Cristovam Buarque: Paulo Freire, hoje

A partir de Freire, educar passou a ser o mesmo que caminhar para a liberdade: dos que se educam e do mundo que eles construíram

Cristovam Buarque / Correio Braziliense

São raros os pensadores cujas obras atravessam o tempo: Paulo Freire é um desses. Por isso, estamos comemorando seu centenário. Eles têm em comum o fato de mostrarem o mundo de uma maneira diferente de como ele aparecia antes. Como Copérnico, que mostrou que a Terra girava ao redor do Sol, o que parecia impossível à época. Com ineditismo, Paulo Freire mostrou que a educação não se faz apenas do professor para o aluno, mas em uma interação entre eles e as coisas que os rodeiam. A partir dessa visão, revolucionou a maneira de alfabetizar os adultos. 

No lugar dos velhos métodos de ensiná-los como se faz com crianças, ele formulou o seu método: substituir o professor que chega com a cartilha pronta, por uma construída depois de pesquisa, identificando palavras que o aluno usa no seu dia a dia. No lugar de u-v-a igual a uva, m-a-n-g-a igual a manga, no lugar de n-e-v-e igual a neve, usar f-o-m-e como fome. Essa mudança simples, que hoje parece óbvia, representou uma mutação epistemológica, característica de um gênio. Paulo Freire deu o toque de mudança para explicar o mundo e dizer como transformá-lo. 

Não ficou apenas nisso. Paulo Freire promoveu outro ponto de mudança ao sugerir que educar é mais do que instruir, é também dar passos para a liberdade das pessoas que se educam. Antes de Paulo Freire, a educação era um instrumento para ensinar crianças a sobreviverem e contribuírem na construção de um mundo melhor, mais rico e mais belo. Mas ele ensinou que educação é o vetor da libertação de cada pessoa ao conhecer, deslumbrar-se e agir. A partir de Freire, educar passou a ser o mesmo que caminhar para a liberdade: dos que se educam e do mundo que eles construíram. 

Paulo Freire juntou filosofia libertária com o método de alfabetizar, na realização desse processo libertário. Com o u-v-a igual à uva, o aluno tem mais dificuldade, mas pode mesmo assim se alfabetizar, mas ao descobrir que f-o-m-e é igual à fome ele aprende mais facilmente e adquire consciência de sua situação no mundo, das injustiças que sofre e da necessidade de lutar para ir em direção à liberdade, inclusive das necessidades essenciais à vida. 

Com Freire, o papel da educação passou a ser o de ampliar o horizonte da liberdade da pessoa, de seu povo e da humanidade inteira. Ele mostrou também que o aprendizado é resultado da convivência entre o aluno e o professor, sem submissão de um ao outro, com o mundo onde eles vivem. Com essas duas formulações - educação que liberta e que é feita pelo professor junto com o aluno, em sintonia com o que há ao seu redor - Paulo Freire é o Copérnico da educação. 

Depois de Paulo Freire, a alfabetização passou a ser o passo inicial da libertação. Ter visto o que não era visto antes, faz dele um gênio. A partir dele, cabe a nós avançarmos na definição do conceito de analfabetismo, e ampliarmos o uso das novas ferramentas para promover a “alfabetização contemporânea”. Nos tempos dele, analfabeto era quem não sabia decifrar as letras, no mundo global e tecnificado que surgiu deste então, o “alfabetizado contemporâneo” precisa ler, falar, entender, escrever bem seu idioma, falar pelo menos um idioma estrangeiro, conhecer as bases da matemática, das ciências, das artes, das ideias do mundo; ser capaz de entender os problemas, os desafios e os rumos da civilização em sua globalidade e sua interação com a natureza; dispor das habilidades necessárias para exercer pelo menos um ofício e ser capaz de continuar aprendendo até o final de sua vida. 

Esta “alfabetização contemporânea” exige uma educação com a máxima qualidade para todos: quebrar a injustiça com pessoas, ao negar educação a uma parte da população, e parar a estupidez social de desperdiçar o potencial de conhecimento dos que são deixados para trás. Além de aproveitar as modernas tecnologias da teleinformática, a “alfabetização contemporânea” exige assegurar a chance de escola com a máxima qualidade e qualidade igual para toda criança, do dia em que nasce até o final do ensino médio, independentemente da renda, do endereço, da raça e do gênero. Para tanto, será necessário que o Brasil disponha de um Sistema Público Nacional Único de Educação, sem o qual não será possível a máxima qualidade, ainda assegurar equidade plena. 

Paulo Freire foi o gênio educador, sua obra e o mundo precisam agora de educacionistas ativos para abrir os caminhos da liberdade para todos. 

*Professor Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o futuro da educação. 

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/10/4953439-cristovam-buarque-paulo-freire-hoje.html


Cristovam Buarque: O rumo para o país está na escola

História de outros países mostra que a educação não ficou boa porque eles ficaram ricos, mas que ficaram ricos porque a educação era boa

Cristovam Buarque / Correio Braziliense

Em coluna no Correio Brasiliense, Luiz Carlos Azedo, além da honra de colocar-me ao lado de Paulo Freire, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, me provocou com o título “Onde perdemos o rumo”, na véspera do bicentenário da Independência: estancados na economia, com pobreza e violência nas ruas e democracia fragilizada.

Nascemos sob o rumo insustentável da economia baseada no trabalho escravo para produção agrícola e mineradora, voltada para exportação. Atravessamos assim 350 dos 500 anos da história, e até hoje temos a economia semi-primária e semi-escravocrata. Fomos governados por populismo ou ditadura, com sistemático desrespeito ao equilíbrio fiscal, insensibilidade às necessidades sociais e urbanas, permanente concentração de renda, depredação ambiental. Tentamos rumo baseado em fazendas, minas, lojas, indústrias, estradas, hidrelétricas, uma nova capital, nunca em escolas.

Perdemos o rumo quando o quase Imperador gritou “Independência ou Morte” em vez de “Independência e Escola”; ou por esperarmos 350 anos para erradicar o escravismo e a Princesa assinar a Lei Áurea com o único artigo abolindo a escravidão, sem estes outros: “a terra pertence a quem nela produz” e “fica estabelecido um sistema nacional de educação para todos”. A bandeira republicana adotou o lema escrito “Ordem e Progresso”, em vez de “Educação é Progresso”, e até hoje não abolimos o analfabetismo: 12 milhões de adultos não reconhecem a própria bandeira.

Perdemos o rumo ao demorarmos 420 anos para criar nossa primeira universidade; ao implantarmos industrialização ineficiente, que tirou recursos da infraestrutura social e provocou inflação para cobrir custos do protecionismo; ao adotarmos o desenvolvimento sem sustentabilidade monetária, ecológica, fiscal, urbana, cultural ou política; e por até hoje não montarmos um Estado eficiente, democrático e republicano. Mas a causa principal do nosso descaminho tem sido o desprezo endêmico à educação em geral e a aceitação da desigualdade, conforme a renda e o endereço do aluno.

Chegamos ao terceiro centenário da independência, na Era do Conhecimento, sem uma população que leia e escreva bem português, fale outros idiomas, saiba matemática e ciências, conheça os problemas do mundo, use modernas ferramentas digitais e domine um ofício profissional. Perdemos o rumo ao imaginar que a boa educação é consequência do crescimento e da democracia, em vez de entendermos que crescimento sustentável e democracia sólida são consequências da educação.

A história de outros países mostra que a educação não ficou boa porque eles ficaram ricos, mas que ficaram ricos porque a educação era boa. Foi assim na Europa Ocidental e na América do Norte, desde o século XIX; na Irlanda, Coréia do Sul e Finlândia, desde meados do século XX. Foi a educação de qualidade que lhes deu base para elevar a renda social e distribuí-la com justiça, ainda que também graças à abertura comercial, finanças públicas equilibradas e instituições democráticas sólidas, capazes de liberar o talento das pessoas educadas. Cada vez mais a educação será o vetor do progresso econômico, a plataforma da distribuição de renda e da justiça social, a argamassa do regime democrático e o enlace para a sustentabilidade. Sem levar isso em conta, não encontraremos o rumo para o futuro que desejamos e para o qual temos potencial.

A educação é tão importante que, por falta dela, ainda não conseguimos perceber sua importância; agimos como pessoa perdida que não sabe para que serve o mapa que tem em mãos. Os traficantes usavam força para não deixar os escravos saltarem ao mar, porque os viam como mercadoria de valor, mas nós não damos condições para nossas crianças permanecerem em escola com qualidade até o fim do ensino médio, porque não as vemos como principal instrumento da criação de riqueza para o país.

Por isso, não aceitamos que o rumo está em escola de máxima qualidade para todos: não acreditamos que o Brasil pode ter uma educação das melhores do mundo, nem que seja possível no Brasil a educação ter a mesma qualidade para todos, independentemente da renda e do endereço da criança.

Temos recursos para implantar um Sistema Único de Educação de Base com qualidade. Não podemos adiar este rumo. É possível financeira e tecnicamente, também politicamente se entendermos que educação é o vetor do progresso, e moralmente, se percebermos a indecência e estupidez de não garantir que a qualidade seja a mesma para todos.

*Professor Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/09/4950612-cristovam-buarque-o-rumo-esta-na-escola.html


Cristovam Buarque: Espantos brasileiros, abismos históricos

Aos estrangeiros causa espanto que, 132 anos depois, temos 12 milhões de adultos que não sabem ler a própria bandeira

Cristovam Buarque / Correio Braziliense

Durante 350 anos, os estrangeiros se espantaram com a escravidão e com o fato de os brasileiros não se espantarem com o tratamento dado aos escravos. Se um visitante comentasse o assunto, o brasileiro branco diria: “São negros”. Passados 133 anos da Abolição, se algum estrangeiro comenta a má educação recebida por alunos das escolas públicas, ouve como resposta: “São pobres”.

Espanta os turistas como em nossas praias convivem banhistas ao lado de trabalhadores servindo sob o sol e sobre a areia, vendendo o que a moderna indústria oferece. Se o visitante estrangeiro disser “vocês ainda mantém privilégios do tempo da escravidão”, os brasileiros respondem: “Mas precisam desse trabalho para sobreviver”. Os escravos também. Ao voltar do século XIX ao século XXI, o visitante pensaria que a escravidão continua como se as algemas fossem invisíveis.

A ideia de que a escola deve ter a mesma qualidade, independentemente da renda e do endereço da criança, espanta tanto quanto no século XIX espantava a ideia de negros e brancos terem os mesmos direitos. Espantaria quem dissesse que os resquícios da escravidão decorrem da desigualdade no acesso à educação.

Nós brasileiros não nos espantamos que os republicanos tenham escrito lema, na bandeira que desenharam, sabendo que naquela época 6,5 milhões de adultos, 65% da população, não sabiam ler, nem mesmo o “Ordem e Progresso”. Aos estrangeiros causa espanto que, 132 anos depois, temos 12 milhões de adultos que não sabem ler a própria bandeira. O espanto só chega para quem tem olhos para vê-lo e percepção para senti-lo como algo estranho.

Qualquer pessoa, salvo os próprios brasileiros, se espantaria ao ver a notícia que o Brasil é o maior exportador de alimentos do mundo, seguida da informação de que dezenas de milhões passam fome todos os dias. Ainda mais ao ver, no mesmo noticiário da televisão, ao lado de famílias com fome, publicidade de competições entre candidatos a chefes de cozinha. Espanta que, apesar de milhões de desempregados sem salários, os empregados e patrões com altos salários recebem vales para pagar alimentação nos mais caros restaurantes, com dinheiro de impostos que os desempregados também pagam. Os estrangeiros se espantam quando sabem que os encarregados de zelar pelos interesses do povo – parlamentares, governantes, juízes, inclusive servidores da rede pública  – usam seguro de saúde privada pago pelo setor público, como forma de proteger-se da má qualidade dos serviços que oferecem ao público .

Percebemos a injustiça de jovens que fazem ENEM em condições precárias por falta de aulas durante a pandemia, mas espanta a falta de espanto diante de pelo menos 80 milhões de brasileiros impedidos de se inscrever, porque ficaram para trás, sem um ensino médio minimamente satisfatório. Espanta a preocupação maior para entrar na universidade do que para abolir o analfabetismo. O Brasil que espantava por não se espantar com a escravidão, agora espanta por não se espantar com a imensa maioria de sua população analfabeta para o mundo contemporâneo: sem falar um idioma estrangeiro, sem saber as bases da ciência, da matemática, sem conhecer os problemas do mundo contemporâneo, e sem um ofício que lhe permita emprego e renda.

Os estrangeiros se espantam que o Brasil seja capaz de contabilizar 100 milhões de votos em poucas horas, e esses votos elejam presidente contrário à democracia que o elegeu. Espanta que o espetáculo tecnológico da contagem eletrônica dos votos não garanta a posse do eleito, se militares e milícias não estiverem de acordo com o resultado; também que o pagamento de contas pelo sistema pix fique prejudicado pelo clima de violência e criminalidade.

Parece que é permanente e ilimitada a capacidade brasileira de espantar ao mundo, sem se espantar aqui dentro.

Nesta semana, os brasileiros comemoraram o último 7 de setembro de seu segundo centenário, espantando o mundo pelas realizações de nosso desenvolvimento, e por nossa negação em distribuir os resultados do que realizamos, caindo em um abismo histórico. Por falta de espanto com a concentração e privilégios, não fazemos a distribuição necessária para construir um futuro com coesão e rumo, vitalidade nacional e inclusão social.

*Professor Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação.

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/09/4948055-cristovam-buarque-espantos-brasileiros.html


Cristovam Buarque: À espera de uma oposição

Hora de pensar a renúncia de todos os candidatos em benefício daquele com maior chance de barrar a Pessoa Jurídica do Autoritarismo

Cristovam Buarque / Blog do Noblat / Metrópoles

Enquanto seis democratas disputam qual deles irá para o segundo turno, Bolsonaro já está no terceiro. Percebendo a possibilidade de derrota, se prepara para negar o resultado da eleição com um golpe cujo esquema está pronto, salvo um detalhe.

Já levantou a suspeita de fraude nas urnas eletrônicas; já explicitou a suspeição do Presidente do TSE, que será Alexandre de Moraes; já liberou a compra de armas que seus apoiadores utilizarão; já mobilizou suas milícias, polícias, motoqueiros, caminhoneiros, além de parcelas do Exército, Marinha e Aeronáutica. Só descuidou do elemento surpresa, importante para o êxito de qualquer golpe, mas conta que a falta de surpresa não vai atrapalhar, porque os democratas continuarão divididos, disputando entre eles, deixando a defesa da democracia nas mãos do STF, sem urnas, nem armas. Mais uma vez, o autoritarismo se beneficia do corporativismo dos democratas que continuam achando que a disputa é entre cada um deles, ou entre esquerda e direita e não entre democracia e autoritarismo. Se tivessem bom senso, sentimento democrático e espírito público, os seis pré-candidatos a presidente deveriam entender o caráter da disputa.

A Pessoa Física Bolsonaro foi eleita pelo discurso antipolítica, pela facada, pela rejeição à velha esquerda, o enfrentamento do fantasma do comunismo já morto e pela bandeira da anticorrupção. Agora, a vitória será da Pessoa Jurídica do Bolsonaro: negacionismo, recusa à ciência, controle do STF e do Congresso, aceitação de corrupção da turma no poder, abandono da escola pública, das universidades, do desenvolvimento científico e tecnológico, sequestro dos símbolos nacionais, abandono dos direitos das minorias, queima das florestas, genocídio. A eleição será um plebiscito entre a Pessoa Jurídica do atraso desmiolado e a Pessoa Jurídica Democrática em busca do salto para o futuro.

Para construir esta Pessoa Jurídica Democrática, o primeiro passo é a unidade na defesa da democracia: renúncia de todos os candidatos em benefício daquele que apresente maior chance de barrar a Pessoa Jurídica do Autoritarismo. A democracia contaria com a unidade necessária para barrar qualquer tentativa de golpe. No lugar do nem-nem”, consolidaria um NÃO contra a tragédia da decadência nacional representada por um novo mandato de Bolsonaro, promoveria o diálogo com a população assumindo erros do passado e compromissos com o futuro, formularia as linhas básicas do governo seguinte: apenas um mandato, retomada do prestígio do Brasil no exterior, recuperação do tempo perdido na área social, enfrentamento do problema do desemprego e da recessão, proteção da riqueza natural, especialmente a Amazônia, início de estratégia para superar o atraso e a desigualdade na educação.

Difícil construir esta Pessoa Jurídica Democrática, por causa da arrogância que vem do tamanho do Partido dos Trabalhadores e seu candidato em relação a todos os outros e por causa dos preconceitos de todos os outros em relação ao PT, por causa dos erros cometidos nos governos deste partido. A arrogância e o preconceito, a falta de percepção do risco do golpe para dar posse à Pessoa Jurídica do Autoritarismo, parecem levar o Brasil na marcha que todos dizem querer evitar, mas cada um faz o que é preciso para que aconteça: o golpe anunciado do terceiro turno.

Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/a-espera-de-uma-oposicao-por-cristovam-buarque


Cristovam Buarque: A pobreza da democracia

Terceira maior pobreza é quando lideranças democráticas se submetem a apelar aos generais para que eles respeitem as eleições

Cristovam Buarque / Blog do Noblat / Metrópoles

A maior pobreza da democracia brasileira é não ter adotado uma estratégia para abolir a pobreza da população: não movemos a linha da pobreza nem aterramos o abismo da desigualdade. A segunda é a incerteza: se os portadores de armas aceitarão os resultados das urnas. A terceira maior pobreza é que as lideranças democráticas se submetem a apelar aos generais para saber se eles respeitarão as eleições. Foi o que vimos na semana passada, quando ex-presidentes, ex-ministros e líderes políticos procuraram militares para saber se os generais apoiariam golpe para impedir a derrota eleitoral do atual presidente.

Esta consulta demonstra a pobreza da democracia brasileira e das lideranças democráticas. Em uma democracia consolidada não haveria este temor aos militares. Eles estariam fora da política. Como estão em todos os outros países do continente, com exceção da Venezuela e do Brasil. Ao perceberem a fragilidade da democracia, os políticos deveriam unir as forças democráticas para enfrentar o risco de golpe. É a unidade nas urnas que dá força para vencer as armas. No lugar disto, nossos líderes se dividem, se antagonizam e, depois de ouvirem as manifestações legalistas dos generais, voltam tranquilos da conversa e continuam se digladiando entre si, confiantes de que o regime democrático sobreviverá, graças à boa vontade dos militares.


BOLSONARO E O GENERAL PAULO SÉRGIO NOGUEIRA (EXÉRCITO)


(Resende - RJ, 14/08/2021) Cerimônia de Entrega de Espadim aos Cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto.
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 10/08/2021) Desfile Operação Formosa 2021. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 10/08/2021) Desfile Operação Formosa 2021. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 31/03/2021) Encontro com os novos comandantes das Forças Armadas. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 20/04/2021) Solenidade de Passagem do Cargo de Comandante do Exército, do General de Exército Edson Leal Pujol ao General de Exército Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.
(Resende - RJ, 14/08/2021) Cerimônia de Entrega de Espadim aos Cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto.
(Resende - RJ, 14/08/2021) Cerimônia de Entrega de Espadim aos Cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto.
(Resende - RJ, 14/08/2021) Cerimônia de Entrega de Espadim aos Cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto.
(Brasília - DF, 10/08/2021) Desfile Operação Formosa 2021. Foto: Marcos Corrêa/PR
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(Resende - RJ, 14/08/2021) Cerimônia de Entrega de Espadim aos Cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto.
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 10/08/2021) Desfile Operação Formosa 2021. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 10/08/2021) Desfile Operação Formosa 2021. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 12/08/2021) Solenidade de Promoção de Oficiais-Generais. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 31/03/2021) Encontro com os novos comandantes das Forças Armadas. Foto: Marcos Corrêa/PR
(Brasília - DF, 20/04/2021) Solenidade de Passagem do Cargo de Comandante do Exército, do General de Exército Edson Leal Pujol ao General de Exército Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.
(Resende - RJ, 14/08/2021) Cerimônia de Entrega de Espadim aos Cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto.
(Resende - RJ, 14/08/2021) Cerimônia de Entrega de Espadim aos Cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto.
(Resende - RJ, 14/08/2021) Cerimônia de Entrega de Espadim aos Cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto.
(Brasília - DF, 10/08/2021) Desfile Operação Formosa 2021. Foto: Marcos Corrêa/PR
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Esquecem que o maior incentivo ao golpe é a divisão dos líderes civis ao empurrarem os militares, provocados diante do vazio e da instabilidade que ameaça o País. As lideranças também esquecem o pouco significado da opinião dos comandantes, porque o desrespeito às urnas raramente parte de generais comandantes. Em muitos golpes, os primeiros presos são os generais, por determinação de coronéis, motivados pela divisão, incompetência ou corrupção de civis. Às vezes, o golpe vem de polícias ou milicias armadas ou do povo na rua. Não é raro também os golpes virem de um líder político contra os outros.

Quando perguntados se haveria golpe, os generais deveriam ter devolvido a pergunta aos políticos: “vocês acham que há clima para golpe? De onde viria?” Se não fossem enfáticos, ainda poderiam perguntar: “onde vocês erraram e estão errando para esta hipótese ser considerada.

A única forma de as urnas vencerem as armas está na unidade dos políticos democráticos. Para isto, devem entender que não é por gosto ou vocação que militares dão golpe e desmancham a democracia. Fazem isto empurrados quando a democracia demonstra esgotamento, quase sempre por incompetência e divisionismo entre políticos civis. Não precisam perguntar aos militares se eles querem intervir. Eles responderão corretamente que não querem e nunca quiseram, nem mesmo em 1964.

Foi a divisão entre políticos, o clima de instabilidade, a polarização da guerra fria e um general afoito que deslancharam o golpe. Para evitar golpe, os democratas devem evitar o acirramento da disputa no primeiro turno, cujas disputas e acusações deixam pouca margem para a unidade no segundo. Devem escolher um nome com mais chance de ser eleito e este assumir que seu governo promoverá união de todos para defender o poder das urnas. Mas isto parece impossível, e o outro lado, um presidente isolado, despreparado, com claros sinais de demência, pode provocar a instabilidade que levará a um golpe que os militares não querem fazer, mas os políticos divididos poderão provocar e serem as vítimas depois. Não será a primeira vez na história.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/a-pobreza-da-democracia-por-cristovam-buarque


Cristovam Buarque: Réquiem ao Homo Sapiens

O homo sapiens é a mais surpreendente criação da natureza: capaz de inventar sapato e, 5.500 anos depois, deixar um bilhão de seus semelhantes descalços e outro bilhão se endividando para comprar mais do que consegue calçar. Neste período, deixou de jogar pedras com a mão e passou a fabricar bombas atômicas para jogá-las desde foguetes, com a mesma ética belicista do passado. Sua técnica agrícola passou da plantação manual no solo, para tratores robóticos e sementes manipuladas, mas no lugar de distribuir para quem tem fome, prefere jogar fora a comida que sobra do que podem comprar.

Capaz de contar centenas de milhões de votos em minutos, mas incapaz de tomar decisões que levem em conta os interesses de toda a humanidade do futuro. A natureza criou um animal que evoluiu na lógica ao ponto de manipular a natureza, mas demonstra ser incapaz de regular o uso de sua força de maneira sustentável e decente: um animal com inteligência, mas sem saber usá-la inteligentemente. 

O escritor Arthur Koestler parece ter razão com a hipótese de que o homo sapiens foi resultado de um erro de mutação, ao adquirir um cérebro com lógica que evolui, mas com uma moral que não evolui: a lógica da bomba atômica, a ética da política tribal. O resultado é que, para aumentar a produção, a racionalidade técnica provocou o aquecimento global, mas deixou a ética e a politica despreparadas para evitar a catástrofe. Para acertar, a mutação deveria ter impedido o surgimento da inteligência ou dado responsabilidade moral. 

Diferentemente dos insetos, que sem consciência da morte se organizam para a sobrevivência da espécie, o homo sapiens condena-se à extinção na busca de aumentar o tempo de sua vida pessoal com o máximo de riqueza e consumo. A maior maravilha criada pela natureza é uma espécie que marcha para o suicídio, ao usar o poder do cérebro lógico a serviço do individualismo com voracidade de consumir e ganância por lucro. 

A natureza que criou a inteligência é vítima dela, porque não é capaz de dominar sua própria força. É como se a evolução das espécies tivesse fabricado um animal que age com efeitos parecidos a um meteoro gigante vindo do espaço em direção à Terra. Outros meteoros estão a caminho há milhões de anos, mas o meteoro sapiens tem apenas 40.000 anos - menos 300, se levarmos em conta sua mutação para o homo sapiens industrial. 

A suspeita de que o homo sapiens é suicida parece confirmada pelo relatório das Nações Unidas que detalha as mudanças climáticas que aquecem o Planeta, com a consequente desarticulação da agricultura, elevação no nível do mar, extinção de animais. Apesar de que, há mais de 60 anos, a humanidade é alertada dos riscos, as políticas nacional e internacional não conseguiram até aqui barrar as catástrofes ecológicas e a desigualdade social em marcha. 

As mudanças climáticas mostram que voracidade de consumo, ganância de lucro, poder tecnológico, consciência da morte e política individualista conspiram contra o futuro da humanidade. Nada indica que o poder catastrófico em escala global será controlado pelo voto que reflete os interesses individuais e imediatos do eleitor, não do planeta e da humanidade. O homo sapiens, na sua forma industrial, parece caminhar para seu próprio fim.

Salvo se usar a biotecnologia e a inteligência artificial para promover nova evolução que fabrique um “neo-homo sapiens”, forte, inteligente e longevo, e deixe para trás bilhões de “neo-neandertais”, debilitados física e mentalmente, dessemelhantes e passíveis de extinção física, não apenas de exclusão social como atualmente. Se optar pela catástrofe ecológica da extinção ou pela catástrofe moral da ruptura da espécie, o atual homo sapiens e sua humanidade deixarão de existir. Koestler teria tido razão: por um erro de fabricação, o homo sapiens é a única espécie programada para o suicídio, afogado nos produtos de sua inteligência irresponsável. 

Felizmente, ainda há esperança de que a inteligência pode despertar sua própria irresponsabilidade moral, a falta de valores éticos comprometidos com a sobrevivência da espécie: o uso de tecnologia a serviço de todos buscando um desenvolvimento harmônico entre os seres humanos e deles com a natureza. Ainda há esperança, mas a história das últimas décadas parece dar razão a Koestler e justificar um réquiem ao homo sapiens. 

*Professor Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o futuro da Educação

Texto original: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/08/4945483-artigo-requiem-ao-homo-sapiens.html


Cristovam Buarque: Derrota de Pirro

A derrota de Bolsonaro serve perfeitamente ao propósito de criar o clima de suspeita de fraude para recusar o resultado das eleições em 2022

Blog do Noblat / Metrópoles

Faz mais de dois mil anos que o Rei Pirro, de Épiro, teve uma vitória sobre as tropas romanas, mas a um custo tão elevado que ele próprio reconheceu valer como uma derrota. Venceu, mas se enfraqueceu. “Com outra derrota desta, eu perco meu reino”, dizem que ele falou conscientemente. Este caso criou até hoje a expressão de “Vitória de Pirro”. O que não se inventou ainda foi o conceito de “Derrota de Pirro”, quando uma perda serve aos propósitos do derrotado. É o que aconteceu esta semana com a derrota de Bolsonaro no caso do voto impresso. Ele perdeu, mas sua derrota serve perfeitamente ao propósito de criar o clima de suspeita de fraude para recusar o resultado das eleições em 2022. E colocar suas milícias, “seu” Exército e motociclistas nas ruas em um terceiro turno golpista.

A decisão da Câmara de Deputados acabou com a sua intenção de complicar a apuração dos votos, mas não elimina sua mensagem mentirosa e irresponsável de que poderá haver fraude, nem sua justificativa para um golpe caso perca as eleições. O clima de desconfiança se manterá, porque não precisa de racionalidade. E ele terá condições de tentar aqui o que Trump tentou sem conseguir. E com mais chances pela tradição do “ethos” de nossas FFAA e a fragilidade de nossas instituições, mas sobretudo pelo divisionismo das FFOO, as forças da oposição.

Bolsonaro teve uma “Derrota de Pirro”, perdeu sem perder, e as oposições tiveram um “Vitória de Pirro”, ganharam perdendo. Sobretudo porque, diferentemente do Rei Pirro, não percebem a fragilidade decorrente da sua divisão que sofrem. A democracia continua igualmente ameaçada.

Além disto, por algumas semanas Bolsonaro conseguiu desviar todo debate sobre os desastres de seu governo: a CPI, as informações sobre o aquecimento global, a continuação da epidemia, a inflação, o desemprego, as dificuldades da volta às aulas. O debate sobre o voto impresso abafou estas notícias, e o resultado em nada diminui a malandragem de sua mensagem sobre o risco de fraude. Bolsonaro ganhou sobretudo porque em nada avançou e até diminuiu a possibilidade de aliança entre os democratas. Esta unidade é a única forma de impedir o uso da desculpa de fraude com uma vitória acachapante no primeiro turno.

Mas nada indica que os líderes da oposição terão maturidade, bom senso, patriotismo para se unirem. Preferem continuar contando com as “Derrotas de Pirro” que Bolsonaro coleciona, até transformá-las em vitória pelas armas quando não conseguir pelas urnas. E dará a desculpa de que seus seguidores acreditam, inclusive mais uma vez entre militares: a defesa da democracia por eleições limpas.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/derrota-de-pirro-por-cristovam-buarque


Cristovam Buarque: O espírito do tempo e a educação

Estamos percebendo a necessidade de captar as mudanças adiante, de acordo com o espírito do tempo, as curvas que a história está fazendo

Em janeiro do ano passado, a Unesco criou um grupo de 15 pessoas para elaborar proposta sobre o futuro da educação no mundo. A diferença desta nova proposta para outras duas, décadas atrás, é o espírito do tempo atual. Os relatórios anteriores foram elaborados em momentos de evolução, sem as rupturas que temos em marcha no século XXI. Nos debates do grupo, do qual participo, estamos percebendo a necessidade de captar as mudanças adiante, de acordo com o espírito do tempo, as curvas que a história está fazendo.

Uma mudança diz respeito aos novos recursos tecnológicos, graças à computação, à telecomunicação, aos grandes acervos de imagem e som, à inteligência artificial, às redes sociais digitais e a tudo que permite levar a realidade para dentro da sala de aula, e fazer o ensino-aprendizagem à distância, de forma remota entre professores e alunos. O espírito deste tempo permite e induz à passagem da “aula teatral” – professor e quadro negro na presença dos alunos – para a “aula cinematográfica” - professor usando todos os modernos recursos audiovisuais e computacionais para uma aula dinâmica, presencial ou não. A escola do futuro não será apenas um aperfeiçoamento da atual, será uma “nova escola”. Da mesma forma que, um século atrás, a arte dramática descobriu o potencial do cinema, levando o teatro ao mundo inteiro e com uma linguagem que rompia os limites do palco.

A segunda mudança se refere aos novos conhecimentos a serem desenvolvidos. Os destinos, dificuldades e potenciais de cada ser humano ficaram interligados planetariamente à toda a humanidade. Até pouco tempo atrás, as ideias de planeta e humanidade eram temas limitados a astrônomos e filósofos. No espírito do tempo atual, estes conceitos dizem respeito ao dia a dia de cada pessoa: os alunos do futuro viverão na Terra, não apenas em um país, e a preocupação deles deve ser com toda a raça humana, além da família e dos compatriotas. O ensino deverá tratar dos problemas que ameaçam a humanidade: mudanças climáticas; abismo da desigualdade que está quebrando a semelhança da espécie humana; pobreza e desemprego estrutural; riscos e vantagens da inteligência artificial; o entendimento do papel da ciência na construção de um mundo melhor e mais belo; a prática da solidariedade com todos os seres humanos, especialmente os pobres nacionais, os refugiados apátridas, os migrantes e todos que sofrem exclusão e discriminação; o valor da diversidade social e natural, com respeito às especificidades.

O terceiro desafio é fazer o ensino-aprendizagem em sintonia com o rápido avanço do conhecimento, que evolui e se transforma a cada instante. Esta velocidade faz obsoletos os conhecimentos, as profissões, a concepção de escola e os métodos pedagógicos, inclusive a posição relativa entre professor e aluno. A educação do futuro exige que o aprendizado seja contínuo, não termine ao longo da vida de uma pessoa; diplomas devem ser provisórios. O verbo aprender deve ser usado no gerúndio, sempre aprendendo e aprendendo sempre.

É um desafio também, sobretudo no ensino superior, sair das algemas do conhecimento por disciplina e adotar o conhecimento multidisciplinar, única forma de avançar para novas ciências que estão nascendo nas fronteiras das atuais e de trazer os problemas da realidade para dentro do processo de ensino-aprendizagem. Especialmente os problemas éticos que desafiam a humanidade e as possibilidades da educação de base para construir o futuro, ao formar as novas gerações.

O quinto desafio é a coerência entre o conteúdo humanista e planetário com o compromisso político de assegurar o direito de cada criança desenvolver seu potencial, desde a primeira infância, independente da nacionalidade e do status social, da renda e do endereço; cada criança do mundo tratada como filha da humanidade, com o mesmo direito à educação para seu próprio benefício e para que seu talento beneficie sua família, sua vila, seu país e toda a humanidade. A educação de qualidade - respirar conhecimento -  deve ser um direito tão humano, quanto aspirar oxigênio para estar vivo, aprendendo ao longo de toda a vida. Ninguém deixado para trás na alfabetização para a contemporaneidade: falar, escrever e ler bem seu idioma, falar pelo menos um outro idioma, adquirir um ofício, conhecer história e geografia, filosofia e as bases da matemática e das ciências, ser capaz de usar as ferramentas do mundo moderno.

Certamente que o espírito do tempo exige um plano mundial para dar apoio à educação das crianças do mundo inteiro.

*Professor Emérito da Universidade de Brasília


Fonte:
Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/07/4939914-cristovam-buarque-o-espirito-do-tempo-e-a-educacao.html


O Senador Cristovam Buarque

Cristovam Buarque: Água, livros e votos

Ainda não inventamos um sistema melhor do que a democracia para servir aos interesses do povo de uma nação, mas ela confunde as necessidades do povo no futuro com a soma dos interesses dos eleitores no presente: metade mais um dos indivíduos de hoje representando o todo no amanhã. Embora a democracia ainda seja o melhor dos sistemas, há momentos em que a soma dos indivíduos não representa, necessariamente, o conjunto deles, como nação. A democracia é o neoliberalismo na política. Um exemplo é a fala do Ministro da Economia dizendo que os livros são bens de consumo dos ricos e, portanto, é justo e democrático taxar os livros: cobrar dos ricos para que eles leiam e paguem para que os pobres tenham água para beber. Ele tem razão na lógica democrática e na justiça imediata: temos pobres sem água em casa e temos ricos lendo enquanto bebem água fresca. Ele tem razão na medíocre visão do neoliberalismo político, do imediato e dos indivíduos.

Nesta lógica, leitura é para ricos, água para os pobres, hoje e sempre, por isto ele não analisa a justiça de ensinar o povo, desde criança, a ler e gostar de ler. Na visão da política democrática neoliberal do eleitor individual e o contribuinte atual, não há justificativa para o eleitor pobre pagar para que o rico se embriague no vício da leitura, nem o rico pagar para o pobre virar leitor. Porque para ele, não existe o conceito de povo leitor, nem isto é visto como indicador de riqueza e progresso. Por isto ele se sente um paladino da justiça e do progresso ao defender o que nos parece absurdo, impostos mais altos para livros.

Mas muitos leitores, escritores, editores, são contra este aumento de imposto, sem defender e lutar para que a leitura deixe de ser um privilégio. Na visão do povo-leitor, não apenas eleitores e ricos, deveria lutar por programas de rápida erradicação do analfabetismo. Por uma estratégia para transformar o Brasil em um país de leitores, todos lendo, graças a uma escola com a máxima qualidade e igual para todos. Para implantação de uma rede de bibliotecas, inclusive domésticas, financiadas com recursos públicos e com acervo de um bilhão de livros.

Desde quando, para calar a boca do ministro, lutam para que a leitura não seja um consumo, alguns consideram um vício, de rico, como tomar uísque? No máximo defende-se pequenas políticas positivas em prática há décadas para minúsculos, sem o salto para termos uma escola de qualidade entre as melhores do mundo e a qualidade igual para todos: independente da renda e do endereço. Com resultados concretos na formação de uma sociedade leitora, ávida por livros. Deixa assim ao ministro a chance de dizer, com lógica, o absurdo que ele disse: “ler é um privilégio de quem lê”.

Com a lógica da democracia neoliberal do eleitor, sem considerar o povo e sem ver o país adiante. O neoliberalismo econômico vê o livro como bem de consumo, não a leitura como vetor de riqueza estética, de ampliação da eficiência econômica e do horizonte de liberdade. Lógica também dos que se opõem à medida do ministro, mas querem livros baratos para os mesmos que já leem, sem propor a construção de um povo de leitura.

A imbecilidade do ministro tem lógica e não é só ele que pratica esta lógica: a democracia vista como o governo a serviço de cada indivíduo, não a serviço da nação, e sem uma liga com o futuro. Não temos uma liga moral com os não leitores e nem com a lógica econômica, não percebermos que o custo do livro não é só imposto, é também o resultado das tiragens baixas em um idioma de raros leitores.

A imbecilidade do ministro está na moral, ele não vê a importância da leitura nem tem sentimento de povo e de transcendência histórica que vai além do imediato. Mas também lhe falta inteligência contábil para saber que são tão poucos os leitores, que aumentar imposto sobre livro empobrece o país e não ajuda a equilibrar as contas públicas. Estamos divididos entre pobres que não leem e leitores que não veem. Não percebem que os pobres não leem por falta de dinheiro, mas sobretudo por falta de alfabetização e educação de base que promova o gosto e a capacidade de ler. Se todos lessem, os livros ficariam baratos e as bibliotecas seriam como bolsões de oxigênio cultural.

Temos que enfrentar o neoliberalismo anti-leitores de Guedes, mas distinto do neoliberalismo social de manter os benefícios apenas para os poucos leitores que temos. Precisamos barrar livros, este imposto contra a riqueza cultural, lembrando que Guedes é um detalhe grotesco de uma política anti-leitura de séculos no Brasil. Devemos aceitar impostos sobre os leitores ricos, mas não sobre a leitura, penalizar os bens de luxo que eles compram, mas não tratar livros como luxo… salvo talvez alguns que o ministro leu. São estes impostos sobre os bens de luxo, que não são livros, serem usados para baratear os livros, até também com menos impostos sobre eles, mas sobretudo com melhores escolas para todos, inclusive os filhos de ricos que também estão deixando de ler.

Mas o Guedes não é o primeiro a querer propor esta troca: por décadas, decidiu-se enfrentar a desigualdade regional levando água, não leitura, para o Nordeste. Certo que água é mais urgente para a sobrevivência, mas não transforma a sociedade. Porque a água, como impostos sobre livros, pode dar votos, mas não enriquece o povo, não ensina a votar, nem faz perene o fluxo de água e demais bens e serviços que o povo precisa, inclusive sua liberdade.

*Cristovam Buarque, ex-senador (Cidadania-DF), professor Emérito da Universidade de Brasilia (UnB)


Cristovam Buarque: Falta Nabuco

Educação no Brasil continua entre as piores no mundo

No século XIX, adotamos políticas em favor dos escravos — fim do tráfico, ventre livre, liberdade a sexagenários — sem defesa da Abolição. A maldade no tratamento aos escravos ficou mitigada, mas a barbaridade do regime continuou, amarrando a economia e comprometendo a decência. Em 1888, os abolicionistas venceram a luta pelo fim do sistema escravocrata, mas até hoje mantemos uma trincheira da escravidão: a reserva da educação de qualidade para poucos.

Desde 1980, diversas medidas beneficiam a educação — Emenda Calmon, merenda, livros didáticos, Fundef, Fundeb, PNE-I e II, BNCC, piso salarial — mas ela continua entre as piores e mais desiguais no mundo, emperrando a eficiência da economia e dificultando a justiça social.

Quando imaginamos a tragédia que ocorreria se o Fundeb fosse extinto, em 31/12 próximo, sua prorrogação deve ser comemorada. Mas, ao lembrar que já está em vigor há dez anos, imaginamos que, apesar de alguma melhora, a educação ainda não dará o salto de que precisamos. Devemos parabenizar os que não deixaram o Fundeb acabar e até conseguiram ligeiro aumento de recursos. Parabenizá-los como a Rio Branco, pelo ventre livre; Eusébio de Queiroz, pela proibição do tráfico, Saraiva e Cotegipe, pela Lei dos Sexagenários. Mas nenhum deles foi um Nabuco, e o Fundeb está longe de ser nossa “Lei Áurea do século XXI”: educação entre as melhores do mundo e com qualidade da escola igual para todos.

Para concluir a Abolição, será necessário mais do que leis, uma estratégia com a meta de colocarmos nossa educação entre as melhores do mundo e igual para todos os brasileiros, independentemente da renda e do endereço da criança. Para isso, tratar educação de base como questão nacional, implantarmos um Sistema Unificado Nacional de Educação, com carreira federal para os professores, definição de padrões nacionais para edificações e equipamentos, todas as escolas em horário integral, todas como concessão federal. Uma estratégia educacionista que derrube a última trincheira da escravidão, rompa as amarras ao nosso desenvolvimento e construa justiça social.

*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília


Cristovam Buarque: Celso Furtado - Além do centenário

Dos grandes autores lembramos o que escreveram, dos maiores adotamos o pensamento, mesmo sem saber o nome. Nós pensamos com base nas ideias de Baruch de Spinoza, Erasmo de Rotterdam, Adam Smith, René Descartes, Jeremy Bentham, David Hume, Aristóteles, John Maynard Keynes, Hannah Arendt e outros que romperam posições do passado e inventaram novas formas de entender a realidade.

Ainda quem nunca ouviu falar neles, pensa e age em função das ideias que eles construíram. Alguns brasileiros nos explicaram “de onde vem”, “como é”, “para onde deve ir” o Brasil. Entre outros, é possível citar Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Caio Prado, Sergio Buarque de Holanda, Josué de Castro, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Paulo Freire. Cada um teve sua influência na formação da mente brasileira: como nós entendemos nosso país e o mundo ao redor.

Desses, Celso Furtado tem influência decisiva para explicar o “de onde viemos”, “por que somos subdesenvolvidos”, quais os “entraves ao nosso desenvolvimento”, “como nos desenvolvermos”; ele também nos alertou para os riscos do progresso.

Antes do livro Formação Econômica do Brasil, víamos a nossa história como uma sucessão de fatos, especialmente políticos. Graças a Celso Furtado passamos a entender como a história avançou: a lógica e as forças que nos empurraram. Graças também a ele, entendemos porque esbarramos, em vez de avançar. Seus livros Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico e Dialética do Desenvolvimento são básicos para entender como certas economias se desenvolvem e porque outras ficam estagnadas.

Mas ele não foi apenas analista, foi também formulador de caminhos. Devemos a ele os documentos básicos de estratégias para o desenvolvimento do Brasil, como o “Plano Trienal”, e para superar a tragédia da pobreza e da desigualdade regional. Foi formulador da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) e homem de ação. A engenharia política para aprovar no Congresso as leis que serviram de base à criação da Sudene e dos instrumentos de incentivos fiscais foi uma obra de genialidade conceitual e de articulação política; tal como Nabuco nos dias de maio de 1888 para aprovar a Lei Áurea.

Passados alguns anos, foi Celso Furtado quem, no seu livro O Mito do Desenvolvimento, nos trouxe a percepção dos limites do desenvolvimento, tanto quanto Nabuco nos lembrou que a Abolição não se completaria sem reforma agrária e sem educação.

Por tudo isso, cem anos depois de seu nascimento, o pensamento e o exemplo de Celso Furtado estão vivos, nas lembranças e homenagens que os historiadores, economistas e políticos fazem à sua obra. Vivo também em milhões de brasileiros que, sem saber, usam conceitos e palavras que ele criou, sonham para o Nordeste e para o Brasil rumos que ele definiu, temem resultados negativos para os quais ele alertou.

Raros intelectuais e homenageados são lembrados tantos anos depois de sua obra, por quem o estudou e por quem pensa como ele ensinou, mesmo sem conhecer sua obra. A maior homenagem a ele não é, entretanto, lembrar a importância de sua obra, mas ter a consciência de como ele nos faz falta em um momento em que o Brasil vive em transe, não em transição, sem coesão, nem rumo.

Cometemos muitos equívocos nas duas décadas sem Celso. Uma das maiores foi burocratizarmos e amarrarmos o pensamento. Burocratizamos nas carreiras universitárias e amarramos em siglas partidárias. Deixamos de usar plenamente a liberdade criadora, paramos de ousar, nos apegamos às ideias do passado como se fossem camisas de força de uma lucidez superada pela realidade. Ficamos críticos ou bajuladores, não analistas e intérpretes inovadores.

A maior lição de Celso Furtado foi seu exemplo de pensar com rigor analítico e com liberdade imaginativa, sem amarras, sem líderes e sem siglas partidárias. Ninguém amarrou o pensamento de Celso Furtado, ninguém tolheu sua imaginação e todos reconhecem seu rigor. É nisso que precisamos seguir avançando no que ele formulou. Seu pensamento um dia evoluirá graças aos que seguirem seu exemplo, tanto quanto ele fez avançar o pensamento de seus mestres.

Olhando para sua própria obra e para os desafios de hoje, a maior homenagem ao Celso, nos seus cem anos, é agradecer pelos pilares intelectuais que ele nos deu nas ideias e no caráter, e pensar novas ideias e novos instrumentos para enfrentar os novos desafios. Agir como ele agiria: pensando além do que ele nos ensinou.

*Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB)


Cristovam Buarque: Nossos negacionistas

Para eles, estatal é sinônimo de público

Tudo indica que o atual governo deixará o Brasil em situação pior do que recebeu. A culpa não será da herança nem da epidemia, mas de seu obscurantismo, reacionarismo e falta de empatia. Bolsonaro olha o mundo por retrovisor embaçado, com raiva do passado e sem projeto para o futuro. Basta citar sua crença em mitos e narrativas sem comprovação científica; sua obsessão por ideias ultrapassadas, tanto as que adota quanto as que ele combate. Sua negação da realidade e da ciência, ao lado da falta de empatia, é o fator determinante para agravar a falta de coesão e rumo que enfrentamos há muitos anos.

Lamentavelmente, o negacionismo não é apenas dele e de seus seguidores. Muitas das lideranças na oposição também negam a realidade. Acreditam que estatal é sinônimo de público; que o Estado é sempre comprometido com justiça social, com eficiência e sem corrupção. Não enxergam que cada estatal tem também interesses próprios de políticos, servidores e dirigentes, às vezes opostos aos do público. Negam a realidade da corrupção, visível em malas com dinheiro, contas em santuários fiscais, propinas devolvidas. Veem a realidade como desejam que ela seja e divulgam as narrativas que lhes interessam.

Há momentos em que, para enfrentar catástrofes ou para executar projetos, governos responsáveis e solidários gastam mais do que arrecadam. Para isto, tomam empréstimos ou emitem moeda, mas sem negar que o déficit será cobrado depois por juros altos, aumento de impostos ou por desvalorização da moeda, com a desestruturação da economia e sacrifícios sobretudo para os pobres. Mas, enquanto bolsonaristas acreditam que a Terra é plana, oposicionistas acreditam que o Tesouro público é elástico, com dinheiro ilimitado. Outros confiam na lógica temerária de que os empréstimos ou emissões de moeda induzirão crescimento de produção que aumentará a arrecadação na dimensão necessária para cobrir déficits.

Negam também a realidade política ao optarem pelo acomodamento populista de aumentar gastos em uma prioridade sem sacrificar outras. Defendem que é possível fazer Copa e Olimpíada sem usar recursos que poderiam ir para educação e saúde; escondem que distribuir renda significa tirá-la de algum lado; negam que a gratuidade sempre é paga por alguém; e que aumentar gastos sociais exige reduzir subsídios e privilégios em outros setores; tratam privilégios como se fossem direitos; consideram que a vontade solidária não precisa respeitar a realidade.

Entre líderes e intelectuais progressistas, muitos negam os impactos das grandes transformações mundiais e seus impactos no Brasil: globalização, robótica, inteligência artificial, elevação na esperança de vida, redução na taxa de natalidade, limites ecológicos ao crescimento. Não percebem que, para construir progresso e justiça, a nova realidade do mundo exige reformar leis e regras da época em que a economia era nacional e a produção, manual. Tampouco enxergam que conhecimento e confiança são fatores determinantes da economia moderna. Por isso, não tomam a educação de qualidade para todos como o vetor do progresso e da justiça social; nem a estabilidade jurídica e monetária como os alicerces. Negam que o Brasil tem um sistema de apartação social no qual os trabalhadores sindicalizados do setor moderno não têm necessariamente interesse econômico, nem solidariedade política com os pobres excluídos. Não percebem que o equilíbrio ecológico vai exigir um novo modelo civilizatório que reduza padrões de consumo e substitua o PIB como indicador de progresso.

O terraplanismo não resiste à observação, mas as narrativas de nossos segregacionistas são convincentes e sedutoras, até que ocorram desastres. Por isso, o obscurantismo bolsonarista ameaça poucos anos e passa, o obscurantismo na oposição poderá ameaçar a coesão e o rumo por décadas.

*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília