Mais uma vez o presidente Jair Bolsonaro mostrou que só faz o que lhe dá na telha. Suas duas visitas ao Congresso em menos de dez dias, que muitos viram como um gesto de boa vontade, só ocorreram em razão de pautas políticas próprias. Na primeira, foi celebrar o humorista Carlos Alberto de Nóbrega, em homenagem proposta pelo deputado Alexandre Frota (PSL-SP). Na segunda, antes de ontem, foi levar um projeto de lei para a análise dos parlamentares. Um dos mais nefastos projetos já apresentados ao Congresso, que muda regras para condução e educação no trânsito.
A proposta de lei erra em todas as linhas. Primeiro, por que aumentar a validade do documento de habilitação? Pelo preço? Não faz sentido. O projeto deveria priorizar a fiscalização dos cursos de motorista. Também nada significa retirar a obrigatoriedade do uso de farol nas estradas. Apenas aumenta o risco nas pistas. Da mesma forma, é risível estabelecer que, em veículos de empresas, multas só podem ser dadas se o motorista não for identificado.
Há pontos ainda mais perigosos, como o de reduzir a gradação da penalidade para motociclistas que transportarem cargas em dimensões e peso acima do normal. Se você vir uma motocicleta conduzindo um armário, tudo bem, não é tão grave, segundo o projeto. Veículos com defeitos de fábrica poderão continuar circulando, e sua documentação não pode ser negada pelos órgãos oficiais, mesmo que o erro seja no funcionamento do freio. É ridículo.
Dobrar de 20 para 40 o volume de pontos para cassar a carteira de motorista infrator é convite à infração. Propor não multar mais motorista que não usar cadeirinha de segurança para transportar crianças é criminoso. A cada ano, 134 crianças de até 9 anos deixam de morrer por usar o equipamento. O presidente quer também acabar com os equipamentos eletrônicos de multas, os famosos pardais. “A multagem (sic) eletrônica vai deixar de existir para o bem dos motoristas do nosso Brasil”, disse o presidente, fazendo demagogia barata com a vida dos brasileiros.
Tão criminoso quanto o artigo da cadeirinha, que chocou o país e deve ser derrubado pelo Congresso, é o que acaba com o exame toxicológico de larga janela para candidatos a motorista profissional ou para a renovação da carteira. Esse exame, que vigora desde 2017, analisa geneticamente os candidatos e determina se fizeram uso de substância tóxicas nos 90 dias anteriores. Se o resultado for positivo, a habilitação é negada ou cassada.
Os números provam a eficiência da lei em vigor. Dados oficiais mostram que veículos pesados, que representam apenas 4% da frota nacional, são responsáveis por 38% dos acidentes nas estradas e 53% dos acidentes com vítimas fatais. Em média, 30% dos caminhoneiros usam drogas estimulantes para dirigir em longos percursos. Segundo a Polícia Rodoviária Federal, houve queda de 38% nos acidentes nas rodovias federais no primeiro ano da lei do exame toxicológico que o projeto de Bolsonaro quer agora revogar.
As seguradoras estimam impacto negativo de cerca de R$ 200 bilhões por ano na economia do país com acidentes de trânsito. Só no primeiro ano da lei, reduziu-se em mais de R$ 70 bilhões a perda econômica derivada de acidentes. Estima-se que o exame toxicológico salvou a vida de 56 mil pessoas apenas nas regiões Sul e Sudeste em dois anos. No mesmo período, 2,2 milhões de motoristas profissionais ou candidatos tiveram suas habilitações cassadas ou negadas.
Presidentes vão eventualmente ao Parlamento levar emendas constitucionais, como a da reforma da Previdência. Projetos de lei são quase corriqueiros e dispensam a presença presidencial na sua apresentação. No ano passado, só a Câmara aprovou 149 deles. E por isso, para defender o elenco de barbaridades contidos no seu projeto, Jair Bolsonaro fez esta visita inusitada ao Congresso na terça-feira.
Houve gente dizendo “oba, o presidente está dando sinais de reconciliação com o Congresso”. “Começou a fase de distensão”, afirmaram outros. Nada disso, o que se viu foi um homem cumprindo sua agenda política, falando apenas com o seu público. Ele fez um gesto a caminhoneiros e a motoristas profissionais, como se estes, aliás, não tivessem filhos.