O caminho que ele percorreu até a derrota para Biden é o mesmo que Bolsonaro trafega
Trump seria muito provavelmente reeleito se não houvesse o coronavírus, que o desmascarou. Suas mentiras, apesar de contadas aos milhares, eram absorvidas como mais do mesmo. Pareciam uma bobagem. Não eram, como se veria mais tarde. Seu estado de confrontação permanente também não assustava no princípio. Seus adversários do Partido Democrata tampouco se entusiasmaram com a campanha que viam se encaminhar para uma derrota inevitável. Por isso, talvez, Biden tenha sido o candidato escolhido para a disputa, por ser o mais talhado para o sacrifício.
Embora seja um político valoroso, de trajetória impecável, Biden era visto como um homem velho, de outra época. Eleito, seria o mais velho presidente a tomar posse nos Estados Unidos. Além disso, ou talvez por isso mesmo, seus lapsos de memória eram considerados até por seus mais fiéis aliados como um problema político sério. Biden foi gago na juventude. Corrigiu o problema com tempo e terapia, mas eventualmente tropeça numa palavra ou engasga no meio de uma frase. Um problemão num debate eleitoral.
E foi assim, atropelando aqui e ali uma palavra que não conseguia pronunciar, esbarrando num detalhe, numa cifra, numa referência de que não podia se lembrar, que Biden foi tocando a campanha até ganhar a eleição com margem folgada. Surpresa? Vista desde janeiro de 2020, imensa surpresa. Mas, como a campanha refletiu a negligência de Trump com a pandemia e o transformou num símbolo do negacionismo, a vantagem substancial do republicano foi aos poucos evaporando.
Não foi a economia. Em janeiro do ano passado, a economia americana bombava, e o emprego era pleno. O presidente Donald Trump tinha autoridade, embora sua arrogância tenha sido seguidamente confundida com liderança. Claro que foi enorme o impacto do vírus sobre a vida econômica americana, como de resto em todo o mundo. Milhões de pessoas perderam o emprego, milhares de empresas fecharam suas portas definitivamente. Um número sem tamanho de esperanças e sonhos foi sepultado com os 400 mil americanos que perderam a vida para a Covid-19.
Mas o eleitor saberia interpretar o problema como uma tragédia global e não o atribuiria ao candidato Donald Trump, não fosse ele o mais antidemocrático, mentiroso, arrogante, beligerante e perverso presidente da história americana. Seu descaso negacionista com o vírus contribuiu para a exorbitância das mortes. Trump rejeitou sistematicamente o uso de máscaras, repetiu que o vírus era perigoso apenas para cardíacos e idosos e, já em outubro do ano passado, disse aos americanos: “Não deixem que o vírus domine suas vidas, não tenham medo, saiam às ruas”.
O caminho que Trump percorreu desde sua posse até a derrota para Biden é o mesmo que Jair Bolsonaro trafega no Brasil. E seu desfecho tem tudo para ser o mesmo. Se Bolsonaro não for cassado antes, muito provavelmente vai perder a eleição de 2022. Como ocorreu com Trump, a confiança popular, que era seu maior patrimônio quando tomou posse, foi se deteriorando pelos mesmos motivos que destruíram o ídolo norte-americano: a mentira, o ódio, o desprezo à vida e o desrespeito à democracia.
No Brasil, a pandemia contaminou o governo Bolsonaro da mesma forma que destruiu o de Trump. Uma boa parte das mais de 210 mil vítimas brasileiras deve ser atribuída à negligência e ineficiência do governo federal. A ilusão do tratamento precoce e o descaso com cuidados básicos, além dos maus exemplos, da politização do vírus e do atraso deliberado na compra de vacinas, aumentaram a conta de brasileiros mortos. Bolsonaro, seus pazuellos e ernestos um dia pagarão pelos crimes agora cometidos.
E agora, quando percebeu estar encurralado, tornou a ameaçar a democracia. Uma de suas velhas retóricas, a mais infame delas, voltou a brotar na boca do presidente. Os brasileiros devem dar ao golpismo de Bolsonaro o mesmo destino que os americanos deram ao de Trump: o lixo. Se não for já, que seja logo mais, em outubro do ano que vem.