Cristovam Buarque: Educação para todos

Brasil continua com mais de dez milhões de adultos analfabetos, só 40% dos jovens terminando o ensino médio sem qualidade

Um dos exemplos do populismo da elite brasileira é a defesa da ideia de “universidade para todos” sem que o defensor assuma compromisso e lute por outros sete objetivos: “erradicação do analfabetismo de adulto”, “alfabetização de todas as crianças na idade certa”, “garantia de conclusão de ensino médio com qualidade igual para todos”, “cada jovem com a mesma chance na disputa por uma vaga nos cursos mais demandados”, “garantia de que os selecionados para as universidades vão poder concluir seus cursos”, “confiança de que os formados estarão preparados para o exercício de suas profissões” e “possibilidade de que serão capazes de aperfeiçoamento para os novos conhecimentos e profissões que surgirão ao longo de suas vidas profissionais”. Sem estas sete lutas, a reivindicação de “universidade para todos” é um slogan demagógico por não defender as mudanças estruturais de que a educação brasileira de base e nosso ensino superior precisam para educar bem a todos.

As cotas para afro-brasileiros buscavam, e conseguiram em parte, mudar a cor da cara da elite brasileira. No entanto, a política de ampliar vagas para ingresso na universidade sem garantir aumento de egressos no ensino médio com qualidade provoca um crescente número de alunos que entram, mas não concluem o curso universitário — se concluem, não recebem a necessária qualificação para o desempenho de suas profissões no mundo contemporâneo. No fundo, “universidade para todos” sem “educação de base para todos com qualidade igual” é uma proposta dentro do espírito do individualismo neoliberal: atende quem pode pagar boa escola e oferece vagas para quem não tem boas escolas; sem a revolução de que o Brasil precisa.

Precisamos de um programa de educação de base com a máxima qualidade igual para todos. Isto é possível, mas não atrai votos, porque exige de 20 a 30 anos para chegar a todo o Brasil, substituindo o atual frágil sistema municipal por um robusto sistema federal. Em 2003, o novo governo da época chegou a iniciar um programa de erradicação do analfabetismo de adulto, o Brasil Alfabetizado, e iniciou experiência visando à federalização da educação de base, o Escola Ideal. A partir de 2004, o governo parou estes dois programas e concentrou sua estratégia em ampliar vagas nas universidades, facilitando o ingresso no ensino superior. Alguns jovens conseguiram ingresso, mas o Brasil continua com mais de dez milhões de adultos analfabetos, apenas 40% dos jovens terminando o ensino médio sem qualidade e sem reduzir a desigualdade entre escolas dos ricos e escolas dos pobres.

“Universidade para todos” sem as sete outras metas é uma bandeira para políticos de olho na popularidade eleitoral imediata, não no reconhecimento histórico posterior, “Educação de base para todos” seria assunto para estadistas, capazes de mobilizar eleitores e sociedade em uma estratégia para que “os filhos dos pobres estudem em escolas tão boas quanto as dos filhos dos ricos”, e disputem em igualdade de condições o ingresso nos cursos mais demandados nas melhores universidades.

A política educacional de beneficiar indivíduos, em vez de mudar a estrutura da educação, é uma forma de “neoliberalismo social”: facilita a entrada no ensino superior para alguns, sem dar oportunidade a todos para uma educação de base com a máxima qualidade. Os 15 anos dessa política já mostraram que apenas alguns foram beneficiados, mas sem a mesma chance para todos. A revolução está em assegurar igualdade de qualidade na educação e fazer as reformas que nossa universidade precisa para ser instituição de excelência.

 


Cristovam Buarque: As curvas da história

A história da humanidade e de cada país segue rumo, com avanços e retrocessos, em direção à eficiência e à justiça. O papel dos políticos conservadores é dificultar essa marcha, como fizeram adiando a Abolição da Escravatura. O papel dos políticos progressistas é apressar a marcha em direção ao futuro. Mas a história faz curvas, independentemente da vontade dos políticos. Nos últimos anos, o avanço técnico forçou uma curva com o surgimento do computador, da inteligência artificial, da robótica e das comunicações instantâneas. Outros movimentos fizeram o mundo ficar global na economia e a sociedade ficar corporativizada na defesa de interesses individuais; o cidadão virou consumidor; o crescimento econômico ficou limitado pela ecologia. Mas, apesar da clareza dessas mudanças na realidade, muitos ainda não percebem a curva feita pela história; continuam prisioneiros de ideias anteriores, querem o avanço em uma linha reta que já não existe.

Não entendem, por exemplo, que o Estado gigante defendido pela esquerda soviética e social-democrata ficou ineficiente na gestão e insensível às necessidades do povo, criou uma classe privilegiada entre seus dirigentes; e tem custo que rouba recursos da sociedade obrigada a pagar impostos elevados; e, ainda, incentiva a corrupção. A curva da história fez o Estado gigante ser um dinossauro político, apesar disso, muitos dos que se dizem progressistas continuam presos à ideia do Estado burocrático, caro e divorciado do povo.

Tampouco entendem que a justiça social e o bem-estar só podem ser construídos sobre economia eficiente. Até recentemente, a justiça se fazia dentro da economia, na repartição entre salário e lucro. Hoje a maior parte da população está fora da chance de ser incluída na economia formal, porque a curva da história eliminou empregos e exige formação profissional dos empregados. O desafio dos que buscam justiça social é desfazer a apartação, que separa de um lado os incluídos e, de outro, os excluídos. O caminho para isto está na educação de qualidade igual para todos, o filho do pobre na mesma escola do filho do rico. Mas os que não perceberam a curva da história esquecem os analfabetos e os que não terminam o ensino médio com qualidade, defendem a ilusão de universidade para todos, sem lutar pela erradicação do analfabetismo, pela educação de base de qualidade igual para todos e por uma reforma na universidade para que seus formandos estejam preparados para o dinâmico mundo do conhecimento em marcha.

A curva na história, que reduziu drasticamente a taxa de natalidade e aumentou a esperança de vida, exige reforma no sistema previdenciário; a velocidade do avanço técnico exige reforma nas regras das relações entre o capital e o trabalho. Mas os progressistas amarrados nostalgicamente às ideias do passado, no lugar de propostas progressistas que construam sustentabilidade para as próximas gerações, que eliminem privilégios de alguns grupos e colaborem para dinamizar a economia, preferem ficar contra as reformas que a curva da história exige. Estes progressistas não entendem ainda a verdade dos limites ecológicos que impedem a promessa de igualdade com alto consumo para todos.

O socialismo soviético acabou porque o Partido Comunista não entendeu a curva na história, ficou prisioneiro de ideias que se divorciaram da realidade na segunda metade do século XX. O mesmo acontece com a velha e tradicional esquerda brasileira, que não percebeu ainda a nova revolução tecnológica e social do mundo global e informatizado, com o agravante de se comportarem assim pelo reacionarismo de ideias superadas, mas também pela forte atração oportunista pelos votos dos eleitores seduzidos com falsas promessas. Neste ponto, esquerda e direita se unem, caindo na tentação populista, por oportunismo eleitoral ou por falta de conhecimento e de percepção da história e suas curvas. Foram muitos os erros que levaram os democratas-progressistas brasileiros a sofrerem a derrota na última eleição, mas o maior foi não perceber a curva da história nas últimas décadas no mundo.

O discurso de uma nova esquerda deve aceitar a desigualdade dentro de limites que ofereçam o mínimo para uma vida digna a todos, impeça o consumo que destrói o meio ambiente; aceite os limites do Estado e da Natureza, entenda a realidade da globalização e do potencial do avanço técnico; e adote o compromisso com a educação de máxima qualidade e igual para todos. (Correio Braziliense – 12/02/2019)

Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília) e ex-senador

http://www.pps.org.br/2019/02/12/cristovam-buarque-as-curvas-da-historia/


Cristovam Buarque: O Brasil é redondo

Durante séculos, os navegantes tinham razão em evitar o oceano, por causa dos limites da Terra plana. Tinham razão, mas estavam errados, porque a Terra era redonda. Estamos fazendo o mesmo no Brasil: enfrentamos nossos problemas sem perceber que as soluções propostas são baseadas em ilusões. Nossa democracia precisa redondear o Brasil, buscando soluções que combinem a razão imediatista dos eleitores com a lógica necessária ao enfrentamento de nossos problemas. Diante de tanta violência e do descrédito da polícia, o eleitor tem razão em querer armas para se defender. Mas, apesar da razão, o eleitor está errado, porque estas mudanças não levarão ao fim da violência.

A razão de que mais armas diminui violência se baseia em falsas premissas, como ao dizer-se, olhando para o horizonte, que a Terra é plana. O argumento de que as armas irão apenas para as mãos dos homens de bem não se sustenta, porque antes do primeiro crime os atuais bandidos tinham bons antecedentes. Com mais armas nas mãos, disputas entre vizinhos com bons antecedentes poderão se transformar em guerras, quando eles puderem usar as armas guardadas em casa; a raiva transforma a posse em porte, automaticamente, mesmo que ilegal. O direito à posse vai levar os bandidos a assaltarem casas de bons cidadãos em busca de armas, em vez de dinheiro; diante do risco de uma arma guardada, entrarão atirando. A generalização da posse de armas vai provocar duelos dos cidadãos de bem reagindo ao assaltante que entrará atirando.

O mesmo serve para a redução da maioridade penal. Tem razão o eleitor em não se conformar com um delinquente juvenil matar e continuar solto: impune e ameaçando. Mas universalizar a redução da maioridade pode ampliar a criminalidade: a cadeia será a universidade dos pequenos delinquentes para depois cometerem crimes maiores. A solução é construir uma sociedade pacífica sem armas nem raiva; graças a um longo projeto de pacificação nacional, onde o principal vetor será a educação. Para enfrentar a violência imediata, é preciso fortalecer a polícia, valorizar o policial. Ao armar a população, estamos passando a mensagem de que a polícia é ineficiente, incompetente e desnecessária. Isto é como ver a Terra plana, olhando apenas para o horizonte.

A diferença entre a “razão” e o “certo” também aparece nos demais problemas. Queremos resolver os problemas do desemprego, da concentração de renda, da baixa produtividade, da persistência da pobreza, mas, no lugar de iniciarmos o processo de redondear o Brasil por meio da necessária revolução — para termos uma educação de base com qualidade e igual para todos —, preferimos soluções simplistas. O problema é que, para redondear os problemas, seria preciso eleger políticos que acreditem que o Brasil é complexo, é redondo, e digam isso aos eleitores, desde a campanha. Mas para o eleitor é mais obvio e crédulo ver o Brasil plano e votar com a razão do horizonte curto, mesmo que as propostas escolhidas não resolvam, mas iludam, como a visão da Terra plana iludiu por milênios.


Cristovam Buarque: Populistas versus humanistas

Para enfrentar a crise ambiental, não bastam a cidadania e a democracia, inventadas para administrar cidades. Será preciso criar um sentimento de “planetania”, que vá além da cidadania, e uma prática de “humanocracia”, que vá além da democracia

Dificilmente um prefeito convence seus eleitores a elevar hoje o preço da gasolina, para evitar que o nível do mar suba no final do século. Ainda que tivessem solidariedade com as próximas gerações, os eleitores sabem que o problema climático é planetário, não é provocado apenas pelos carros de sua cidade.

Com seus interesses locais e visão de curto prazo, o eleitor de um país não representa a humanidade, de hoje e do futuro. Promessas de emprego, renda e consumo no presente representam melhor a vontade dos eleitores do que a ideia de salvar a Terra no futuro. Por isso, quando os governantes elaboram pactos internacionais, eles têm dificuldades em ratificar e cumprir essas decisões por seus eleitores, na hora em que os sacrifícios ficam conhecidos.

O mesmo ocorre com outros problemas do mundo global, como a imigração. O fechamento de fronteiras atrai mais apoio do que a proposta de aceitar imigrantes. Os eleitores não gostam de sacrifícios para proteger o meio ambiente, nem medidas de abertura de fronteiras para receber imigrantes que vão ocupar suas ruas, seus empregos, suas escolas. Para o eleitor, “nós” representa a família, a cidade ou o país, não a humanidade e o planeta.

Daí a dificuldade em obter simpatia popular para acordos como de Paris, sobre meio ambiente, e o de Marrakech, sobre migração, assinados por presidentes nacionais que serão substituídos por novos presidentes, quase sempre com ideias contrárias, quando os eleitores elegem populistas nacionalistas. A democracia, nacional e imediatista, não tem visão de longo prazo, nem é solidária internacionalmente: não é humanista.

Mesmo autores que falam dos riscos da democracia analisam a fragilidade do regime democrático na ótica dos problemas internos dos países, e não pelo fato de que a democracia não oferece solução para os problemas contemporâneos, globais e de longo prazo. Para estes autores, os problemas da democracia decorrem da maneira como líderes e partidos agem em suas disputas internas; não porque o Planeta e a Humanidade se transformaram em temas políticos, não mais apenas filosóficos, ainda que os eleitores não captam o novo sentimento e a nova lógica. A democracia ficou atrasada em relação aos avanços tecnológicos e sociais em escala global. Os limites nacionais das regras democráticas não permitem cuidar, de maneira plena, dos limites da ecologia, nem da expansão da migração.

Por isso, o debate político não está mais entre as velhas “direita” e “esquerda”, mas entre utópicos humanistas e populistas pragmáticos. E estes tendem a ganhar, até quando a pedagogia da catástrofe transformar o eleitor provinciano em um humanista. Mas quando isto acontecer, já pode ser tarde.

Para enfrentar a crise ambiental, não bastam a cidadania e a democracia, inventadas para administrar cidades. Para cuidar desse Novo Mundo será preciso criar um sentimento de “planetania”, que vá além da cidadania, e uma prática de “humanocracia”, que vá além da democracia. Mas o futuro visível não nos permite prever um eleitor globalizado em uma democracia planetária. A “humanocracia” vai exigir respeitar o voto do eleitor local e imediatista, mas sob um escudo humanista, contando com valores éticos universais que pairem acima das decisões eleitorais nacionais e imediatistas: o equilíbrio ecológico, a sobrevivência das espécies, a sustentabilidade do processo produtivo e de consumo, a solidariedade humana, independentemente da nacionalidade.

 


Cristovam Buarque: As redefinições da China

Aproveitando a desaceleração na agenda no fim do mandato, estive por alguns dias na China, a convite e patrocínio total da Guangdong University of Technology para participar do Seminário Inovação nos Brics e a comunidade global com futuro compartilhado”. Aproveitei para adiantar meu estudo sobre “Porque a China deu certo”. A visão da China é motivo de admiração — aeroportos, estradas, trens, prédios e o desempenho econômico ainda mais. Trinta anos atrás, o PIB da China era de US$ 312 bilhões, do Brasil US$ 330 bilhões. Hoje o PIB chinês é de US$ 12.240 bilhões e do Brasil, US$ 2 bilhões.

Em poucos anos, conseguiram inclusão de 100 milhões de pessoas na classe média, com renda per capita equivalente à média da Europa; 400 milhões atingiram a da classe média brasileira. As cidades estão ligadas por uma rede com 28.000 km de “trens-bala”, enquanto toda a Europa tem 9.300 km. O nível de desenvolvimento científico e tecnológico permite ter uma nave espacial circulando ao redor da Lua. Ao lado desses sintomas de progresso, surpreende como as cidades são metrópoles modernas, limpas, com paz, calçamentos impecáveis, sem pobreza visível.

A surpresa é maior quando entramos nas universidades e temos a chance de estudar as redefinições que o pensamento chinês está promovendo sobre ideias dos tempos atuais. Os políticos, os intelectuais e o povo estão redefinindo conceitos que não se adaptam às exigências do bom funcionamento social nos tempos da robótica, da globalização e dos limites ecológicos ao crescimento da produção material. O próprio conceito de democracia está sendo redefinido em um país onde o único partido determina a coesão no presente e o rumo do país para o futuro.

Devido à política de crescimento industrial, Pequim e outras cidades chinesas estão entre as mais poluídas do mundo. Diante disso, o governo chinês tomou medidas para controlar a poluição: taxis são obrigados a usar energia elétrica e os motoristas pagam fortunas para emplacar carros novos se movidos a combustível fóssil. Intelectuais e dirigentes chineses dizem que a população certamente não votaria a favor dessas decisões.

As manifestações recentes na França, contra o aumento no preço do combustível fóssil para reduzir o consumo e a poluição, são exemplo da contradição entre democracia dos eleitores de hoje e a democracia comprometida com o futuro. Os interesses imediatos do eleitor e os interesses de longo prazo do povo se chocam impedindo medidas que limitem o consumo. Na democracia chinesa, os membros do partido discutiram por anos esse assunto e decidiram reduzir a taxa de crescimento em nome do equilíbrio ecológico.

É certamente um conceito de democracia diferente do ocidental. Além disso, segundo eles, a primazia absoluta do voto individual universal impede a adoção de filtros que levem em conta o mérito de cada candidato. Disseram-me que lá a democracia não se baseia apenas no voto, mas também no mérito demonstrado por cada candidato a cargo público ao longo da carreira.

Quando perguntei sobre a liberdade pessoal de ir e vir — na China para emigrar de uma província a outra é preciso autorização do governo central — perguntaram a mim se no Rio de Janeiro e outras grandes cidades do Brasil um cidadão pode caminhar livremente nas ruas, ou se a violência impede a livre circulação. Explicaram também que lá existe planejamento de instalações educacionais e hospitalares e a migração livre desarticularia o equilíbrio entre a oferta e a demanda dos serviços.

O conceito de igualdade, que até o período revolucionário era absoluto — todos com mesma renda e consumo — passou a ser relativo. O governo chinês se propõe a erradicar a pobreza, mas tolera a desigualdade de renda e consumo que decorre do mérito do cidadão, graças ao talento, à persistência, à criatividade e ao empreendedorismo.

É cedo para saber se as redefinições em marcha na China vão levar o Ocidente a rever seus conceitos ou se o povo chinês vai preferir adotar conceitos ocidentais. Mas não se pode negar que a revolução tecnológica em marcha, simultânea à globalização e aos limites ecológicos, exige revisões de nossos conceitos. E não se pode negar que os chineses estão tentando inventar a modernidade, na prática do desenvolvimento e na teoria de conceitos.
 


Cristovam Buarque: Oposição à oposição

O novo governo ainda não tomou posse, e os derrotados tentam se aglutinar para ganhar a próxima eleição, em 2022. Não percebem que, mais do que Bolsonaro vencer a eleição de 2018, a população brasileira disse “não” aos que agora defendem unidade dos derrotados. Querem ganhar o próximo pleito com a mesma postura que apresentaram, com o mesmo discurso e a mesma falta de sintonia com o futuro.

O povo disse não a essas siglas que tentam se aglutinar sem fazer autocrítica, sem entender onde erraram, sem formular alternativas. Parecem acreditar que foi o povo quem errou, escolhendo outro candidato, e propor uma nova chance aos eleitores para acertarem em 2022. Dizem que o único errado é o PT, do qual agora se afastam depois de terem bajulado Lula ao longo de anos. Esquecem que, no primeiro turno, o PT teve mais votos que todos os candidatos das siglas que agora se dizem da esquerda não petista. E insistem na esquerda em nada diferente do que o eleitor repudiou em outubro. Não percebem o apego do povo ao país e seus símbolos, continuam falando para as comparações, de empresários e de trabalhadores, cujas reivindicações asfixiam as finanças públicas. Não entenderam o esgotamento gerencial e fiscal do Estado, nem assumem compromissos com responsabilidade fiscal e estabilidade monetária.

Se quiserem fazer oposição pelo bem do Brasil, esses partidos e líderes precisam começar a fazer oposição a si próprios: entender onde estão errando há décadas, formular uma proposta para o futuro do Brasil, definir como dar coesão e rumo ao país e a sua sociedade, dividida socialmente e improdutiva economicamente. Dizer em que esse caminho é antagônico ao do PT e ao do Bolsonaro e, por isso, oposição aos dois.

A primeira autocrítica seria à política do compadrio de siglas com propósito eleitoreiro, como tentaram durante os dois meses que antecederam o pleito e tentam agora olhando 2022. A segunda é entender que perderam sintonia com os rumos da história; perceber as revoluções que ocorreram no mundo: a globalização e as amarras que provocam na economia nacional; a informática, a robotização e o desemprego estrutural consequente; os limites ecológicos ao crescimento; o aburguesamento dos movimentos sindicais e a miopia e oportunismo dos movimentos sociais; a importância da educação de qualidade igual para todos como o vetor do progresso econômico e social. A terceira é perceber que não se constrói justiça social sobre economia ineficiente; por isso, é preciso respeitar os limites orçamentários, despolitizar regras da economia, zelar pela estabilidade monetária, reconhecer o papel do livre-comércio e a necessidade de reformas que desamarrem o Brasil. Concentrar os propósitos revolucionários na garantia de escola com qualidade igual para todos: os filhos dos trabalhadores na mesma escola que os filhos dos patrões.

Uma oposição consequente deve começar pela autocrítica de seus erros, reconhecendo não ter oferecido uma alternativa progressista e sintonizada com o espírito de nossos tempos. Cada democrata-progressista deve fazer oposição ao que Bolsonaro representar de retrocesso, mas isso não basta: é preciso avançar dizendo que rumo pode oferecer para um Brasil eficiente, justo, sustentável, livre.

Antes de fazer oposição aos vitoriosos, a “exquerda” nostálgica que tenta se aglutinar precisa fazer frente a seu próprio passado derrotado, não apenas por Bolsonaro, mas pela história. Sem isso, chegará em 2022 outra vez sem propostas para o futuro ou dizendo que seu projeto é apenas ser contra o novo governo e o PT ao qual serviram até ontem.


Cristovam Buarque: Partido sem Escola

Uma das artimanhas das forças políticas conservadoras é esconder os problemas da sociedade para desviar a atenção da população. Um exemplo é a obsessão com que muitos defendem a ideia de “escola sem partido”, para esconder a realidade de que nossos partidos e nossos políticos não passaram pela Escola. Para esconderem a falta de escolas com qualidade para todos, defendem que é preciso impedir que elas debatam livremente nossos problemas e soluções.

Querem evitar o despertar dos alunos para a necessidade do ensino com qualidade para todos, garantindo que o Brasil não desperdiçará seus cérebros; colocando os filhos dos pobres em escola com a qualidade daquelas onde os filhos dos ricos estudam. Além de esconder que no Brasil os pobres não têm escola com qualidade e os ricos têm escolas com qualidade medíocre, a “escola sem partido” levará professores e alunos a um campeonato de denúncias contra ideias dentro de sala de aula, onde será implantado o terror: a “escola sem partido” será “escola aterrorizada”.

Muito mais do que escola sem partidos, o Brasil precisa de partidos e políticos que tenham passado pela escola, que conheçam história e saibam que houve tempo de “escola sem partido”, na Rússia Soviética, na Alemanha nazista, no Portugal salazarista, na Itália fascista, na Espanha franquista, no Brasil da ditadura. Não sabem e não percebem os danos decorridos na formação da juventude durante aqueles períodos; ou sabem e desejam aqueles tempos de volta. Na verdade, eram tempos de escola com partido único: o partido no poder, com ideia única para explicar a realidade social, política e mesmo científica. Uma escola precisa de todos os lados do mundo das ideias, não de nenhum partido ou um partido único.

É certo que devemos impedir a dominação política por partidos, com narrativas que não respeitam outras opiniões e que tentam doutrinar, no lugar de ensinar. Isso tem ocorrido nos últimos anos, na Universidade de Brasília, por exemplo, onde é proibido debater a diferença entre golpe e impeachment e comparar 2016, no caso de Dilma, com 1992, no caso Collor. Ainda na UnB, filha da liberdade e da democracia, há hoje impeachment para manifestações de apoio ao Bolsonaro.

O caminho não é proibir o debate, denunciar o professor que manifesta uma opinião, o caminho é abrir o debate para todas as opiniões. Se na universidade prevalece uma única narrativa, a falha não é do partidarismo de alguns professores doutrinadores sem capacidade de diálogo. De fato, grande parte de nossos alunos universitários sofrem lavagem cerebral, acreditam em fantasmas históricos que seus partidos lhes ensinam, são intolerantes com ideias diferentes das que receberam como doutrina. A solução não é proibir o partido dominante, nem substituí-lo por uma nova dominação.

A solução não virá mais para os atuais universitários, já são geração perdida. A saída é investir na educação de base, com total liberdade para o debate de todas as ideias, todos os partidos — uma “escola sem censura” que defenda a necessidade de professores bem remunerados, bem preparados, bem dedicados, em escolas bem equipadas, todas públicas e com compromisso em horário integral para formar uma nova geração. Manter escolas nas atuais condições de penúria intelectual, e ainda mais sob censura, com os alunos transformados em denunciadores e não em participantes dos debates, será cair no desastre dos países que passaram por isso no passado. Precisamos de “partidos com escola”, e não de “escola sem partido”.

Quando olho os próximos anos, a sensação de alívio por não ter os compromissos da agenda do mandato (agora mesmo que escrevo da China onde participo de seminário sobre economia dos BRICS) é substituída pela sensação de frustração, por não poder votar contra “escola sem partido”, nem poder continuar a luta por um “país com escola” de qualidade para todos, criando eleitores e dirigentes educados. Fica a frustração de saber que meus substitutos provavelmente votarão pela “escola sem partido”.

Mesmo longe do parlamento, continuarei defendendo que a saída não é proibir partidos nas pobres escolas que temos, mas construir escolas de qualidade, onde todas as ideias e todos os partidos possam participar do debate, inclusive sobre “escola sem partido”, como atualmente. Isso não será permitido se a proposta de censura for aprovada, porque “partido sem escola” constitui um partido que deseja negar o direito de “partidos na escola”. (Correio Braziliense – 20/11/2018)


Cristovam Buarque: Ressurreição pelas urnas

O livro A ressurreição do General Sanchez, publicado pela Editora Paz e Terra, em 1981, reeditado em 1997 pela editora Geração, conta a história de um ditador latino-americano que, percebendo o esgotamento de sua ditadura, decide terminar seu regime e escolher um substituto. Usando as técnicas da engenharia genética, mandou fabricar um clone. O herdeiro seria idêntico ao pai, mas enquanto crescia, foi mudando de personalidade e de ideologia. Descobriu-se depois que a CIA havia produzido outro clone de direita, neoliberal; o Vaticano tinha produzido um democrata cristão, carola. Os clones foram sendo substituídos clandestinamente pelos serviços de espionagem dos países. O ditador aceitou pacientemente essa variação, até descobrir que os soviéticos também tinham o seu clone. Comunista, ele não aceitou.

O general mandou matar o último clone, o comunista, e engravidou três mulheres para escolher como seu herdeiro o primeiro filho que nascesse. Para surpresa de todos, cada mulher deu à luz cinco meninos, todos com cara e mãos de demônio. O ditador então legalizou os partidos e autorizou uma eleição livre, universal, desde que disputada entre os quinze meninos, seus filhos demônios. Não esperava o caos provocado por uma eleição com tantos candidatos, todos com alta taxa de rejeição pelos eleitores que não queriam escolher entre diabos, ainda que filiados a partidos diferentes.

Ao sentir os limites de seu poder para controlar e organizar sua sucessão, o general mandou dizer ao povo que tinha decidido morrer, para ressuscitar quando o país precisasse dele outra vez. E desapareceu. Em um estilo de realismo fantástico, o livro descreve o período democrático como um grande carnaval, em que a população brinca nas ruas, os constituintes dentro do parlamento, enquanto a desordem se espalha, até que o general ressuscita, durante a tristeza e a ressaca da quarta-feira de cinzas histórica.

Ainda é cedo para dizer se essa ficção de 1981, anterior à redemocratização no Brasil, se assemelha à história recente de algum país. Mas é possível dizer que o período entre o fim de uma ditadura e o renascimento de outra se parece com a história que o livro descreve: os democratas civis perdem mais tempo brigando entre eles e olhando para as reivindicações de cada grupo no presente do que imaginando a melhor forma de construir o futuro para o país. Até que o povo, cansado do caos, da corrupção, do crime, da pobreza, da desigualdade, termina exigindo a volta da ditadura.

O autor não imaginou, porém, a possibilidade de que o fracasso dos democratas levaria os eleitores a votarem, democraticamente, pela volta do ditador: no livro, o fim da democracia decorre da ressurreição, por determinação divina. A obra conta: “Na sua autobiografia, sob o título Predestinado, que foi escrita pelo jornalista Ruiz Jimenez, e distribuída grátis em todas as escolas do país, o general Sanchez relembra a tarde de agosto quando ele decidiu tomar outra vez o governo de Sinandá. ‘Eu estava sentado, na varanda da Casa Grande, quando do Riacho Pequeno pareceu sair a voz de Deus dizendo: General, chegou a sua hora. Eu pensei que ia morrer e lembrei que um soldado não teme esse momento. Mas aí a voz disse pausadamente: General, seu dever é tomar o governo da Pátria e transformá-la em um exemplo aos olhos do mundo. E eu respondi: com vossa ajuda?”. O livro não diz: “missão não se discute, se cumpre; e Deus provê capacidade para quem Ele escolhe”.

Quase 40 anos depois de publicada, a obra exige uma nova versão em que a ressurreição se daria pelo voto, pelas urnas, não pelas armas. O desânimo do povo preferindo o risco do autoritarismo e da intolerância ao caos criado por civis perdidos em suas brigas partidárias, sem espírito público, sem perspectiva de longo prazo. Uma nova versão deveria descrever os erros cometidos pelos políticos democratas ao longo do período em que o ditador estava morto, esperando voltar. Ajudaria ao autor inspirar-se em um personagem do próprio livro, um escritor que previu o que aconteceria: o caos provocando a ressurreição; e que antes de partir para seu exílio em Paris afirmou que “a história ocorre como um carrossel, onde os políticos sobem e descem, e o povo, mesmo quando vota, fica de fora, olhando o sobe e desce dos políticos montados nos cavalinhos”.

http://www.pps.org.br/2018/11/06/cristovam-buarque-ressurreicao-pelas-urnas/


Cristovam Buarque: Jovens nonagenários

A melhor palavra para definir cada um desses três nonagenários exigiria reunir os conceitos de incansável-estimulante-antecipador-professor — homem de ação — estadista de ideias

Entre 27/5 e 1º/8 de 1928, nasceram três brasileiros que marcariam a história do Brasil na área do ensino superior e do pensamento nacional: José Goldemberg, filho de imigrantes judeus vindos da Rússia; Cândido Mendes, filho da aristocracia católica do Rio de Janeiro; e Heitor Gurgulino, filho de um comerciante cearense e uma jovem alemã recém-chegada. Apesar de uma idade ligeiramente menor que a deles, tenho o privilégio de pertencer à mesma geração e ter convivido com os três.

Fui reitor da UnB em período coincidente com Goldemberg, na USP. Fizemos parte do primeiro grupo de reitores posteriores ao regime militar, quando a comunidade acadêmica se deslumbrava com a democracia e caía na tentação de pôr em oposição Liberdade e Mérito. Fizemos parte dos que não abriam mão da busca de mérito na instituição acadêmica. Defendemos a importância da estrutura multidisciplinar no ensino superior, iniciamos a revolução da internet, promovemos o desenvolvimento da pesquisa tecnológica, em cooperação com o setor produtivo. Esta convivência me passou admiração pelo homem público, estadista da ciência e do ensino universitário, cientista e professor.

Tomei conhecimento de Cândido Mendes nos anos 60, quando eu ainda jovem e ele já era um acadêmico ativo na formulação do pensamento brasileiro que serviu de base à formação intelectual de minha geração. Nos últimos anos, convivi pessoalmente com ele em visitas à Universidade Cândido Mendes e durante os seminários que organiza sob o título de Islam et Latinité, buscando construir diálogo entre os mundos Islâmico e Cristão. Estes seminários fazem parte do patrimônio mundial na busca do diálogo inter-religioso e do entendimento dos problemas contemporâneos. Filho da aristocracia católica, Cândido fez uma opção pelos pobres e optou pela racionalidade sem preconceito contra qualquer credo; humanista cosmopolita é um vigoroso nacionalista. Dele reconheço, sobretudo, a generosidade com que se entrega aos amigos que faz e às causas que defende.

Heitor Gurgulino é um jovem nonagenário que tem uma bicicleta em cada um dos seus endereços. Quando lhe perguntei sobre as dificuldades no tratamento de um câncer, reclamou do trânsito que lhe tomava muito tempo nos trajetos entre a casa e o hospital. Heitor foi professor assistente de física na criação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA); fundador e primeiro reitor da Universidade Federal de São Carlos. Por 10 anos, ficou à frente da reitoria da Universidade das Nações Unidas e construiu o Câmpus da UNU, em um majestoso prédio, em uma das mais refinadas áreas da capital japonesa. Ocupou também o cargo de Subsecretário Geral das Nações Unidas e participou das mais importantes conferências da ONU. Aos1990 anos, é presidente da Academia Mundial de Arte e Ciência. Por tudo isso e por sua intensa atividade em dezenas de órgãos internacionais relacionados com educação, ciência, tecnologia, cultura, ele é o mais bem-sucedido brasileiro no cenário mundial da gestão acadêmica e da promoção de ciência.

A melhor palavra para definir cada um desses três nonagenários exigiria reunir os conceitos de incansável-estimulante-antecipador-professor — homem de ação — estadista de ideias. Os três fazem parte do seleto grupo de seres humanos que, ao longo do século 20 e início do 21, estiveram à frente de seu tempo, refletindo sobre a crise e propondo alternativas para a civilização, na encruzilhada que atravessamos: véspera de catástrofes ou de utopias. Deles tenho a imagem da juventude permanente: todos continuam em plena atividade intelectual, instigando, criando, contestando.Em um país que insiste em se manter como um dos piores do mundo na qualidade e na distribuição da educação para sua população, é surpreendente e animador que tenhamos três personalidades, nascidas ao mesmo tempo, que deram contribuições intelectuais e políticas tão elevadas ao mundo. E que não se cansam, não perdem a crença no futuro da humanidade e não param de lutar por ela.

Um dia, anos atrás, eu disse: “Quando crescer quero ser Darcy Ribeiro”; daqui a alguns poucos anos, gostaria de ser um nonagenário como algum desses três. Há duas semanas, tivemos o primeiro dia de Brasília sem Ari Cunha. Aos 91 anos, nos deixou o jornalista que nos informava e inspirava desde a inauguração de nossa cidade. Ele também foi um jovem nonagenário.

 


Cristovam Buarque: Sonhos e exemplos

Os leitores sabem que livros escritos por jornalistas tendem a provocar leituras agradáveis e a não provocar questionamentos intelectuais. Dois livros lançados em Brasília este mês confirmam a primeira afirmação e desmentem a segunda. O livro Borboletas e Lobisomens, de Hugo Studart, é lido com o prazer de uma boa reportagem sobre a Guerrilha do Araguaia; o livro Para onde vai a Igreja?, de Gerson Camarotti, entrevista cinco cardeais brasileiros para saber onde está caminhando a Igreja, sob o papado de Francisco.

O livro de Studart descreve a aventura de jovens da cidade embrenhados na selva amazônica, lutando para sobreviver, derrotar um poderoso exército, fazer uma revolução e implantar o socialismo. As duas obras nos provocam para o debate sobre os dogmas e seus fracassos devido à força do tempo, que amarela todos os livros e suas ideias. Camarotti nos passa a aventura de um papa com 80 anos tentando fazer uma revolução e atualizar a Igreja Católica. Os nossos jovens usavam dogmas criados por Marx, Lenin e Mao para derrubar uma ditadura e implantar o socialismo; Francisco e seus cardeais lutam para derrubar preconceitos arraigados há séculos por interpretações da Bíblia.

A ideologia dos nossos guerrilheiros não sobreviveu à duração da própria guerrilha; diante da velocidade como ocorriam as mudanças na realidade, suas ideias ficavam velhas, enquanto eles lutavam por elas. No mesmo tempo em que eles lutavam pela revolução social, outros jovens em universidades ao redor do mundo faziam a revolução científica e tecnológica que transformava o mundo e fazia obsoletas as ideias da revolução guerrilheira; o capitalismo encontrava fôlego, o Partido Comunista da URSS se desfazia e os líderes chineses se preparavam para novos tempos: globalização, robótica, inteligência artificial, crise ecológica, esgotamento do Estado, apartação social, enriquecimento e individualismo de parte dos trabalhadores do setor moderno.

O livro de Studart nos permite perceber como aqueles jovens queriam fazer história, sem perceber o rumo que ela tomava, independentemente deles e dos militares que enfrentavam. Mostra também o heroísmo e a capacidade de sonhar dos guerrilheiros. O autor trata da importância dos sonhos como o alicerce para formar cada guerrilheiro e uni-los na selva com armas na mão. Isso nos faz especular quais os sonhos que motivariam os jovens de hoje para lutar pela construção de um mundo melhor, mais pacífico e mais justo, mais eficiente e mais acolhedor.

Os jovens do Araguaia achavam que isto era possível pela tomada do poder e a estatização dos meios de produção com o Estado controlado pelo partido a serviço do povo. Os jovens guerrilheiros não sabiam que não se consegue fazer uma sociedade justa sem ter uma economia eficiente. Descobriu-se que o Estado serve sempre à minoria que o controla, sejam industriais, sejam latifundiários, banqueiros, militares, juízes ou servidores civis, não importa o partido; descobriu-se também que para ficar no poder o partido e seus militantes são capazes de depredar o Estado, aceitar propinas, destruir a eficiência da economia, tentando enganar ao povo.

Eles nos deram o exemplo de heroísmo e de luta a ser seguido hoje, com novas ideias e novos métodos. Não mais as armas, mas as urnas; não mais estatizar a economia e a sociedade, mas promover a liberdade, construindo uma economia eficiente e assegurando igualdade no acesso à educação e à saúde, independentemente da renda e do endereço da família; respeitando o meio ambiente; promovendo a ciência e tecnologia; sem corrupção e com democracia; não só em seu país, mas em todo o imenso mundo global de hoje.

Studart dedica espaço à pergunta que levou um jovem a sair do aconchego confortável de sua família de classe média em cidades para embrenhar-se na mata inóspita, disposto a morrer e matar. Sua resposta é de que foram os sonhos de mudar o mundo com revolução para construir utopia. Camarotti começa cada entrevista perguntando as razões que levaram o cardeal ao sacerdócio; de todos eles ouviu que tinham sonho de realização espiritual e também exemplo de religiosos e santos. Isso nos leva a perguntar qual o sonho para inspirar os jovens de hoje à vontade de mudar o mundo, e em que exemplo de vida se baseariam para escolher a luta no lugar do conforto.

A principal tarefa dos filósofos e dos políticos de hoje é provocar sonhos coletivos nos jovens para que eles queiram mudar o Brasil e o mundo; e dar exemplo de vida para legitimar os sonhos. (Correio Braziliense – 31/07/2018)

 


Cristovam Buarque: A pauta dos jovens

Não sobreviveremos se não formos capazes de formular causas comuns que nos unam como povo e nos construam como nação, com coesão social e rumo histórico. A mais importante dessas causas é o cuidado e a formação de nossas crianças e jovens. Os políticos devem unificar partidos e superar divergências para atender às necessidades da pauta desse público. E para cuidar dos jovens é preciso entender os problemas da cidade e do país na ótica deles.

Para os jovens, o emprego não é apenas questão de crescimento econômico, porque sabem que a robótica e a inteligência artificial não vão criar tantos postos de trabalho quanto no tempo de seus pais. O emprego futuro será resultado de educação comprometida com empregabilidade, de leis trabalhistas flexíveis adaptadas às mudanças no mundo e da capacidade dos jovens para o empreendedorismo. Eles querem uma economia dinâmica, que sirva não apenas para crescer a produção material, mas também para aumentar o tempo livre de cada pessoa, ampliar a criação cultural e respeitar o meio ambiente.

Para os jovens, a educação precisa de professores com melhor formação e boa remuneração, que sejam bem avaliados e motivados, trabalhando em escolas bonitas, confortáveis e modernamente equipadas, todas em horário integral, onde recebam a formação de que necessitam para entender, aproveitar e transformar o mundo, fazendo-o melhor para seus filhos e netos. Mas, para os jovens, o ensino de qualidade pouco tem a ver com as escolas de hoje; acham que a educação deve se fazer com o que há de mais moderno em tecnologia da informação, com liberdade para o aluno escolher o que quer estudar, com aulas a distância, sem necessidade de presença física permanente.

Eles querem aprender a conservar a natureza, respeitar a diversidade, adquirir um ou mais ofícios que lhes permitam trabalho ao longo da vida e conhecimento para mudar de profissão se necessário; aprender a comprometer-se com a defesa da democracia, da liberdade e dos direitos civis; aumentar a produtividade na economia, o sentimento e a prática da cidadania e da solidariedade.

Os jovens sabem que o problema das drogas não será resolvido com a proibição delas; que até agora não reduziu o consumo, mas promoveu o tráfico e encheu as cadeias. Eles desejam uma sociedade que, no lugar de proibir drogas, faça com que o uso delas seja desnecessário, graças ao bem-estar social e à realização pessoal e com felicidade.

Os nossos jovens querem segurança para se locomover, estudar, viver em paz, sem medo de bala perdida ou assalto; mas para eles a violência não deve ser enfrentada apenas com intervenção policial mas, sobretudo, com a construção de uma consciência de paz na sociedade.

Os jovens não querem aposentadoria imediata, mas, para eles, a principal qualidade da Previdência é a sustentabilidade ao longo de décadas. A política não deve ser apenas sem corrupção no comportamento dos políticos, mas também feita sem corrupção nas prioridades, atendendo às necessidades sociais, e garantindo equilíbrio ecológico e estabilidade monetária; feita por políticos com dignidade, austeridade e integridade, sem uso nem defesa de mordomias, nem desperdícios.

Apesar da desconfiança, é preciso que os jovens saibam que alguns candidatos oferecerão propostas para atender a pauta deles, recuperando ou apoiando projetos que Brasília já conheceu no governo entre 1995 e 1998, tais como: Escola em Casa, Poupança Escola, Projeto Saber, Temporadas Populares, Escola Candanga, Projeto Orla, Fecitec, PAS.

A pauta para os jovens só será possível se for a pauta construída por eles próprios. Os políticos devem identificar, entender e defender a pauta dos jovens, mas são eles que escolherão os políticos. No quadro atual, é difícil um jovem acreditar na política; eles sabem, porém, que só com a participação na política será possível construir um Brasil com coesão e rumo e que isso depende do envolvimento deles. Há pouco mais de um século parecia impossível um Brasil sem escravidão, mas os jovens abolicionistas conseguiram. (Correio Braziliense – 03/07/2018)


Cristovam Buarque: Nossa paz

Em vez de se entenderem para salvar o país, nossas lideranças preferem ficar lutando entre si

Meses atrás, a Coreia do Norte e os Estados Unidos eram símbolos de antagonismo. Seus líderes se enfrentavam e ameaçavam com uma guerra nuclear. Foi necessário apenas um gesto de entendimento e de bom oportunismo político para o mundo inteiro assistir ao encontro de Kim Jong-un e Donald Trump, na Ilha de Sentosa, assinando acordos para desarmar bombas que eles próprios ameaçavam explodir sobre o outro. Ao assistir àquele gesto inesperado e surpreendente, o mundo sentiu surpresa e alívio. Nós, brasileiros, deveríamos sentir também inveja, pelo fato de que nossos líderes não conseguem se encontrar para desarmar nossas bombas.

Entrincheirados em partidos, interesses, visões, sobretudo amarrados à miopia do imediato, não estamos sendo capazes de perceber os riscos das bombas, nem o potencial de um pacto pelo desarme delas: a construção de coesão social e definição de rumo histórico. Adiante está uma sociedade se desarticulando pela violência generalizada, com os serviços ineficientes, com escolas sem aulas, universidades paralisadas, o déficit fiscal crescente, a falência da Previdência, a economia paralisada. Tudo causado pelo vazio político e pela desesperança das pessoas.

No lugar de um entendimento para salvar o país, proteger a infância, construir o futuro, nossas lideranças preferem continuar lutando entre si. Nada explica nossa incompetência e insensibilidade, salvo que não estamos à altura do momento histórico do Brasil e das grandes transformações da civilização mundial. Bastariam apenas cinco passos para iniciarmos a marcha para desarmar nossas bombas.

Primeiro, precisamos perceber os problemas que ameaçam a integridade do país. Segundo, cada um de nós deve fazer sua autocrítica, reconhecendo os erros cometidos. Terceiro, termos lucidez para entender que divididos não sobreviveremos. Quarto, ajustarmos os sonhos de produção e consumo, com seriedade, sem demagogia, nem ilusão, aos limites de nossos recursos. Quinto, definirmos os compromissos que nos unem nos próximos anos: democracia, equilíbrio nas contas públicas, investimentos em educação, ciência e tecnologia, combate à corrupção, fim da impunidade, proteção da natureza, promoção da cultura, reformas necessárias para dar eficiência à economia.

Não apenas EUA e Coreia do Norte nos dão o exemplo. No artigo “Aprender com Portugal”, publicado no GLOBO, em 7 de junho deste ano, Ascânio Seleme nos mostra como aquele país conseguiu se recuperar de profunda crise. Com governo pactuado, desde a extrema esquerda até a centro-direita, o primeiro-ministro António Costa conseguiu unificar a nação e tomar as medidas necessárias para fazer uma economia eficiente, uma sociedade pacífica e otimista.

Kim e Trump viajaram distâncias muito mais longas e difíceis, e assinaram um acordo que parecia impossível. É triste não atravessarmos distâncias menores e fazermos acordos mais simples, embora para problemas menos visíveis do que bombas atômicas, mas com efeitos ainda mais permanentes: condenando o futuro.