Benito Salomão | Correio Braziliense *
Nossa distribuição populacional no território contrastada com uma representação política na Câmara e no Senado é capaz de produzir freios ao poder eleito
Este artigo tem um significado simbólico, pois se trata do meu artigo de número 200 para diversos jornais para os quais contribuí desde 2010. O título é provocativo, já que no embate político local, apoiadores de uma das candidaturas postas argumentam que caso a outra candidatura seja vitoriosa nas eleições do próximo dia 2, o Brasil tenderá a replicar o fracasso econômico da Argentina.
Escrevo este artigo da Cidade de Córdoba, na Argentina, onde passei a semana participando de um seminário acadêmico, a 55ª Jornada Internazionale de Finanzas Públicas, evento anual que há mais de meio século contribui para a fronteira do conhecimento na área das finanças públicas. Participo ininterruptamente deste encontro desde sua 49ª edição, em 2016.
O argumento utilizado na eleição deste ano associa o fracasso econômico argentino a governos de esquerda. O diagnóstico, evidentemente, está equivocado. Participando do encontro e conversando com os amigos argentinos, pude identificar claramente que a raiz dos seus problemas econômicos é a captura do Estado por elites políticas. Há uma vasta literatura que disserta sobre a qualidade institucional e os incentivos por ela criados, que levam os países à prosperidade ou ao fracasso. Portanto, governos de esquerda ou direita podem performar bem diante de instituições de boa qualidade.
O livro Why the nations fail? (Por que as nações fracassam?), de Daron Acemoglu e James Robinson, corrobora com o meu argumento. Os autores dissertam sobre modelos institucionais que podem ser: i) inclusivos; ou ii) extrativistas. No primeiro caso, as instituições garantem aos cidadãos colherem os frutos dos próprios trabalhos, há incentivos à competição e à inovação que geram crescimento econômico. Já no caso de instituições extrativistas, o fruto do trabalho alheio é capturado pelo Estado, que é dirigido por elites (políticas, produtivas, financeiras, burocráticas e sindicais).
Esse segundo caso parece se adequar mais ao exemplo da Argentina, que flagrantemente vem empobrecendo diante de crises sistêmicas e de uma inflação crônica. O país vive desequilíbrios fiscais crônicos, que estão associados, por sua vez, com a concentração de poderes nas mãos de seus governos (federal; provinciais e locais). A elevada concentração demográfica na província e na Cidade Autônoma de Buenos Aires, torna o modelo político argentino rígido.
Em 2003, Néstor Kirchner ascendeu ao poder no país, sendo sucedido, em 2007, por sua esposa, Cristina Kirchner, que exerceu o poder até 2015. Após um mandato de Maurício Macri entre 2016 e 2019, Cristina Kirchner retorna ao governo exercendo a função de vice-presidente.
Em outras palavras, há um problema de alternância de poder na Argentina, que está relacionado com vários fatores: i) demográficos, tornar-se presidente na Argentina requer vencer as eleições na província de Buenos Aires, que concentra aproximadamente 36% do eleitorado do país.
No que se refere ao parlamento, Buenos Aires mostra novamente sua importância, a província possui 70 deputados na Câmara Federal, enquanto a Cidade Autônoma de Buenos Aires possui 25 deputados, de um total de 257 cadeiras. Ou seja, mais de 36% da Câmara Federal argentina é composta por parlamentares de uma única região.
Esse excesso de poder político dá ao presidente e à sua base de apoio no Congresso e nas elites a capacidade de mudar regras discricionariamente, de acordo com suas conveniências. Recentemente, se discute no país a mudança do número de juízes em tribunais superiores, obviamente isso não está sendo pensado com o nobre intuito de aprimorar o sistema judicial do país, mas sim de submetê-lo.
O Brasil não vai se tornar uma Argentina caso um governo de esquerda saia eleito do próximo dia 2 de outubro. Nossa distribuição populacional no território contrastada com uma representação política na Câmara e no Senado é capaz de produzir freios ao poder eleito.
Freios estes que funcionaram relativamente bem, ajudados por um Supremo Tribunal Federal independente, a impedir parte dos retrocessos tentados pelo governo atual. Durante a pandemia, prefeitos e governadores tiveram autonomia para adotar suas políticas de saúde, ainda que o governo federal as sabotasse.
Isso não significa que o Brasil, como qualquer outro país, esteja imune à decadência política. Vigilância quanto ao modelo institucional vigente, reforçar as amarras sobre o poder e reformas que favoreçam à competição e à inovação, devem ser pensadas.
*Artigo de Benito Salomão – Economista chefe da Gladius Research, doutor em economia PPGE UFU, publicado no Correio Brasiliense