Cristovam Buarque: Governo em parceria

Governar é a arte de enfrentar ou a arte de concertar. Promover a disputa entre os interesses da sociedade ou ter habilidade para combinar parceria com todos os agentes sociais. E a arte da parceria deve assumir que o Estado existe para servir ao público, não o contrário.

No lugar de fomentar a união com a sociedade, os últimos governos do DF promoveram enfrentamento entre partidos, sindicatos, servidores, usuários, empresários, contribuintes e o público. Negociaram para chegar ao Buriti e, depois de eleitos, fizeram acordos com deputados para atender aos pedidos deles. Acataram reivindicações de sindicatos, fizeram disputa entre siglas de partidos e acertos com empresas, usando dinheiro público e deixando os usuários dos serviços em filas.

A consequência foi o sacrifício do contribuinte, seja por superfaturamento para beneficiar empreiteiras, com obras desnecessárias e ineficientes, seja pelo aumento de remunerações e rendas, sem cuidar da qualidade do atendimento ao público. O resultado foi a falência da máquina do governo, que não consegue cumprir suas funções por falta de recursos.

As relações dos últimos governos do DF com os deputados distritais foram de favorecimento, com nomeações que nem sempre respeitavam o mérito para o cargo. A arte da parceria exige o diálogo respeitoso com os parlamentares, mas sempre pautado no interesse público, não em compromissos eleitorais. O mérito e a dedicação de nomeados são mais importantes que as opções partidárias deles.

A corrupção é exemplo do desrespeito ao público, mas a ineficiência e o desperdício também são consequência da falta de parceria entre público e governo. Se ela existisse, o governo do DF não teria cometido a insensatez de gastar quase R$ 2 bilhões na construção do Estádio Nacional de Brasília. Foi o desprezo ao público e ao contribuinte que permitiu o vergonhoso desperdício, com suspeitas de superfaturamento e pagamento de milhões de reais em propinas.

O DF teve uma experiência de governo parceiro: a implantação da faixa de pedestre foi possível graças à parceria entre o governo, o Correio Braziliense, a Rede Globo, motoristas e pedestres, que desenvolveram o respeito a uma simples tinta no chão. A Bolsa Escola foi uma parceria entre mães, professores e governo, para que as crianças não faltassem às aulas. A responsabilidade fiscal, que deixou as finanças do governo sólidas, entre 1995 e 1998, foi uma prova de respeito ao contribuinte, mesmo que não tenha atendido a reivindicações corporativas, nem erguido obras gigantescas. A adoção e a execução do orçamento participativo também foram exemplos bem-sucedidos dessa união de forças.

Nosso desafio em 2018 será eleger um governo que exerça a arte de uma grande parceria entre os agentes sociais. A arte de respeitar e dialogar sem ceder à força dos empreiteiros, nem ao capricho dos sindicatos; proteger o contribuinte e os usuários com austeridade que evite desperdícios e excesso de gastos, garantindo-lhes a máxima qualidade nas obras e nos serviços.

Nada impede que, este ano, outro governo seja eleito com a filosofia de exercer a arte da parceria entre agentes da sociedade: Executivo e Legislativo a serviço do público; contribuintes satisfeitos com a eficiência e a austeridade; servidores motivados e comprometidos com usuários. O governo sendo o maestro que combina pagar bem aos servidores sem sacrificar os contribuintes, oferecendo serviços com competência, respeito e dedicação. Um governador que conviva com seu vice e todos os parlamentares, com respeito entre si e deles com o povo.

Para isso, a eleição em si deve ser uma parceria entre eleitores e candidatos, para a escolha de políticos que, depois de eleitos, sejam capazes de se tornar parceiros do público. O primeiro passo para isso é preocupar-se menos com as siglas de partidos que disputam as eleições e mais com as propostas apresentadas pelos candidatos realmente comprometidos com o bem da população e com o crescimento do DF. (Correio Braziliense – 19/06/2018)

 


Cristovam Buarque: Cuidar de Brasília

Neste ano, a população brasiliense terá o direito e a obrigação de escolher seu governador e seus parlamentares. As pesquisas mostram que, mesmo os candidatos em vantagem de intenção de votos, perdem para as opções branco, nulo, não sabem, evidenciando-se a recusa dos eleitores aos candidatos sugeridos. Isso se explica pelo desânimo da população com a classe política e com as siglas a que os candidatos estão filiados. Muitos políticos com mandato frustraram o eleitor no que se refere ao comportamento ético e à seriedade nas prioridades, enquanto as siglas se divorciaram do que propunham antes. O eleitor, que deveria ir à urna com esperança no futuro, está desiludido, perplexo e com raiva.

O ânimo voltaria se ele sentisse que vai escolher não apenas quem governará a cidade. O sentimento seria diferente se, no lugar de votar para eleger deputado ou senador, o eleitor soubesse que escolhe os representantes para definir as prioridades, fiscalizar o governador, buscar apoio do Brasil para o Distrito Federal e representar o DF no Brasil. Certamente haveria ânimo entre os eleitores para escolher quem vai cuidar dos 3 milhões de habitantes que hoje estão com medo da violência, do desemprego, dos engarrafamentos; em especial das aproximadamente 400 mil crianças e jovens sem boas escolas, sem atividades culturais, sem perspectivas de emprego; dos doentes em filas, sem médicos e remédios; dos pobres sem moradia.

O encanto voltará ao eleitor quando ele perceber a possibilidade de eleger pessoas honestas, tanto no comportamento pessoal quanto na definição das prioridades; ou quando ele compreender que o propósito do político não é beneficiar-se de mordomias e vantagens, nem levar sua sigla ao poder, mas se unir aos que se propõem e têm competência reconhecida para cuidar de toda Brasília.

Cuidar de Brasília é olhar para as crianças e os jovens: o governador, os deputados e os senadores agindo como protetores, colocando em funcionamento as escolas, a formação profissional, promovendo diversão cultural, lazer, sobretudo esperança; apoiando os idosos; sensibilizando-se e encontrando soluções para o desemprego e para a falta de moradia.

Cuidar de Brasília exige respeitar a vontade legítima do povo, sem cair no vício político de atender reivindicações de interesses pessoais vindas dos parlamentares; da mesma forma, respeitar os servidores, sem os quais não é possível cuidar da cidade, mas não ceder às pressões corporativas quando sacrificam a população e os usuários dos serviços.

Cuidar de Brasília é não deixar que as vias estejam maltratadas por buracos ou lixo; tampouco é deixar que as edificações em prédios ou viadutos ameacem desabar; é prever o risco de escassez de água e tomar as medidas em tempo para evitar o racionamento. É ter capacidade para eliminar as filas nos hospitais graças a programas de prevenção da saúde da família, instalação de saneamento e boa gestão para que não faltem profissionais, equipamentos nem remédios nos hospitais.

Cuidar de Brasília exige responsabilidade com o uso dos recursos financeiros de que dispomos. O GDF, em 2018, terá receita estimada de R$ 42,4 bilhões. São cerca de

R$ 13.250 por habitante. Desses bilhões, 32,07%, ou seja, R$ 13,6 bilhões vêm do Fundo Constitucional, financiado por brasileiros de outras partes do país, inclusive de regiões pobres. A média da receita per capita dos municípios brasileiros é inferior a

R$ 3 mil e eles transferem R$ 4.500 para cada habitante do DF. Ao tomar conhecimento de desperdícios, tal qual fazer um estádio de futebol ao custo de quase R$ 2 bilhões, em breve o Brasil se recusará a transferir recursos para financiar nossos gastos. Por isso, cuidar de Brasília é ser eficiente no gasto dos recursos que recebemos.

Cuidar de Brasília é fazer um grande encontro das lideranças, independentemente de seus partidos, visando colocar a cidade e seus habitantes, pobres ou ricos, crianças ou adultos, do presente e do futuro, como o propósito da política e da eleição, mesmo que para isso seja preciso deixar de lado preconceitos, divergências e interesses pessoais. Brasília exige esse encontro — cada líder colocando a coragem, a ética e a população acima dos interesses dos políticos e de suas siglas para cuidar bem da cidade. (Correio Braziliense – 05/06/2018)

Cristovam Buarque, senador pelo PPS-DF e professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)


Cristovam Buarque: Encontro pelo Brasil

Caminhamos para o radicalismo nostálgico

Com intenção de não dividir o bloco dos que defendem alternativas “democráticas politicamente”, “progressistas socialmente” e “responsáveis economicamente”, o PPS decidiu não ter candidato próprio a presidente da República nesta eleição. Apesar de contar com nomes como Raul Jungmann, Rubens Bueno e Roberto Freire, entre outros, o partido preferiu iniciar diálogo com candidatos de outros partidos, no sentido de construir um programa de governo capaz de dar coesão e rumo ao país. Lamentavelmente, isso não aconteceu.

O PPS ficou sem candidato, os representantes daquele bloco se dividiram, e nenhum deles decola eleitoralmente. A poucos meses do pleito, o processo acena para um segundo turno entre “reacionários socialmente”, “irresponsáveis economicamente” ou “antidemocráticos politicamente”. Caminhamos para o radicalismo nostálgico, seja do autoritarismo, seja do populismo, tendo que optar entre a catástrofe e o desastre.

Se o PPS tivesse lançado um candidato que também não tivesse decolado nas pesquisas, seria o momento de se retirar, defendendo um encontro pelo Brasil. Com uma proposta que unifique os candidatos que se proponham a: respeitar a Constituição, o marco legal e as conquistas relacionadas aos direitos humanos e civis; exercer responsabilidade fiscal, com os limites de gastos dentro dos tetos da arrecadação; lutar rigorosamente contra a corrupção; escolher colaboradores com ficha limpa, sobre os quais não pesem denúncias jurídicas; na escolha desses colaboradores, priorizar o mérito técnico sobre indicações partidárias; apresentar propostas para quebrar o ciclo de pobreza, pelo aumento da renda nacional e sua distribuição social, afirmando e apresentando estratégias de longo prazo para o Brasil dar o necessário salto de qualidade na educação para todas nossas crianças, independentemente da renda da família; ter compromisso com a solução da crise financeira das universidades federais e dos institutos de pesquisas científicas, propondo um pacto para que nossos professores, alunos e pesquisadores executem uma reforma estrutural que ponha o sistema científico e tecnológico compatível com as necessidades da economia do conhecimento; assumir compromisso de enfrentar com toda força o crime organizado; definir medidas para vencer a violência urbana; apresentar propostas para uma reforma fiscal que faça nosso sistema tributário mais simples, mais justo e mais protegido contra a sonegação; definir as medidas necessárias para recuperar e promover a cultura e proteger o meio ambiente.

O candidato que se dispusesse a sair da disputa e propor um encontro pelo Brasil deveria cobrar do candidato escolhido clareza com reformas de que o Brasil precisa nas relações capital-trabalho e na sustentabilidade da Previdência para as próximas gerações. Esses são alguns dos compromissos que poderiam unificar em um grande encontro os candidatos que se proponham a conduzir os destinos do país ao longo dos difíceis anos adiante, evitando desastre e catástrofe previsíveis.


Cristovam Buarque: Mesmos compromissos

Na semana passada, ao descer do apartamento onde moro desde 1980, encontrei minha vizinha Maria José Conceição, a conhecida Maninha, que foi a criadora e executora do programa Saúde em Casa, quando Secretária de Saúde do meu governo entre 1995-98. Há quase 40 anos, somos vizinhos no mesmo bloco na Asa Norte. De maneira simpática, ela e o Toninho, seu marido, que foi Secretário de Administração, reclamaram da foto nas redes sociais que me colocou ao lado de políticos do DF que já estiveram em lados diferentes daquele em que ela e eu estávamos. A pressa para um compromisso meu em Arniqueiras não permitiu aprofundarmos o debate sobre outra foto em que eu deveria estar na eleição deste ano e, com isso, recomendar o voto do eleitor.

Não seria na foto dos que desistiram, achando que tudo ficou igual e corrupto na política; não seria na foto dos que ainda se consideram os únicos donos da cor vermelha; nem dos que se negam a fazer uma autocrítica diante dos erros éticos, políticos e estratégicos que cometeram.

Até pouco tempo atrás, ela e eu, e uma imensa legião de militantes idealistas, fazíamos parte do chamado bloco vermelho da política do DF, que se opunha ao bloco azul. Nestes 25 anos, a política no Brasil passou por um terremoto ideológico e moral. A pureza ética do bloco vermelho foi manchada; muitos se afastaram por causa disso; outros, ao perceber que a crise moral tinha uma causa anterior: a perda de substância do bloco vermelho para fazer as necessárias reformas estruturais de que o povo precisa, principalmente na educação; nem as reformas econômicas e sociais para o Brasil não ignorar as transformações que ocorrem no mundo. Partidos que se diziam de esquerda perderam substância transformadora, antes de perder a vergonha.

Deixaram de perceber mudanças fundamentais na realidade, desejos novos da população, especialmente dos jovens; de perceber a realidade da globalização, da robótica, da importância decisiva da educação, do empreendedorismo e da inovação. A velha esquerda ficou reacionária para os novos tempos da civilização; deixou de ser vanguardista no entendimento da realidade e nas propostas para transformar a realidade. Ao se opor às transformações na realidade e nos sonhos dos jovens, o vermelho amarelou. A velha esquerda não entendeu que não se faz justiça social sem economia eficiente e sem equilíbrio nas contas públicas; não entendeu que a robótica exige novas leis nas relações do capital com o trabalho; nem percebeu que as elites dirigentes usaram o Estado para servir aos seus interesses, quebrando as finanças públicas, deixando Previdência e fundos de pensão arruinados; não entendeu que o Estado foi privatizado e colocado a serviço do partido no poder, de empreiteiras, de políticos e de sindicatos, sem colocar os órgãos estatais a serviço do público.

Hoje, o “lado certo” está com aqueles que, não importa a sigla partidária, defendem a ética no exercício do poder, colocam os interesses do povo e do público na frente dos empresários, dos deputados e senadores, dos partidos e dos sindicatos; usam as mais modernas ferramentas para fazer os serviços públicos mais eficientes; têm menos preocupações com obras e mais com os serviços.

Para tentar levar adiante esses compromissos, é preciso não cair na omissão, o que é uma tentação, sobretudo para quem nenhum benefício pessoal recebe do cargo político, nem mesmo salário. A alternativa não é se unir àqueles que não entenderam as transformações em marcha. O que está em jogo não é apenas lutar por bandeiras antigas, mas construir as novas bandeiras que o mundo exige. Nosso antigo lado perdeu substância no comportamento e nas propostas, na política e na ética. A pergunta não é mais como continuar no mesmo lado, mas quais são os sonhos e os projetos do lado certo neste momento; e ter coragem de dar o passo em direção a ele.

Na administração de 1995-98, Maninha não precisou de obras caras para melhorar a saúde; conseguiu isso com saneamento, levando o atendimento médico às casas dos doentes e com boa gestão nos hospitais. Mas esse período em que fui governador e Maninha, secretária, só foi eleito porque contou com o apoio do PSDB, na eleição de 1994. Eu vou continuar insistindo, tentando, com os compromissos de sempre, com as ideias adaptadas à realidade, mantendo os sonhos e em fotos com aqueles que quiserem se unir comprometidos por um grande encontro por Brasília, olhando para o futuro.

 


Cristovam Buarque: O elevador social

A tarefa dos homens de consciência social é usarmos o capitalismo para construirmos um mundo que evolua

Pode-se sonhar com o dia em que os homens do futuro vencerão a gravidade e serão capazes de voar sem equipamentos. Mas, até lá, devemos respeitar as regras da gravidade, tirando proveito delas. Isso vale para as forças do capitalismo. Um dia, os seres humanos construirão sistemas socioeconômicos sem as consequências negativas da propriedade privada do capital; onde os sem-capital não fiquem desempregados e os com-capital não sofram as dificuldades da concorrência; um sistema onde a natureza não seja destruída na busca de lucro. Mas enquanto isso não for possível, aqueles que desejam um mundo mais justo e sustentável deverão conviver tirando proveito do capitalismo.

Enquanto o capitalismo não for superado, é preciso tirar proveito de suas vantagens, dominando seus defeitos para fazer o mundo funcionar melhor, sob o controle da ética e da política. A tarefa dos homens de consciência social é usarmos o capitalismo para construirmos um mundo que evolua na eficiência, na justiça e na sustentabilidade, graças a uma estrutura social onde a produtividade do trabalho seja crescente; a natureza seja respeitada; a produção e a renda sejam bem distribuídas, conforme o talento e a persistência de cada pessoa. Um mundo onde haja plena liberdade e a desigualdade no acesso aos bens de consumo esteja limitada entre um Piso Social — que assegure o atendimento dos bens e serviços essenciais mesmo àqueles com baixa renda — e um Teto Ecológico — que impeça a destruição da natureza pela voracidade do consumo das pessoas com alta renda.

A história recente mostrou que a tentativa de realizar um mundo melhor, ignorando as leis da ecologia e do capitalismo, foi como saltar de um edifício sem levar em conta as leis da gravidade. O salto do térreo ao sexto andar é impossível; do sexto ao térreo é suicídio. A humanidade e cada sociedade nacional não devem cometer a estupidez de querer saltar para cima, sem respeitar etapas, como foi tentado pelo socialismo, pelo desenvolvimentismo apressado e pelo populismo; ou o suicídio civilizatório de ignorar a necessidade de políticas de proteção ambiental e social.

Enquanto o capitalismo durar, o elevador será a escola com a máxima qualidade e acesso igual para todos. Com isso, será possível construir uma sociedade com alta produtividade; distribuição de renda; consumo austero em relação aos limites da natureza; garantia de um mínimo de sobrevivência, inclusive para aqueles sem emprego e renda; baixa criminalidade e reduzido grau de corrupção.

Embora esteja longe de ser um sistema ideal, o capitalismo não impede a realização desses propósitos, se a sociedade contar com valores éticos que definam normas morais para a economia eficiente — sem escravidão, com respeito à natureza — e se por meio da política forem definidas prioridades capazes de orientar o uso justo dos recursos criados pela eficiência econômica, especialmente na garantia da igualdade no acesso à saúde e à educação. O capitalismo não é voo, mas pode ser o elevador.

 


Cristovam Buarque: Outro lado

Todo problema tem duas pontas, e uma delas é a educação

Há quase um ano, a população do Distrito Federal sofre racionamento de água potável. A inauguração de um novo reservatório passa agora a sensação de fornecimento abundante pelos próximos 30 anos. Mas as mudanças climáticas podem deixar o novo açude vazio por falta de chuva; a falta de saneamento pode contaminar a água; e o aumento do consumo per capita, aliado ao aumento da população, pode provocar escassez, mesmo com maior oferta. A perenidade na disponibilidade depende também da educação do consumidor, para que ele entenda a dimensão planetária da crise hídrica e pratique um padrão austero de consumo. O problema da água tem duas pontas: hídrica e educacional.

Todos os demais problemas e desafios do Brasil passam por duas pontas.

O emprego só será criado se, de um lado, a economia fizer investimentos; mas emprego de qualidade exige educação do candidato. O aumento da riqueza nacional depende da retomada do crescimento econômico, mas, sem educação, a produtividade não aumenta, e a pobreza social continua; e se a educação não for de qualidade para todos, o problema da concentração da renda continuará. Hoje temos o oitavo PIB do mundo, mas, por falta de educação, a produtividade é baixa e estamos no 81º lugar na renda per capita e temos a décima pior concentração de renda. Graças sobretudo à educação, a Coreia do Sul tem o 14º PIB, mas é o 30º em renda per capita e tem a décima melhor distribuição de renda entre 157 países. O desemprego, a pobreza, a concentração de renda são problemas com duas pontas; a educação é uma delas.

A violência precisa ser enfrentada com polícia, Justiça e cadeia, mas isso não resolverá o problema. Há 30 anos Darcy Ribeiro dizia: “Ou fazemos escolas hoje ou teremos de fazer cadeias amanhã”. Só por meio da educação para todos será possível oferecer a mesma oportunidade a cada brasileiro, sem necessidade de artifícios de sobrevivência fora da lei. A corrupção, que é praticada por doutores instruídos, precisa ser combatida com o fim do foro privilegiado e da impunidade para eleitos, mas o mundo mostra que a corrupção cai substancialmente nos países onde todos os eleitores têm acesso à boa educação.

Todo problema tem duas pontas, e uma delas é a educação. Nisso está a dificuldade: porque o problema da educação também tem duas pontas. A ponta dos educadores, como fazer a escola ideal; e a ponta educacionista, como fazer todas as escolas com a mesma qualidade. Para cuidarmos do problema da educação, os eleitores e eleitos precisam antes ser educados. Esse paradoxo — para educar o Brasil, é preciso que o Brasil já esteja educado — só será resolvido quando for eleito um presidente estadista, capaz de ser educador de todo nosso povo, transmitindo de forma convincente a mensagem de que a solução de cada problema passa pela educação; convencendo o povo a aceitar fazer, ao longo de décadas, o esforço nacional necessário para garantir educação de qualidade para todos os brasileiros.


Cristovam Buarque: Minha Brasília

Não escolhi sair de Recife, em 1970. As circunstâncias me obrigaram a ficar nove anos fora do Brasil. Em 1979, escolhi Brasília. Ela tinha 18 anos quando aqui cheguei. Já estava inaugurada, mas a Asa Norte, em cuja ponta fui morar, era bem vazia. Quase 40 anos depois, olho ao redor do mesmo apartamento em que moro até hoje e vejo uma cidade senhora, aos 58 anos, ainda incompleta.

Cheguei com a disposição de dedicar minha vida à atividade acadêmica, entre aulas, pesquisas, escritas. Quando escolhi vir morar em Brasília, ela era uma cidade sem direitos políticos. Não elegia deputado distrital ou federal, senador ou governador. Brasília não tinha políticos próprios, apenas hospedava os que viessem de outras partes do país. Ao escolher Brasília, ao voltar dos Estados Unidos para o Brasil, entre outras opções que me foram oferecidas, a última coisa que eu imaginava era disputar eleição, qualquer que ela fosse.

Participei de lutas pela autonomia política do Distrito Federal, pela anistia, pelas eleições diretas para presidente, pela constituinte, mas o destino me surpreendeu quando, menos de dez anos depois de chegar, fui eleito reitor da Universidade de Brasília. Mesmo assim, era um cargo acadêmico. Não esperava que, 10 anos depois, disputaria uma eleição política e, ainda mais surpreendente, que seria eleito governador do DF.

O governo me vinculou de maneira íntima com a cidade que antes eu escolhera apenas para viver: as árvores que antes eu via crescer passaram a ser árvores que eu ajudei a plantar; as escolas que eu via ao passar viraram escolas que eu ajudei a construir; as notícias sobre ideias nascidas em Brasília, como Bolsa Escola, Poupança Escola, Saúde em Casa e muitas outras, tinham algo de mim; as paisagens e os costumes ao redor , como o respeito à faixa de pedestre, surgiram de projetos que eu ajudei a implantar.

O Senado me fez carregar a honra de representar o Distrito Federal no Brasil. Uma tarefa que tento exercer com muita responsabilidade, em cada gesto, em cada dia cuidando de honrar Brasília como seu representante no cenário nacional. Uma tarefa difícil, mas o povo daqui tem me ajudado, e com esforço tenho conseguido atrair respeito para nossa cidade com as 19 leis que levam meu nome, uma delas que cria o piso salarial dos professores do Brasil. Também consegui aprovar leis e recursos que beneficiam diretamente o Distrito Federal. Só nos últimos quatro anos, destinei mais de R$ 16 milhões do Orçamento Geral da União para serem aplicados em educação no DF.

A Brasília que eu aprendi a admirar e gostar passou a ser parte de mim como eu passei a ser parte dela também. Às vezes me pergunto se dei um passo certo quando passei a dividir meu tempo de professor com a agenda de governador e a desenador da República. Mas não tenho dúvida que esta opção me aproximou ainda mais da cidade, como se um namoro apaixonado se transformasse em casamento sólido. Os cargos que ocupei me vincularam de maneira muito mais intensa do que se essa responsabilidade não tivesse ocorrido. As três eleições em que o povo do DF me escolheu aumentaram a minha responsabilidade e o meu amor por Brasília. Como também o cargo de reitor amarrou ainda mais fortemente minha relação com a UnB.

É nesta perspectiva de ex-governador e um dos seus três representantes no Senado, ao lado do Hélio Jose e do José Antônio Reguffe, que foi meu aluno na UnB, que assisto ao 58º aniversário de nossa Brasília: a capital de todos os brasileiros e a cidade onde vivemos, onde nossos filhos e netos nasceram e, desejamos, continuarão vivendo. Nessa perspectiva, com esse olhar, vislumbro os próximos cinco, 10, 50 anos adiante e me preocupo e me entusiasmo. Preocupo-me com as dificuldades que atravessamos, na saúde, na educação, na segurança, na mobilidade, nas finanças, nas relações políticas dominadas por egoísmos, politicagens, corporativismos. E entusiasmo-me pela possibilidade de retomar sonhos, voltarmos a ser exemplo para o país e até para o mundo, corrigirmos erros, construirmos a cidade maior do que apenas a capital de todos os brasileiros, onde viveremos com conforto, segurança, esperança, orgulhosos de como somos.

Cheguei para ser professor, optei por ficar, o destino me faz participar com toda energia que ainda tiver, para ajudar a construir Brasília e representá-la no cenário nacional. No sábado passado, todos disseram parabéns, Brasília. Eu tenho de dizer também obrigado Brasília, pelo passado, e às ordens, Brasília, para o futuro, com ou sem mandato. (Correio Braziliense – 24/04/2018)

 


Cristovam Buarque: A locomotiva e o trilho

Esquerda perde sintonia com o espírito do tempo

A autodenominada esquerda continuou amarrada a ideias superadas pela realidade e ficou defensora de interesses arraigados em setores privilegiados, tanto de capitalistas quanto de trabalhadores. As surpreendentes e imprevisíveis transformações na realidade construíram um mundo diferente daquele que servia de base às formulações da esquerda tradicional. A globalização desestruturou a lógica do nacionalismo; a automatização e a inteligência artificial retiraram o protagonismo revolucionário da classe de trabalhadores; o esgotamento de recursos naturais eliminou a utopia do consumismo para todos.

A crise consequente, de entendimentos e de propostas, deixou de ser apenas do capitalismo e passou a ser da civilização industrial por inteiro. Essa nova realidade exige uma nova percepção e postura no papel do Estado na economia. Ao perder a sintonia com o avanço das ideias e compromissos com as reformas necessárias, a esquerda ficou reacionária.

A partir de agora, os que defendem o progresso social e econômico deverão entender que ao Estado cabe definir e construir o trilho para o futuro, mas a locomotiva deve estar nas mãos da sociedade: seus trabalhadores, empresários, organizações sociais. Ao Estado cabe estabelecer regras e fazer investimentos que permitam a estabilidade política e jurídica; a construção de um sistema educacional que ofereça o máximo aproveitamento de todos os cérebros da população e garanta a mesma chance para cada indivíduo desenvolver seu talento pessoal e, com isso, construir uma sociedade eficiente, rica e justa, com a renda bem distribuída.

Além disso, administrar serviços públicos e de assistência social com qualidade e eficiência; garantir o respeito ao equilíbrio, tanto ecológico quanto monetário, para dar sustentabilidade ao progresso e ao bem-estar social; adotar firme compromisso com as regras necessárias para que a economia funcione eficientemente, de maneira a gerar os recursos necessários à construção de uma sociedade justa; entender que a justiça social não pode ser construída sobre uma economia ineficiente. A esquerda precisa compreender que eficiência no uso dos recursos não é um conceito burguês, mas uma condição necessária ao progresso.

A sociedade brasileira tem hoje a percepção de que os partidos que se dizem de esquerda não cumpriram o compromisso moral de governar com ética; mas ainda não percebeu a corrupção deles nas ideias, ao abandonarem o compromisso com a verdade e com a formulação de propósitos justos e viáveis para o futuro. A autodenominada esquerda continua com a visão nostálgica de quando a dinâmica econômica e o bem-estar social decorriam da intervenção governamental. Com isso, perde sintonia com o espírito do tempo: não defende a ética na política, não luta pelas reformas necessárias, deixa de ser vetor do progresso, fica de direita.

Daqui para frente, o Estado faz o trilho da história, e a sociedade move a locomotiva por onde o povo e a nação vão ao futuro desejado.


Cristovam Buarque: Maioridade da faixa

Na semana passada, o Correio Braziliense dedicou uma página ao 21º aniversário da implantação da faixa de pedestre no Brasil, graças ao pioneirismo dessa iniciativa no Distrito Federal. Em entrevista, o professor Paulo Cesar Marques da Silva, da Universidade de Brasília (UnB), disse: “Foi uma conquista importante, é um marco de cidadania essa valorização das pessoas em relação aos veículos. Essa coisa de oferecer o espaço prioritariamente aos pedestres é boa. Mas é necessário dizer que não tivemos nenhuma mudança na lei. Essa sinalização já era prevista nos manuais. O que aconteceu foi uma conscientização, um conhecimento das pessoas. Todo esse trabalho foi muito benfeito, houve uma mudança de valores, é fato. Mas é importante lembrar que isso não aconteceu em todo o país. Nem todo mundo que dirige passou por isso 21 anos atrás. A população deve ser informada constantemente sobre a importância da faixa”.

Sem explicitar, ele percebeu que o “milagre de Brasília”, como os visitantes citam para se referir ao respeito dos brasilienses à faixa de pedestre, decorre da inversão da lógica com que o Governo do DF, entre 1995-1998, administrou a implantação desse programa que mudou a mentalidade da população. No lugar de ver a faixa como um assunto da engenharia e da legalidade de trânsito, o problema foi tratado pelo então governo como uma questão de educação. A engenharia (pintura, sinalização, escolha dos locais) e a legislação (leis e decretos) foram complementos auxiliares.

Ao tratar o problema de trânsito sob a ótica da educação, o Governo do DF, com a colaboração da mídia, especialmente do Correio Braziliense e da Rede Globo, deu um exemplo que o resto do Brasil não conseguiu reproduzir ao longo desses 21 anos, por continuar tratando o respeito ao pedestre como assunto de engenharia de trânsito.

Essa não foi a única inversão lógica no governo local, entre os anos de 1995 e 1998. No lugar de enfrentar o assunto da saúde pela engenharia para aumentar o número de leitos nos hospitais, buscou e conseguiu diminuir o número de doentes, por meio do programa Saúde em Casa, da universalização do saneamento, da redução de acidentes de trânsito, da melhoria da merenda escolar, da implantação da Bolsa Escola (permitindo às famílias mais pobres comprarem comida) e pelo pioneirismo na instalação dos kits ginástica nas quadras e praças.

Com isso, foi possível reduzir doenças e filas, simplificar atendimento, reduzir gastos e sofrimento, oferecer dignidade e garantir a todos um serviço que, hoje, está degradado. Para o mandato seguinte, que não ocorreu, a inversão da lógica na saúde estaria em garantir checape anual para qualquer pessoa, independentemente da renda. O resultado é que, sem grandes obras, o governo deixou leitos sobrando, pessoas saudáveis, um sistema funcionando.

A implantação do PAS (Programa de Avaliação Seriada), cuja ideia foi do professor Lauro Moure (UnB), é prova dessa inversão. No lugar de fazer o vestibular para eliminar os alunos que não aprenderam o básico ao longo do ensino médio, o governo de 1995 a 1998, em cooperação com a UnB, preferiu usar a universidade para incentivar os alunos a aprenderem o máximo, estudando ao longo dos três anos, e não mais apenas no último ano e em um cursinho.

A própria Bolsa Escola, que, de tanto êxito, espalhou-se pelo Brasil e pelo mundo, fazendo Brasília ser reconhecida como o berço dos programas de transferência de renda condicionada à educação, é um exemplo de inversão da lógica: no lugar de deixar as crianças pobres trabalhando e fora da escola, nosso programa utilizou o potencial das mães para garantir que seus filhos frequentassem as aulas. Assegurou uma renda básica à família e, ao mesmo tempo, educação para as crianças.

Já a Poupança Escola — implementada no governo entre 1995-1998 —, no lugar dos elevados custos na educação devido à repetência, preferiu garantir um prêmio para o aluno que fosse aprovado, tomando o cuidado de não entregar esse dinheiro ao fim de cada ano, mas depositá-lo em caderneta de poupança, para só ser retirado se o aluno concluísse o ensino médio. A faixa de pedestre foi um bem-sucedido projeto da lógica invertida criado pelo governo da época, mas apenas um deles; muitos outros até hoje continuam, 21 anos depois. (Correio Braziliense – 10/04/2018)

 


Cristovam Buarque: Assassinos de Marielle

Latifundiários e governantes deram passos na direção do assassinato

Certa lenda árabe diz que uma espécie de coruja invisível sai de dentro das pessoas assassinadas para perseguir seus assassinos até que eles sejam condenados. O Brasil inteiro deseja que essas aves ajudem os investigadores a identificarem os bandidos que mataram Marielle e Anderson. Mas precisamos de outra ave que nos dê força para lutarmos contra os assassinos invisíveis, históricos, que não apertaram o gatilho, mas criaram as nefastas condições que levaram ao assassinato deles.
Há mais de cem anos, latifundiários e governantes brasileiros deram passos na direção do assassinato de Marielle. Ao negarem a reforma agrária para os ex-escravos e escolas para seus filhos, induziram milhões de pobres excluídos à migração em direção ao desemprego, ao desespero, à violência, às drogas, às más condições sociais. Fizeram um país ineficiente e injusto, dividido pelo sistema social de apartação — o apartheid social — que nos caracteriza.

Marielle foi morta por alguns bandidos, mas seus assassinos não cabem em um carro: são os governantes que ao longo de décadas se negaram a fazer as reformas de que o Brasil precisa: agrária, educacional, urbana, tributária, de gestão do Estado. No lugar das reformas, fizeram a sistemática corrupção nas prioridades, negando escola de qualidade para as nossas crianças, água e esgoto, assistência à saúde, apropriando-se do Estado para servir aos privilegiados e, sobretudo, manifestando absoluta insensibilidade diante do sofrimento dos pobres e da fragilidade do país.

A pessoa Marielle foi assassinada com tiros saídos de um carro ao seu lado, mas a personagem histórica estava ali, naquele instante, por sua luta contra os erros seculares das elites dirigentes do Brasil. Seus assassinos diretos construíram suas maldades no mesmo caldeirão das injustiças criadas pelos assassinos históricos que a vítima deles tentava impedir.
Marielle e Anderson foram mortos por sete tiros de fuzil e por cinco séculos de injustiças e ineficiências da sociedade brasileira. Esperamos que as investigações descubram quem deu os tiros, que a Justiça os julgue e os condenados sejam punidos, mas isso não basta. Será preciso que cada brasileiro assuma a luta de Marielle e lute contra os assassinos históricos.
Que transformemos o Brasil em uma nação com economia eficiente, uma democracia estável; em uma sociedade que ofereça a mesma oportunidade a cada brasileiro para desenvolver seu talento, graças à garantia de acesso aos pobres às mesmas escolas dos filhos dos ricos.
Que nossas favelas sejam cidades urbanizadas e que sejamos um país sem preconceitos com os novos costumes sociais e culturais, com respeito à diversidade de religiões, raças, orientações sexuais; e radicalmente intolerante com a corrupção política em todos partidos e ideologias.
Que a polícia e os juízes cuidem dos assassinos e que os cidadãos e eleitores cuidem dos culpados históricos que, há séculos, matam, empobrecem, violentam o povo brasileiro. Que os assassinos sejam presos e que o Brasil seja reformado.

Cristovam Buarque: Prisioneiros do presente

Aumento da renda depende da educação de alto nível

A Rede Globo vem promovendo uma campanha em que apresenta depoimentos de brasileiros sobre a questão: “o Brasil que eu quero”. Todos manifestam o desejo de honestidade, saúde, educação, preservação do meio ambiente. Os institutos de pesquisas dizem que o eleitor busca um presidente capaz de vencer a corrupção, a violência, as desigualdades. Mas ninguém indica qual o caminho para fazer o nosso país ser “como queremos” nem como deve ser o seu futuro, no longo prazo, depois que os problemas atuais forem resolvidos.

Nem os eleitores nem os 15 pré-candidatos a presidente apresentam propostas de “como fazer!” para realizar os desejos dos brasileiros, tampouco para onde conduzir o país nas próximas décadas, ao longo do Terceiro Centenário de nossa independência. Há um excesso de desejos e de candidatos, mas uma escassez de ideias-força e de propostas para adquirir coesão e construir rumo.

A população brasileira quer justiça social, mas, apesar do trágico exemplo venezuelano, ainda não percebe que esta não se constrói sobre uma economia ineficiente. Também não se dá conta de que os recursos, fiscais e naturais, são limitados. Ao não perceber isso, o Brasil não entende que a realização dos sonhos no futuro vai exigir sacrifícios no presente: limitar os gastos com recursos públicos conforme a arrecadação; controlar o crescimento da produção para não ferir o equilíbrio ecológico; e evitar intervenções estatais que desorganizem o funcionamento da economia.

Ainda não faz parte de nossas ideias o entendimento de que a economia do futuro depende do conhecimento técnico e cientifico capaz de aumentar a produtividade e a criatividade; que não há como distribuir renda que ainda não existe, nem como criá-la sem educação de qualidade para todos.

Parece difícil compreender que o aumento da renda nacional depende da educação de alto nível para aumentar a produtividade. Sem isso, não tem como distribuir renda. O Brasil não tem a convicção de que é preciso impedir o desperdício de cérebros ao negar-lhes educação, principal recurso para fazer o país rico e para distribuir a riqueza.

Infelizmente, não faz parte da crença de boa parte dos brasileiros a ideia de fazer nosso país campeão em educação e em produção intelectual na ciência, tecnologia, arte, filosofia, nem que este é o caminho para fazer o Brasil que queremos. Tampouco a ideia de que nossas crianças devem estudar em escolas com a mesma qualidade, independente da renda de seus pais, sejam eles pobres ou ricos.

Os candidatos e os eleitores têm uma identificação nos sonhos, mas sem limitá-los aos recursos disponíveis, fiscais e naturais, prometem ações sem calcular seus custos, não dizem como serão financiados. Ambos parecem ter sonhos para o futuro, mas se mostram prisioneiros do presente.

 


Cristovam Buarque: A ineficiência é injusta

Uma economia pode ser eficiente e injusta, mas uma economia ineficiente não consegue ser justa. Sem democracia os sistemas políticos não têm mecanismos de correção de erros e reorientação de rumos. Dentro do PT repeti isso inúmeras vezes e volto nisso ao assistir a programas na televisão sobre os pobres imigrantes que chegam em Roraima, vindos da Venezuela. Dois repórteres diferentes falaram da extrema pobreza dos venezuelanos, mas também de não haver analfabetos entre eles. Esse fato é a prova de que não se constrói sociedade justa sobre economia ineficiente.

Isso me lembra quando estive em Caracas, em 2006, para o lançamento da versão em espanhol de Um Livro de Perguntas, de minha autoria. Na ocasião, fui convidado pelo então presidente Hugo Chávez para a solenidade em que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) declarava a “Venezuela Território Livre do Analfabetismo”. Antes do evento, em horas livres da minha agenda, percorri as ruas do centro da cidade com um pequeno papel no qual escrevi o nome e o endereço de uma livraria, que eu mostrava a vendedores ambulantes, pedintes, pessoas que pareciam vagar nas ruas, perguntando como chegar lá. Todos foram capazes de ler o texto.

À noite, em um jantar na casa dos editores do livro, contei o resultado dessa minha experiência ao ex-ministro da Educação de Chávez, Aristóbulo Istúriz, mas disse também o que eu ouvira de diversos críticos ao chavismo: benefícios sociais esbarrariam na irresponsabilidade com as finanças públicas, nas interferências estatais na economia e no desprezo à democracia.

O primeiro compromisso de quem deseja construir uma sociedade justa é manter compromisso com a eficiência econômica: responsabilidade fiscal; não gastar mais do que o arrecadado; manter o endividamento público dentro dos limites prudenciais; não interferir, irresponsavelmente, no mercado, tabelando preços ou manipulando taxas de juros.

Em 1998, defendi que, se eleito, Lula deveria manter o ministro Malan, na Fazenda, ao menos por 100 dias. Fui muito criticado dentro do PT, mas depois o ex-presidente entendeu a importância da eficiência econômica e fez um governo responsável, com base em sua “Carta ao Povo Brasileiro”.

A partir de 2004, os governos Lula e Dilma ficaram longe do compromisso de Chávez para abolir o analfabetismo que chegou a aumentar no ano 2012. A partir de 2011, especialmente com a proximidade das eleições de 2014, apesar de muitos alertas, o governo brasileiro, assim como o da Venezuela, passou a descuidar do seu dever para sustentar uma economia eficiente. Os partidos de esquerda chegaram a afirmar que a economia era uma questão de vontade política, sem necessidade de seguir regras técnicas.

Apesar da triste realidade que vemos na Venezuela, políticos que se consideram de esquerda continuam até hoje, seja por ilusão ideológica, defendendo a ideia de que a justiça social pode ser construída sem necessidade de uma base econômica eficiente, seja por incompetência técnica, achando que a economia será eficiente mesmo que suas bases sejam desrespeitadas.

Foi essa visão que levou a Venezuela ao estado em que está, apesar de toda a riqueza petrolífera. Foi a corrupção, o descuido com as contas públicas e a ilusão com o pré-sal que levaram o Rio de Janeiro ao seu colapso. Isso estava levando o Brasil ao desastre em 2014 e 2015, e ainda pode levar se descuidarmos da regra de que “economia ineficiente não constrói justiça social”.

Se não quisermos olhar para o desastre na Venezuela, basta compararmos os resultados do populismo argentino com a responsabilidade chilena para percebermos o valor dessa regra e sua consequência: os pobres são os primeiros a pagar pelos desastres da ineficiência econômica. Eles podem até ganhar no primeiro momento, com os gastos estatais sem base sólida, com os deficits fiscais para financiar despesas sociais, com o aumento das dívidas, mas são os primeiros a pagar com o desemprego e a inflação.

Por isso, entre os venezuelanos que chegam, não há analfabetos; mas também não há ricos. Estes se beneficiam da economia eficiente e injusta nos governos ditos de direita e se protegem na economia ineficiente e demagógica nos governos ditos de esquerda.

A justiça social não se faz mais por dentro da economia ineficiente, mas usando os recursos criados pela economia eficiente para investir especialmente na construção de um sistema educacional de igual qualidade para todos, na velocidade que a responsabilidade fiscal permitir. (Correio Braziliense – 13/03/2018)

* Cristovam Buarque é senador pelo PPS-DF e professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)