Na ocasião do centésimo aniversário da Revolução Russa e do octogésimo da morte de Gramsci, o presente ensaio se propõe a contribuir para a contextualização histórica da personalidade e do pensamento desse pensador, seguindo uma abordagem que se consolidou sensivelmente nos estudos mais recentes. O tema da relação de Gramsci com o leninismo e o bolchevismo foi debatido infinitas vezes, mas hoje, um quarto de século depois do fim do comunismo na Europa e na Rússia, podemos nos libertar de limitações definidoras e ideológicas. Um modo de fazê-lo é reconstruir os vários fios que ligam o percurso de Gramsci antes da prisão e depois, no cárcere, com a experiência central da Revolução Russa. Esses fios são entrelaçados com toda a sua biografia de 1917 em diante, a tal ponto que não é fácil isolar o próprio tema e fornecer pistas interpretativas capazes de unir comentários, percepções, análises, estratégias e reflexões. Mas é necessário fazê-lo se quisermos compreender melhor o nexo entre a ação política e o pensamento. Pretende-se sugerir que justamente isolando o tema da Revolução Russa podemos ver com mais precisão a formação das principais categorias do pensamento político de Gramsci.
Por Silvio Pons
Università degli Studi di Roma “Tor Vergata”.
Roma, Italia. pons.silvio@gmail.com
O IMPACTO DA REVOLUÇÃO E O NASCIMENTO DE UMA NOVA ESTATALIDADE (1917-1921)
A revolução dos bolcheviques é feita de ideologias mais do que de fatos. (Por isso, no fundo, pouco nos importa saber mais do que sabemos). Essa é a revolução contra O Capital de Karl Marx. O Capitalde Marx era, na Rússia, o livro dos burgueses, mais do que dos proletários. Era a demonstração crítica da necessidade fatal de que na Rússia se formasse uma burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se instaurasse uma civilização de tipo ocidental, antes que o proletariado pudesse sequer pensar na sua emancipação, nas suas reivindicações de classe, na sua revolução. Os fatos superaram as ideologias. Os fatos fizeram explodir os esquemas críticos dentro dos quais a história da Rússia deveria se desenvolver de acordo com os cânones do materialismo histórico. Os bolcheviques renegam Karl Marx e afirmam, com o testemunho da ação explícita, das conquistas realizadas, que os cânones do materialismo histórico não são tão férreos como se poderia pensar e se pensou.1
É esse o célebre primeiro comentário de Gramsci sobre a Revolução de Outubro, menos de um mês após a tomada do poder pelos bolcheviques. Ponto de chegada das reflexões dedicadas por ele à Rússia depois da Revolução de fevereiro, mas também antecipação de muitas problemáticas futuras, a “revolução contra o Capital” tornou-se, retrospectivamente, uma chave de acesso à biografia política e intelectual gramsciana, e até mesmo às motivações de uma geração inteira de jovens revolucionários que viveram o trauma da Guerra Mundial (Eley, 2017). De fato, aquelas palavras de Gramsci continuam a nos parecer penetrantes e emblemáticas. Penetrantes porque apreendem um núcleo essencial do pensamento e da ação de Lenin e dos bolcheviques, que revisa o marxismo da Segunda Internacional. Emblemáticas porque constituem o embrião de uma cultura política centrada no papel da subjetividade, a base de uma visão antideterminista e antimecanicista da história. Nesse sentido, emerge logo a trama entre o impacto da revolução e a reflexão sobre categorias da política moderna, destinada a permanecer traço distintivo de Gramsci por muitos anos.
Essa trama se enriquece rapidamente de significados no contexto da luta política e dos conflitos sociais na Itália e na Europa no final da guerra. Gramsci desenvolve juntamente uma idealização da Revolução Russa, própria naquele momento de muitos jovens intelectuais socialistas e marxistas, e uma leitura não convencional das suas características, que se liga a uma precisa visão das consequências da Guerra Mundial: a emergência de uma nova consciência social da mobilização total, o salto de qualidade da modernidade política como a participação de massa na vida pública, a exigência de uma reconfiguração radical da ordem mundial. Por essa via, Gramsci legitima sem reservas a ação de Lenin e dos bolcheviques, que vê não como utópicos mas realistas, organizadores da consciência de massa e portadores de ordem no caos russo, aderindo à ideia e à prática da ditadura do proletariado como instituto de garantia da liberdade. Ele parece não ter sido tocado nem minimamente pela dúvida, presente entre os socialistas europeus da época, de que o poder do partido possa desautorizar o autogoverno dos Conselhos Operários. Ao contrário, ele pensa que os sovietes e o partido bolchevique sejam os “organismos” integrados da nova ordem, capazes de criar novas hierarquias baseadas em uma “autoridade espiritual”, fonte de socialização e de uma cidadania responsável (Il Grido del Popolo, 22 jun. 1918; Avanti!, 25 jul. 1918). Assim, participa da construção de um mito da revolução. Bem consciente da lição de Sorel a respeito da importância de um mito fundador na moderna sociedade de massas, como fator de organização de uma vontade coletiva, instaura uma dialética entre a narração meta-histórica de nascimento de uma “nova ordem” e a sua posição no tempo histórico do pós-guerra. Ele continua a ver a revolução como fruto de uma profunda agitação da sociedade, uma combinação entre o crescimento espontâneo da consciência de massa e a ação da subjetividade política. Identifica logo o cenário da “nova ordem” com a figura do Estado bolchevique, seu monopólio da força e seu grupo dirigente. A centralidade dessa visão historicamente determinada foi talvez subestimada pelos estudiosos e, pelo contrário, merece um foco particular pelas suas implicações no longo prazo.2
Ao final da Guerra Mundial e após a eclosão da guerra civil na Rússia, Gramsci desenvolve sua própria visão do Estado revolucionário, acrescentando novas peças ao aparato delineado na “revolução contra o Capital”. A República dos Sovietes é para ele “um Estado orgânico, constitucionalmente e historicamente justificado”, cuja legitimação reside em sua força militar (Avanti!, 9 fev. 1919). A instauração de uma nova estatalidade lhe parece “o fato essencial da Revolução Russa”, e Lenin, “o maior estadista da Europa contemporânea” (L’Ordine Nuovo, 5 maio e 7 jun. 1919). Não parece sensato nem possível separar a visão do Estado bolchevique da ideologia conselhista que Gramsci desenvolve com a fundação do movimento Ordine Nuovo (Nova Ordem), em Turim. A experiência conselhista extrai alimento original do novo protagonismo operário que na Alemanha e na Itália adquire uma dimensão mais ampla do que na Rússia, mas que é inconcebível, nas suas formas e dinâmicas, sem a interação com a Revolução Russa. Os escritos de Gramsci estabelecem uma constante interdependência entre a politização das massas, a revolução bolchevique, a crise da ordem liberal e capitalista pré-bélica, o problema de reconstruir uma ordem internacional e o colapso da configuração tradicional da sociedade italiana. A idealização da Revolução Russa e a análise do pós-guerra europeu convivem entre si. Entre o fim de 1918 e o início de 1919, com a queda dos impérios centrais, generaliza-se a percepção de uma possível onda de levantes revolucionários, que suscita esperanças e medos. O colapso da velha ordem europeia é uma realidade, não uma imaginação. A ideia que a revolução na Europa e o autogoverno dos trabalhadores fosse atual, mais que a construção de Estados democráticos, corresponde à percepção de muitos no inverno 1918-1919, no contexto de uma crescente radicalização e mobilização de forças opostas. Gramsci não assume o “modelo” de revolução mas pensa que a agitação profunda provocada pela guerra leva à construção de uma “nova ordem” que a Rússia está antecipando e revelando.
No rastro da Internacional comunista, Gramsci adota uma visão catastrófica do pós-guerra. O quadro da vida internacional lhe parece “uma espantosa tempestade em uma paisagem de ruínas”, a mesma “organização da civilização mundial … desintegrada na sua totalidade”, uma vez que “os Estados liberais metropolitanos se desfazem em seu interior” e “o sistema das colônias e das esferas de influência se desintegra” (L’Ordine Nuovo, 1 maio 1919). Gramsci não considera uma autêntica possibilidade a reconstrução da Europa burguesa, em formas democráticas ou autoritárias, que ele apresenta como uma perspectiva e uma tentativa contingente. Todavia, foge de visões deterministas e inscreve as próprias considerações no campo das possibilidades históricas. A sua ênfase recai sobretudo na possibilidade salvadora de que “uma classe dirigente nova … construa uma nova ordem internacional que unifique a consciência universal do mundo”. Nesse sentido, as forças revolucionárias e soviéticas na Rússia, na Baviera, na Hungria e também na Itália lhe parecem a única barreira contra a dissolução da sociedade e a guerra civil europeia. A distância entre o mundo institucional e cultural e o socialismo é radical: os comunistas devem se opor com sua cultura política, sabendo que “a crise catastrófica na qual se debate a civilização europeia só pode ser detida pela substituição radical do Estado democrático-parlamentar por um sistema de Conselhos operários e camponeses” (L’Ordine Nuovo, 2 ago. 1919).
Tal ótica visionária não impede análises baseadas no realismo, sobretudo construídas com base em categorias geopolíticas. Ele se faz intérprete de sentimentos transversais na opinião política europeia e percebe as figuras de Lenin e Wilson como protagonistas de duas visões opostas da ordem pós-bélica, ambas inovadoras, uma alternativa entre a paz obtida pela revolução socialista e a paz relacionada à democracia capitalista (Avanti!, 5 jul. 1918; Il Grido del Popolo, 12 out. 1918). A oposição entre Lenin e Wilson é, na realidade, uma simplificação que não dá conta da complexidade política e social das opções em campo no fim da guerra. As trajetórias do leninismo e do wilsonismo estão ambas destinadas, em diversos modos, a deixar uma marca fundamental, mas também a declinar precocemente na contingência do pós-guerra.
Todavia, tal chave captura a entrada em cena de forças destinadas a modificar a política mundial de modo irreversível. Não é exagero afirmar que os escritos gramscianos desses anos mostram uma visão global, ainda que concentrada na Europa. Gramsci entrevê a emergência de uma hegemonia mundial anglo-americana após a queda dos impérios centrais e põe em questão a crise do Estado-nação europeu, na qual enquadra a crise do Estado italiano (Avanti!, 10 maio e 18 jul. 1919). Percebe as incongruências geopolíticas da paz de Versalhes, que não atingem somente a Alemanha, mas todo o ordenamento da Europa oriental e da Rússia (L’Ordine Nuovo, 15 maio 1919).
Em tal contexto, a força do poder bolchevique na guerra civil e a onda de violência que abala a Europa em tempo de paz levam-no a deslocar gradualmente o foco do tema da consciência social e da iniciativa de baixo para a noção de relações de força e à consolidação de uma nova ordem política. Como já se observou, elas representam “duas correntes de base” do seu pensamento político, que compreende a revolução socialista não só como automobilização das massas e libertação individual, mas também como coesão e ordenamento do corpo social, sobretudo pela figura e autoridade do Estado (Rapone, 2011, p.409). Ele dirige atenção crescente ao segundo dos dois polos, quanto mais se fundem aos seus olhos a atualidade da revolução na Europa e a emergência do poder bolchevique da guerra civil na Rússia.
Gramsci não se debruça sobre o principal paradoxo da Revolução Russa: ter realizado o que Lenin e os outros líderes bolcheviques consideravam impossível, sobreviver apesar do isolamento internacional, defender com sucesso seu poder na guerra civil apesar da ausência da revolução na Europa. Só mais tarde as consequências de tal paradoxo tornam-se evidentes. Ele delineia principalmente a ideia de que a derrota das revoluções na Europa central implica o abandono da noção de uma “revolução em dois tempos”, a exemplo daquela realizada na Rússia entre fevereiro e outubro de 1917 (L’Ordine Nuovo, 3 jul. 1920). É uma mudança ainda parcial e incompleta, que confia os sucessos revolucionários à construção de fortes partidos comunistas na Europa, segundo o projeto anunciado pelo Comintern. Assim, a perspectiva de uma revolução europeia que não se destina a seguir o exemplo russo reforça e não enfraquece o nexo com o “partido mundial da revolução” em Moscou. Ainda mais no contexto da derrota sofrida pelas lutas operárias na Itália na primavera-verão de 1920, já visível antes do seu auge na ocupação das fábricas em setembro (Tasca, 1973, p.113-114). A guerra russo-polonesa e o seu êxito consolidam essa passagem. O objetivo da tomada de Varsóvia, a expectativa de uma insurreição proletária na Polônia e na Alemanha e a esperança de exportar a revolução “na ponta das baionetas” movimentam o segundo Congresso do Comintern entre julho e agosto. Gramsci nutre as mesmas esperanças. Ele abraça a ideia de que a Rússia soviética é uma “potência mundial”, visão expressa antes da clamorosa derrota do Exército Vermelho (L’Ordine Nuovo, 14 ago. 1920). Todavia, essa noção se aplica à força real manifestada pelo Estado construído pelos bolcheviques e à perspectiva da sua difusão em escala mundial, independentemente dos resultados da guerra na Polônia. Nesse sentido, a consonância de Gramsci com Lenin é particularmente significativa, porque não está confinada à ilusão revolucionária que se esvai repentinamente e olha além da contingência estratégica do verão de 1920. A presença do Estado bolchevique não parece então decisiva somente pela sua constituição interna e por seu exemplo revolucionário, mas pela sua projeção e influência no sistema internacional dos Estados e no poder mundial. A oposição Lenin-Wilson desvanece e nenhuma das duas figuras espelha retrospectivamente os significados e as tendências do imediato pós-guerra. Mas as forças de mudança postas em movimento pela Guerra Mundial estão igualmente em ação. O projeto leninista permanece atual pela mutação da guerra civil e marca o tempo histórico do pós-guerra.
O ESTADO SOVIÉTICO, O MOVIMENTO COMUNISTA E A HEGEMONIA REVOLUCIONÁRIA (1922-1926)
A partir do nascimento do Partito Comunista d’Italia (PCd’I), em janeiro de 1921, a experiência de Gramsci se desloca do terreno da intervenção militante e da criação de cultura política ao da ação voltada à construção do partido. Tal ação revelará em diversos momentos a influência dos paradigmas de leitura originários e lançará luz sobre o acúmulo de experiências também do ponto de vista analítico, destinadas a recuperar, afinar e também a modificar profundamente aqueles paradigmas. Sobrepõem-se então dois registros diferentes: de um lado, o da estratégia do movimento comunista e do PCd’I, e de outro, o dos acontecimentos da Rússia soviética, que entram em estreita interação entre si. O advento do fascismo na Itália, as convulsões da reconstrução europeia e a “construção do socialismo” na Rússia tornam-se os cenários essenciais no interior dos quais se desenvolvem as análises políticas e estratégicas gramscianas. No período transcorrido em Moscou em 1922 e 1923, Gramsci vive por experiência própria o nexo entre a consolidação do governo bolchevique após guerra civil e a reformulação de uma estratégia do movimento comunista, em muitos aspectos contrastantes com as convicções amadurecidas por ele até aquele momento. Gramsci toma consciência de três passagens decisivas que refletem o fim da fase de movimento aberta no último ano da Guerra Mundial e o isolamento da Revolução Russa: o rígido vínculo da unidade do grupo dirigente imposto por Lenin como condição de existência da “ditadura do proletariado”; o discurso sobre a aliança operária e camponesa ligado à Nova Política Econômica (NEP) como condição de uma base social da construção socialista; a “frente única” considerada como redefinição estratégica após a derrota da revolução europeia. Somente após o período moscovita, emergem paulatinamente uma ideia processual da revolução e uma análise do fascismo como fenômeno não efêmero de reorganização do poder na sociedade de massa, reflexão inspirada pelo Comintern (sobretudo por Bukharin) e comum a todo o grupo dirigente italiano, ainda imerso em seus sonhos revolucionários.
Nessa evolução, o momento de virada é representado pelo fracasso da tentativa revolucionária de outubro de 1923 na Alemanha e pela morte de Lenin. O outubro alemão mostra como a construção de partidos comunistas organizados era condição necessária, mas não suficiente, para a revolução na Europa. Gramsci aceita a interpretação do fracasso formulada pelos dirigentes do Comintern, que atribuem toda a responsabilidade aos comunistas alemães. Todavia, não se limita a isso e formula em Viena, em fevereiro de 1924, a primeira ideia de uma visão diferenciada da revolução no Ocidente, escrevendo que
a determinação, que na Rússia era direta e lançava as massas nas ruas ao assalto revolucionário, na Europa central e ocidental se complica por todas aquelas superestruturas políticas, criadas pelo maior desenvolvimento do capitalismo, o que torna mais lenta e mais prudente a ação da massa e demanda, portanto, do partido revolucionário toda uma estratégia e uma tática mais complexa e de maior fôlego em relação às que foram necessárias aos bolcheviques no período entre março e outubro de 1917. (Togliatti, 1974, p.197)
Essa é uma novidade no discurso político e um elemento de reflexão único no panorama do comunismo europeu, não somente no confronto com Bordiga. As palavras empregadas por Gramsci são mais ricas de implicações da crítica à revolução “em dois tempos” formulada em 1920, porque reconhecem a complexidade política das sociedades europeias e vinculam as características da Revolução Russa a uma contingência histórica. Vale a pena observar que tal afirmação precede um pouco a primeira análise autêntica de Gramsci, já de volta à Itália, sobre o fascismo como um fenômeno de massa original (Gramsci, 1971, p.33-34). Nessa mesma passagem, Gramsci insiste na incapacidade dos comunistas italianos em obter uma adesão de massa entre os operários no momento da cisão de Livorno, apesar “da autoridade e do prestígio” da Internacional comunista, êxito julgado impiedosamente como uma derrota: “fomos derrotados, porque a maior parte do proletariado organizado politicamente não nos deu razão … Fomos – é necessário dizer – arrastados pelos acontecimentos; fomos, involuntariamente, um aspecto da dissolução geral da sociedade italiana” (L’Ordine Nuovo, 15 mar. 1924). Gramsci emprega palavras duras que retornarão no ano seguinte nas “Teses de Lyon” e que deixarão uma marca na sua trajetória intelectual e política.
Entrementes, seu elogio fúnebre representa plenamente a identificação, realizada logo após a revolução, entre a liderança leniniana e a ditadura do proletariado como fator de ordem e de autogoverno das massas: Lenin é “o expoente e o último e mais individualizado momento de todo um processo de desenvolvimento da história passada, não somente da Rússia, mas do mundo inteiro”. No seu legado, Gramsci põe em primeiro plano “a ideia de hegemonia do proletariado … concebida historicamente e concretamente”, que se expressou na NEP e na fórmula da aliança entre os camponeses pobres (L’Ordine Nuovo, 15 mar. 1924). Ele emprega a noção de hegemonia seguindo a acepção prevalente no bolchevismo do início dos anos 1920, que pôde apreender durante a sua permanência em Moscou. Ainda mais do que na linguagem de Lenin, tal noção é explícita nos discursos de Zinoviev, o presidente do Comintern. Já em 1922, ele invoca a exigência de que a classe operária no poder, em um país prevalentemente componês e sitiado pelo capitalismo, adquira uma visão “estatal geral”, afastando-se dos seus “interesses corporativos” para exercitar o próprio papel “hegemônico” e de “guia da revolução em escala nacional e internacional”.3 Em 1923, o próprio Zinoviev eleva a noção de hegemonia à principal categoria do bolchevismo, com boa dose de aproximação e propagandismo, indicando como exemplo dela também a construção do Exército Vermelho (Brandist, 2015, p.101). Os termos “hegemonia” e “direção” aparecem amplamente sobrepostos. De qualquer modo, institui-se uma continuidade entre o papel das alianças sociais antes da revolução e após a revolução que serve como ensinamento para todos os comunistas, começando por aqueles dos países de industrialização recente como a Itália. Filtrada pela experiência moscovita, a combinação gramsciana entre consciência social, subjetividade política e organização estatal se manifesta assim de forma diversa em relação ao “biênio vermelho” de 1919-1920. E todavia, ele mantém firme a interdependência entre a estatalidade revolucionária na Rússia e a revolução na Europa, tematizada então na chave de influência, exemplo e potência mundial. A diferenciação entre Rússia e Ocidente não significa perder o senso de interdependência dos cenários revolucionários e dos processos mundiais. Para Gramsci não existe uma dimensão separada da revolução no Ocidente, mas sobretudo um problema persistente de “tradutibilidade” da revolução bolchevique no plano nacional e europeu. Justamente por isso, a morte de Lenin abre uma interrogação dramática sobre a capacidade do grupo dirigente russo e do “partido mundial” revolucionário em preservar o próprio projeto.
Gramsci é consciente das divisões do grupo dirigente bolchevique que se delineiam entre o fim de 1923 e o início de 1924, especialmente em torno do regime interno de partido e do êxito do outubro alemão, mas em uma situação ainda fluida. A questão reemerge clamorosamente no outuno de 1924, em seguida ao célebre texto de Trotsky sobre “As lições de outubro”, destinado a suscitar paixões e interrogações bem mais substanciais e angustiantes. A luta entre os sucessores de Lenin apresenta uma dupla implicação para todos os comunistas da época: uma ruptura que atravessa de modo transversal todo o movimento comunista, com consequências imprevisíveis; um descolamento entre a “construção do socialismo” na União Soviética e o destino da revolução mundial. Como todos, Gramsci segue uma lógica de alinhamento. Mas não a segue até as extremas consequências e até opõe a ela uma vigilância crítica. Não é difícil ver os elementos políticos e intelectuais que o levam a defender posições não conformistas, mostrando uma relação peculiar com a herança de Lenin. Ele se preocupa sobretudo com o perigo constituído pelo fato de que “a falta de unidade no partido, em um país no qual há um só partido, cinde o Estado”.4 Uma constatação crítica em relação à oposição trotskista mas também em relação à maioria staliniana do partido soviético, que rotulando a oposição como um corpo estranho ao Comitê Central constrói uma unidade fictícia do partido. Mas também uma constatação desligada da contingência e muito enraizada na visão gramsciana da “ditadura do proletariado” como Estado orgânico, desenvolvida desde os anos da guerra civil. Nesse ínterim, propõe-se a manter aberto um discurso sobre a atualidade da revolução e desconfia de análises instrumentais do conflito político. Por isso acolhe sem entusiasmo a noção da “estabilização relativa” do capitalismo que se destaca nas análises de Stalin e Bukharin na metade dos anos 1920 e que se liga à teoria do “socialismo em um só país”. Embora a sua linguagem seja amplamente bolchevizada, ele não tolera as fórmulas onicompreensivas cunhadas pelo Comintern no plano analítico. Assim, ele delineia uma análise diferenciada dos países capitalistas europeus ao longo de um esquema centro-periferia, que não se encontra nas concepções do Comintern e ressoa sobretudo as suas análises geopolíticas que remontam a anos anteriores.5 Em síntese, Gramsci adere com convicção à ideia da “construção do socialismo”, mas sua visão política não segue fielmente as coordenadas do pós-Lenin.
A célebre carta de 14 de outubro de 1926 ao Comitê central do partido soviético constitui o momento no qual a visão gramsciana se cristaliza antes da prisão. Sua trama se articula sobre dois pontos: primeiro, o nexo entre “socialismo em um só país” e revolução mundial não é resolvido de uma vez por todas, mas deve ser definido nas distintas ocasiões, à luz dos interesses estatais da União Soviética, do papel desempenhado pelo partido russo no movimento comunista internacional, da análise das realidades nacionais no mundo capitalista; segundo, a condição para realizar essa tarefa é reforçar, e não enfrquecer, a unidade do grupo dirigente russo, sobretudo nas condições da NEP e da “aliança” entre operários e camponeses. O perigo de uma “cisão” da qual revelava temor desde o início da carta é por isso ligado estreitamtente ao risco de perder o papel de “propulsão revolucionária” desempenhado pelo Estado soviético. Embora sustentando politicamente a maioria do partido russo, Gramsci endereça aos seus dirigentes a advertência mais severa: a de “anular a função dirigente” própria do partido russo no “partido mundial” e de “perder de vista os aspectos internacionais das próprias querelas russas”. Dada a sua visão do Estado revolucionário, o tema da unidade não é para ele um dado interno das lógicas do partido russo, mas um problema internacional, decisivo para os militantes comunistas e para as “grandes massas trabalhadoras”. No risco de uma cisão ele vê postos em discussão “o princípio e a prática da hegemonia do proletariado” e “as relações fundamentais de aliança entre operários e camponeses”, isto é, “os pilares do Estado operário e da Revolução”. A sua crítica à oposição trotskista está centrada no argumento fundamental de que ela tenha traído a ideia de que o proletariado “não pode manter a sua hegemonia e a sua ditadura” sem sacrificar os próprios “interesses corporativos” e ressuscite, portanto, “toda a tradição da social-democracia e do sindicalismo”, obstáculo principal ao “organizar-se como classe dirigente” do proletariado ocidental. Mas a sua preocupação é que a maioria staliniana pretenda ganhar com vantagem esmagadora e favorecer uma cisão que produziria danos “irreparáveis e mortais”.6 Replicando pouco depois a Togliatti – que como se sabe, de Moscou julga um erro político a crítica gramsciana e invoca uma adesão incondicional à linha da maioria do partido bolchevique -, Gramsci repete com firmeza que o problema levantado na carta envolve “a hegemonia do prolet[ariado]” e a estabilidade do Estado na Rússia, a sua percepção dele entre as massas de trabalhadores, portanto o sentido e a missão dos comunistas. O seu ponto essencial é que o papel da União Soviética como “organizador das massas mais potentes que já apareceram na história” não deve ser considerado “já adquirido de forma estável e decisiva” porque, pelo contrário, “ele é sempre instável”. Assim se exprime Gramsci:
hoje, 9 anos depois do outubro de 1917, não é mais o fato da tomada do poder pelos bolcheviques que pode revolucionar as massas ocidentais, porque isso já foi dado como certo e produziu os seus efeitos; hoje é ativa, ideologicamente e politicamente, a persuasão (se existe) de que o proletariado, uma vez tomado o poder, pode construir o socialismo. A autoridade do P[artido] está ligada a essa persuasão, que não pode ser inculcada nas grandes massas com métodos de pedagogia escolástica, mas somente de pedagogia revolucionária, isto é, somente pelo fato político de que o P[artido] R[usso] no seu conjunto está persuadido e luta unitariamente.7
Essa tomada de posição é atípica no contexto do comunismo ocidental, como os historiadores sempre souberam. Mas hoje vemos melhor como ela implica um nexo essencial entre a questão da revolução no Ocidente e a questão da evolução na União Soviética, que ele desenvolverá nos anos do cárcere (Pons, 2008, p.403-430). Gramsci continua a ver a figura do partido bolchevique como partido de governo e aglutinador de um Estado proletário, como havia feito desde os anos da guerra civil. Seu apelo apresenta, entretanto, uma implicação muito significativa. Ele enfatiza a importância do recurso simbólico e político constituído pela autoridade do Estado e pela credibilidade da “construção do socialismo” no plano internacional não menos que na União Soviética. Estabelece assim um nexo entre hegemonia e autoridade como um objetivo político a ser conquistado e não como um dado de fato. Essa conexão se distingue da linguagem bolchevique, que enfatiza o momento da direção, e também do emprego precedente daquele termo criado pelo próprio Gramsci, que era de tipo convencional (hegemonia como supremacia) ou referente às alianças de classe no rastro da concepção leninista da NEP. Delineia-se uma acepção específica do conceito e uma centralidade cultural que ele nunca havia ocupado no bolchevismo, apesar da sua recorrência lexical (Di Biagio, 2008, p.379-402). As suas consequências políticas não foram expostas, as intelectuais foram desenvolvidas nos Cadernos do cárcere.
O OLHAR DO CÁRCERE: “GUERRA DE POSIÇÃO” E “REVOLUÇÃO PASSIVA” (1929-1935)
No cárcere, Gramsci não se distanciará mais dos princípios enunciados nas cartas de 1926 e desenvolverá as interrogações implícitas neles. Muitas notas dos Cadernos constituem um esforço intelectual solitário de encontrar respostas sobre a evolução vivida pela União Soviética e pelo Comintern, voltando a pensar nas próprias fontes originais e colocando-as no contexto analítico do mundo do pós-guerra. No período compreendido entre a sua prisão (outubro de 1926) e o planejamento da escrita (fevereiro de 1929), Trotsky e a oposição empreendem sua última batalha e são condenados e expulsos do partido, o grupo dirigente staliniano lança violentas “medidas excepcionais” no campo, e o Comintern adota uma linha “de esquerda” no sexto Congresso. A escrita de Gramsci começa a tomar corpo entre 1929 e 1930, depois que o Comintern realizou a virada extremista resumida nas palavras de ordem do conflito “classe contra classe” e do “social-fascismo”, que ele julga um erro pagando o preço de uma séria marginalização nas relações com o partido italiano. Assim, a condição de prisioneiro não é o único impedimento e a única fonte de solidão na relação com o mundo externo. A dimensão que lhe pertence não é, porém, a do distanciamento e do desencanto, mas a da dissensão e da revisão.
O elemento primário de análise é constituído pelo paralelo estabelecido entre a revolução francesa e a Revolução Russa. A analogia se refere em primeira instância à relação cidade-campo, à forma política da ditadura, à função nacional e modernizadora (Gramsci, 1975, Q1, p.43; Q3, p.337).8 Mas se expande depois a metáfora para a compreensão do papel e da influência mundial da Revolução Russa no pós-guerra, tornando-se assim uma fonte de juízo crítico nos Cadernos. A reflexão de Gramsci se concentra na Revolução Russa e em sua herança, sobretudo em algumas notas da mesma época (fim de 1930 – início de 1931) que compõem um quadro integrado ou integrável. Gramsci pensa retrospectivamente as características da revolução e insere a “construção do socialismo” na modernidade dos anos 1920. Como se sabe, ele considera a Revolução de 1917 como último episódio da “guerra de movimento” e da “tática de assalto” ao poder (Gramsci, 1975, Q7, p.860). Como estratégia política, a passagem da “guerra de movimento” à “guerra de posição” ou “de assédio”, lhe parece por isso “a questão de teoria política mais importante posta pelo pós-guerra” (Gramsci, 1975, Q6, p.801). Nesse período, Gramsci lê a autobiografia de Trotsky e faz dele objeto explícito da crítica que anima a própria reflexão retrospectiva. Trotsky é “o teórico político do ataque frontal no período em que este é somente causa de derrota” e o autor da doutrina da “revolução permanente”, que lhe parece “o reflexo político da teoria da guerra de movimento” (Gramsci, 1975, Q6, p.801-802; Q7, p.866). Gramsci contrapõe Lenin e Trotsky: o primeiro “profundamente nacional e profundamente europeu”, enquanto o segundo é, ao contrário, “um cosmopolita, isto é, superficialmente nacional e superficialmente ocidentalista ou europeu”. Na sua análise, somente Lenin tinha entendido a necessidade de passar da guerra de movimento à guerra de posição, “a única possível no Ocidente”, mas não tinha disposto do tempo para desenvolver a fórmula da “frente única”. As implicações de tal crítica se estendem por isso além da figura de Trotsky e se referem a toda experiência revolucionária do pós-guerra. A tarefa de passar à “guerra de posição”, ele escreve, implicava “um acurado reconhecimento de caráter nacional” porque “no Oriente o Estado era tudo, a sociedade civil era primordial e frágil; no Ocidente, entre o Estado e a sociedade civil havia uma justa relação … O Estado era somente uma trincheira avançada, atrás do qual estava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas” (Gramsci, 1975, Q7, p.866). Os Cadernos retomam aqui a visão diferenciada do Ocidente em relação à Rússia, formulada pela primeira vez em fevereiro de 1924, agora inserida na concepção gramsciana da “guerra de posição”.
É importante observar como Gramsci, enquanto analisa o núcleo da fracassada experiência revolucionária do pós-guerra, dirige simultaneamente a própria atenção à experiência soviética. Mais uma vez é Trotsky o objeto da crítica, neste caso como voz principal do projeto de industrialização realizada com métodos coercitivos. Para Gramsci, tal tendência, se não tivesse sido derrotada, teria desembocado em “uma forma de bonapartismo” (Gramsci, 1975, Q4, p.489). Mas o perigo inerente ao industrialismo não é constituído somente pelo bonapartismo, também pelo “egoísmo econômico-corporativo”, a incapacidade do novo “grupo hegemônico” de realizar com responsabilidade autolimitações e sacrifícios para manter em vida os equilíbrios sociais e as perspectivas de transformação socialista (Gramsci, 1975, Q4, p.461). Um tema claramente retomado pela carta de outubro de 1926, que reemerge após a crise terminal da NEP e no contexto da modernização que se está realizando sob Stalin. O ponto de vista expresso por Gramsci é que a modernização seja compreendida dentro dos parâmetros produtivos e organizativos da modernidade global, no seu entender representados pelo americanismo (por isso reconhece que o interesse de Trotsky pelo americanismo vinha de “justas preocupações”, ainda que as soluções fossem “erradas”) (Gramsci, 1975, Q4, p.489). Mas ela deve ser também avaliada segundo o princípio de uma tarefa histórica precisa, a de construir uma nova ordem pós-revolucionária. Os representantes da “nova ordem em gestação”, que tem como referência “o mundo da produção” – ele escreve – “por ódio ‘racionalista’ ao velho, difundem utopias e planos sem critérios”. E, todavia, está convencido de que “o desenvolvimento das forças econômicas das novas bases e a instauração progressiva da nova estrutura sanarão as contradições que não podem faltar” e “permitirão novas possibilidades de autodisciplina, isto é, de liberdade também intelectual” (Gramsci, 1975, Q7, p.863). Em outras palavras, ele se pergunta se naquele preciso momento histórico os construtores da “nova ordem” estão à altura de exercer uma hegemonia política e econômica concreta. A sua fé na “construção do socialismo” não é cega, ainda que continue a acreditar em tal perpectiva.
De modo diverso, os temas até aqui tratados estão destinados a voltar e a sofrer revisões nas notas posteriores dos Cadernos, escritas entre a metade de 1932 e o início de 1935. Revisões muito significativas, pois podem ser facilmente decodificadas como um balanço substancialmente negativo da grande transformação soviética sob Stalin. Tal balanço não se refere às realizações econômicas do plano quinquenal nem à construção da potência soviética, mas se refere, ao contrário, ao tema do Estado e das superestruturas políticas. É esse o autêntico fio condutor que percorre o seu pensamento desde os escritos juvenis sobre o nascente Estado bolchevique como “Estado orgânico” nos anos da guerra civil até as notas tomadas no cárcere na época da “revolução do alto” de Stalin, mas estas últimas revelam também uma mudança radical. É preciso perguntar-se se o próprio ajustamento das principais categorias políticas gramscianas entre 1932 e 1933 não devam ser relacionadas com os êxitos visíveis da “revolução do alto” na União Soviética. As fontes a que Gramsci tinha acesso eram limitadas, mas suficientes para mostrar o projeto de onipotência do Estado, o domínio da propaganda, o peso das medidas administrativas e dos corpos burocráticos, a militarização das relações sociais (sobretudo entre cidade e campo) na União Soviética do início dos anos 1930. Sua questão fundamental torna-se, agora, verificar se é realmente possível desenvolver recursos hegemônicos em semelhante cenário. É visível um deslocamento do tema do industrialismo e da modernidade produtivista ao tema do regime político de massa, enquanto se destaca a questão do papel da União Soviética na ordem mundial do pós-guerra.
Um sinal inequívoco de tal deslocamento é constituído pela nota de abril de 1932, na qual Gramsci reconhece que o período de “estatolatria” parece “necessário e até oportuno” quando os grupos subalternos iniciam uma “vida estatal autônoma”, mas sublinha que com o fim de desenvolver “novas formas de vida estatal” tal “estatolatria” não deve se tornar um dado permanente nem tranformar-se em “fanatismo teórico” (Gramsci, 1975, Q8, p.1020). É difícil não pensar que aqui Gramsci exprime a sua visão retrospectiva sobre a evolução conhecida da “ditadura do proletariado” na década precedente e sobre as consequências da ruptura entre os sucessores de Lenin, que parece indicar não mais a temida “cisão” do Estado mas a emersão de um culto cego do Estado. Gramsci está já muito distante da sua visão juvenil da “ditadura do proletariado” como transição em direção a uma nova ordem e como condição da liberdade. Chega mesmo a inverter aquela perspectiva, aludindo ao perigo de que a ditadura pós-revolucionária se torne um fim em si mesmo, um autoritarismo privado de hegemonia, destinado a reproduzir violência e dogmatismo. Um obstáculo e uma negação da nova relação entre governantes e governados que constitui, na sua concepção, o teste decisivo da “construção do socialismo”.
A escrita controlada e hamletiana de Gramsci se faz mais transparente em algumas notas de fevereiro de 1933 ou pouco depois, que apresentam uma consonância temática junto à coincidência temporal. Ele afronta explicitamente, caso único nos Cadernos, o tema do “socialismo em um só país” – a perpectiva staliniana que ele mesmo tinha acolhido na década anterior e que então é apresentada na União Soviética como fato consumado. Ele repensa o conflito entre Trotsky e Stalin “como intérprete do movimento majoritário”, isto é, do bolchevismo, do ponto de vista da hegemonia. Esta pode se dizer garantida somente pela combinação correta dos elementos nacional e internacional. Por isso “as acusações de nacionalismo são incorretas se se referem ao núcleo da questão”. Para Gramsci, a originalidade do boschevismo pré-revolucionário foi justamente a de “depurar o internacionaslimo de todo elemento vago e puramente ideológico” para lhe dar “um conteúdo de política realista”. Todavia, Gramsci atribui a Trotsky e a Stalin as mesmas deficiências. A fase atual do socialismo, escreve, é caracterizada por um “napoleonismo” anacrônico, por “uma forma moderna do velho mecanicismo” e por uma “teoria geral da revolução permanente” (Gramsci, 1975, Q14, p.1730). Escritas no fim do primeiro plano quinquenal, essas palavras parecem um código que se refere à ditadura staliniana, ao caráter teleológico do planejamento soviético e ao ultrarradicalismo da estratégia do Comintern. É lícito pensar que Gramsci emprega tal código para evidenciar a incapacidade dos sucessores de Lenin de compreender a “guerra de posição” e os limites mostrados pela “construção do socialismo” em termos de hegemonia.
Contemporaneamente, Gramsci escreve sobre a “revolução passiva” – isto é, a realização de mudanças históricas necessárias pelas próprias classes dominantes, capazes de conter as forças autenticamente revolucionárias. O tema aparece nos Cadernos muito cedo como um paradigma interpretativo da história italiana, extensível aos outros Estados da Europa moderna, mas somente nos anos 1932 e 1933 o seu significado se configura como categoria analítica fundamental (Vacca, 2017, p.95-99). É essencial destacar a coincidência temporal entre as notas que se referem ao “socialismo em um só país” sob Stalin e as que estendem a noção de “revolução passiva” a categoria essencial para entender o pós-guerra. Tal extensão da “revolução passiva” se verifica pela ligação com a noção de “guerra de posição”, que Gramsci adota como um critério de periodização histórica em uma nota do Caderno 10, escrita em maio de 1932:
na Europa de 1789 a 1870 houve uma guerra de movimento (política) na revolução francesa e uma longa guerra de posição de 1815 a 1870; na época atual, a guerra de movimento se teve politicamente de março de 1917 a março de 1921 e se seguiu uma guerra de posição cujo representante, além de prático (para a Itália), ideológico, para a Europa, é o fascismo. (Gramsci, 1975, Q10, p.1229)
A “guerra de movimento” do século XX, pontuada pelo impulso da revolução comunista na Rússia e na Europa, apresenta por isso uma duração muito breve em relação à do século precedente. Sua origem está na Revolução de Fevereiro, e seu fim não é datado no Outubro alemão de 1923 mas até mesmo na chamada “ação de março” de 1921 na Alemanha.
Todavia, as noções de “guerra de posição” e de “revolução passiva” apresentam implicações muito mais amplas da estratégia do comunismo internacional. Também no Caderno 10, Gramsci integra uma das suas notas iniciais sobre o nexo entre o Estado moderno francês nascido da Revolução e os outros Estados modernos europeus. A interrogação original é se o modelo de mudança sem revolução posto em prática pela Restauração do século XIX pode se repetir na história europeia e mundial também após a Guerra Mundial. Inicialmente ele havia excluído essa hipótese (Gramsci, 1975, Q1, p.134). Agora ele se pergunta se “ao menos em parte é possível ter desenvolvimentos semelhantes, sob a forma de advento de economias programáticas”. Em outras palavras, Gramsci alude à intervenção estatal na economia como resposta à crise de 1929, que caracteriza também a Itália fascista, como agente de uma “revolução passiva” no século XX. Essa noção aparece na mesma nota, quando ele define a formação dos Estados modernos na Europa continental como “reação-superação nacional” da Revolução francesa, acrescentando ser esse um “motivo essencial para compreender o conceito de ‘revolução passiva’” (Gramsci, 1975, Q10, p.1358 e 1361).
Em nota escrita logo em seguida, ele volta às analogias entre o período pós-napoleônico e o período sucessivo à Guerra Mundial para observar que a “revolução passiva” é “a característica mais importante a ser estudada” do pós-guerra (Gramsci, 1975, Q15, p.1824). O ano de 1917 é compreendido na “fratura histórica” da Guerra Mundial. O pós-guerra constitui o momento genético da resposta das classes dirigentes europeias nos termos de uma “revolução passiva” adaptada à sociedade de massa, que na grande depressão dos anos 1930 assume forma mais definida. Desse modo, Gramsci chega a inverter toda a perspectiva adotada nos primeiros anos do pós-guerra, que não contemplava entre as possibilidades históricas a de uma “revolução sem revolução”. Qual teria sido o lugar reservado à experiência soviética na “revolução passiva” do pós-guerra permanece um ponto não esclarecido nos Cadernos. Gramsci parece deixar intencionalmente aberta essa questão, ainda que a sua crítica do deficit de hegemonia política visível na União Soviética pareça implicar uma perspectiva de subalternidade à forma de hegemonia representada pela “revolução passiva”.
CONCLUSÕES
Diferentemente de muitos intelectuais europeus que na época têm liberdade de informação e de movimento (e até mesmo a possibilidade de visitar a União Soviética), Gramsci não adota a grande depressão de 1929 como um critério para estabelecer o primado da “civilização” soviética sobre o capitalismo liberal. E diferentemente da maior parte dos comunistas, ele não vê a “modernidade alternativa” soviética como uma experiência dotada de um sentido de autossuficiência completo, dado o seu caráter não capitalista. O seu foco analítico se concentra nas conexões entre a cesura representada pela Guerra Mundial, a longa crise europeia do pós-guerra e a difícil afirmação de novas forças hegemônicas globais. Nesse contexto ele insere a experiência soviética. O seu dilema não é constituído somente pelos motivos do fracasso da revolução no Ocidente, mas junto a isso pelo desenvolvimento insuficiente de uma força hegemônica na Rússia pós-revolucionária. Um ceticismo e pessimismo transparentes levam-no a elaborar uma ideia de que a “revolução passiva” do século precedente se reapresente após a Guerra Mundial sob a forma da supremacia do americanismo em escala global e do fascismo na Europa, enquanto a nova ordem ligada à “construção do socialismo” luta para emergir. O campo de possibilidades aberto pela “revolução contra o Capital”, a menos de 20 anos de distância, parece enfraquecido e circunscrito, vinculado à interação de forças complexas, limitado pela capacidade efetiva das subjetividades pós-revolucionárias.
Assim, a escrita dos Cadernos revela a distância que se estabeleceu entre Gramsci e o mundo ideal e político a que ele pertencia, que é documentada por diversos aspectos na sua correspondência, nos testemunhos póstumos e em outros documentos (Vacca, 2012). A angústia pela libertação fracassada e as crescentes suspeitas em relação à possibilidade de que os seus companheiros de partido o tenham condenado uma segunda vez ao cárcere de Mussolini exercem um peso opressor que os biógrafos não podem deixar de avaliar. Ao mesmo tempo, sua dissensão sobre a estratégia política do Comintern e a doutrina do “social-fascismo” apresenta reflexões nos Cadernos. Todavia, isso não esgota de modo algum as motivações e o espaço problemático das notas dedicadas à experiência soviética e comunista. Os traços de continuidade e de (prevalente) descontinuidade visíveis entre o período pré-carcerário e os anos da prisão nos induzem a desenvolver mais uma consideração.
O olhar retrospectivo de Gramsci no cárcere implica a exigência de se confrontar com uma derrota histórica. Em 1924 ele havia estigmatizado a experiência dos comunistas italianos como uma derrota, um argumento que depois do outubro alemão podia se estender a todos os comunistas europeus. Em 1926, ele advertira a maioria do partido russo acerca do perigo de destruir a unidade do grupo dirigente e com ela a herança revolucionária, separando os interesses do Estado soviético do movimento mundial. A ruptura entre os sucessores de Lenin tinha se realizado no modo mais traumático que, dadas as premissas gramscianas, não podia não constituir uma perda de perspectiva. No início dos anos 1930, a sua reflexão solitária emana essa preocupação e ele chega a elaborar uma categoria política que é metáfora da derrota sofrida pelos revolucionários no pós-guerra, a “revolução passiva”. Aqui se pode entrever a dupla face da noção gramsciana de hegemonia. A hegemonia é nos Cadernosum conceito voltado a iluminar a complexidade das estratégias das classes dirigentes que não podem se reduzir a mero exercício de poder, mas implicam uma concepção sofisticada da autoridade, da soberania, da relação entre governantes e governados. Ao mesmo tempo, constitui uma lente para ler os motivos da derrota sofrida pelo “partido mundial da revolução” na Europa e para medir as características e os limites do socialismo soviético, sua autêntica capacidade de incorporar e construir consenso, sua legitimidade doméstica e internacional, seu lugar no mundo.
Essa ótica distingue radicalmente Gramsci dos outros comunistas da época. Ele não pode ser inserido em nenhuma das principais tendências do bolchevismo e do comunismo dos anos 1920, ainda que compartilhe amplamente suas linguagens (começando pelas metáforas militares) e a cultura política. Mas isso não nasce simplesmente de uma posição política peculiar, nem mesmo de uma trágica condição psicológica. Nasce de uma dimensão intelectual e cultural que lhe permite reconhecer e pensar sobre a derrota fora dos cânones do drama necessário e providencial ao longo do caminho irreversível em direção ao futuro socialista, que marca a mentalidade comunista do seu tempo (Hobsbawm, 2003). A experiência da derrota leva Gramsci a pensar na multiplicidade das possibilidades históricas e a interrogar-se sobre as inadequações da própria instrumentação conceitual e política: um antídoto às formas de identificação que ele mesmo praticara e que atingem o ápice dogmático nos anos 1930. No panorama do comunismo da época seria vão procurar uma abordagem dessa natureza, não somente no mundo oficial staliniano e no Comintern, mas até mesmo na dissensão de matriz trotskista. Nesse sentido, é mais fácil aproximar a visão gramsciana, com todas as óbvias diferenças do caso, à dos intelectuais caracterizados por uma ética da responsabilidade mais do que por uma militância política, como Walter Benjamin e a sua concepção da história como possibilidade, ou como o Marc Bloch da “estranha derrota”.
Gramsci mantém firme uma compreensão dos eventos contemporâneos em termos antideterministas, dirigindo-se a uma posteridade que ele sabe não lhe ser dada, muito provavelmente, a conhecer. A sua é uma visão ao mesmo tempo dilemática e analítica, que continua a ver a cesura da Guerra Mundial e da Revolução e deixa abertas possibilidades diversas ao futuro, mas se faz consciente dos vetores e das forças historicamente determinantes. Essas considerações podem contribuir para iluminar o sentido último da relação entre Gramsci e a Revolução de 1917, mas também para explicar a longa duração das categorias de pensamento político por ele criadas na sua prisão.
REFERÊNCIAS
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1Avanti!, 24 dez. 1917 in GRAMSCI, 2015, p.618.
2A visão gramsciana do Estado bolchevique foi bem analisada, em relação aos anos 1918-1919, por RAPONE, 2011, p.375-379.
6Gramsci a Roma, Togliatti a Mosca. Il carteggio del 1926, doc. 42, DANIELE, 1999, p.404-412.