governos chineses, a eficiência econômica ficou progressista.
Ao lado da busca e da permissão da eficiência, respeitando o mercado, a China percebeu que seria necessário respeitar o mérito e o esforço de cada indivíduo, com remunerações e recompensas diferenciadas. Ao respeitar e recompensar o mérito, pelo talento e pela persistência, o novo comunismo chinês tolerou a desigualdade na renda e no consumo da pessoa conforme o mérito, ampliando a produção social total, e suas estatais passaram a ser elementos positivos, não pesos na economia.
O “comunismo” chinês entendeu o papel da ciência e da tecnologia, na realização dos desejos de bem-estar da população, ao ponto de ter como seu atual grande herói nacional o empresário e criador Jack Ma, um misto de Steve Jobs, Bill Gates, Bezos e Mark Zuckerberg. De certa forma, a revolução chinesa dobrou uma esquina, passando de mudanças baseadas na política e prioridades sociais de Mao TséTung, para as mudanças tecnológicas de Jack Ma. A China do século de Mao ingressou no século de Ma.
Mas, diferentemente do capitalismo puro, esse novo socialismo com respeito à eficiência econômica busca oferecer a cada cidadão a mesma oportunidade para desenvolver seu talento, com sistemas eficientes e no máximo igualitários na educação e saúde. A igualdade na educação e na saúde ainda é um desafio da China para construir sua utopia social, mas é o caminho escolhido pelo país. Da mesma forma que ainda é um desafio a construção de um modelo sustentável ecologicamente, para o qual a China já começa a dar os primeiros passos.
Não se deve copiar no Ocidente o sistema político chinês do mérito por dentro do partido único, mas as forças progressistas do mundo precisam se inspirar na visão de que só com uma economia eficiente será possível servir ao povo.
Cristovam Buarque: Não é a direita que cresce, mas a esquerda que diminui
A crise política e econômica desencadeada pelo governo do PT levou o País para a pior recessão da história causando desemprego de milhões de brasileiros e uma imensa desmotivação e descrença da sociedade na política e nos políticos. A esquerda retrógrada e populista representada pelo lulopetismo fortaleceu setores da extrema direita que ganham atenção do eleitorado com ideais conservadores e, até mesmo, perigosos do ponto das conquistas sociais.
Ao analisar a situação política brasileira, sobretudo o aumento do apoio à direita, o senador Cristovam Buarque (PPS-DF) afirmou que grande parte da responsabilidade está relacionada ao “fracasso das esquerdas e forças progressistas” que não foram capazes de “enterrar ideias velhas”. Para ele, a direita brasileira não está crescendo, mas a esquerda é que está se “apequenando”.
“Vivemos em mutação”
“O que construímos [a esquerda] ao longo dos séculos foi enterrado com o avanço tecnológico e intelectual das ultimas três décadas. Estamos carentes de filósofos no mundo principalmente no Brasil. Não fomos capazes de um projeto de desenvolvimento global. Desenvolvemos a Europa, mas deixamos a África para trás. Resultado: uma forte onda migratória para o continente europeu. Daí vem a direita, pega esse fato, e ganha a população que sofre com os efeitos da imigração. Não fomos capazes de desenvolver um projeto que fizesse desnecessária a imigração. Fracassamos como esquerda e forças progressistas”, criticou.
Política antiquada
O senador afirmou que no País os partidos de esquerda submeteram intelectuais brasileiros a legitimarem uma política antiquada, velha e obsoleta.
“No Brasil tivemos um agravante. Os partidos de esquerda submeteram os filósofos a legitimarem uma esquerda antiquada, velha, obsoleta e conservadora. Esta aí o PT. Com ideias antiquadas e velhas. Nada haver com a realidade em mutação que vivemos hoje. Os poucos filósofos que entraram no PT ficaram submetidos ao culto da personalidade de Lula. Incapazes de fazerem uma análise, por exemplo, do por que da corrupção. Preferem negar”, afirmou.
Para Cristovam, o crescimento de Jair Bolsonaro (PSC-RJ) nas pesquisas de intenção de voto para a disputa presidencial de 2018 mostra ainda que a direita no País não está crescendo, mas que a esquerda está diminuindo e se “apequenando”.
“Não é a direita que cresce. É a esquerda que tá diminuindo e se apequenando por não conseguir oferecer alternativas para o que ocorre no mundo. Temos que nos preparar para esse mundo que chegou. O que vai barrar a direita é termos propostas melhores. Bolsonaro cresce porque não damos as respostas necessárias. O que ocorre aqui conosco também ocorre no restante do mundo”, analisou.