Incentivadores de ataque ao Judiciário trabalharam no governo Bolsonaro
São quatro minutos e quinze segundos de impropérios, enquanto uma saraivada de fogos de artifício simula um bombardeio ao Supremo Tribunal Federal (STF). O narrador que faz parte do grupo bolsonarista “Os 300 do Brasil” desafia as autoridades e instituições: “Brasília, 13 de junho, 21 e 30 horas. Na frente dos bandidos do STF… Isso aí [os disparos de fogos] é pra mostrar pra eles e pro GDF bandido que não vamos arregar”.
O apoiador do presidente Jair Bolsonaro provoca: “notaram que o ângulo dos fogos está diferente da última vez?” Os fogos estão apontados para a sede do tribunal. “Tá entendendo o recado?” Em seguida, desfia uma sequência de insultos do mais baixo calão ao presidente do STF, Dias Toffoli, e aos ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia: “seu cabeça-de-ovo, seu Toffoli medíocre, sua vampira Cármen Lúcia, Lewandowski, seu bosta, Gilmar Mendes, seu bosta”.
É singular, senão espantoso, que pelo menos dois integrantes do “Os 300 do Brasil” tenham tido vínculo oficial com o governo. A líder Sara Fernanda Giromini, conhecida como Sara Winter, presa ontem pela Polícia Federal, é ex-servidora comissionada do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Renan Sena, detido e liberado no domingo pela Polícia Civil do Distrito Federal, e suspeito de ser o narrador desse vídeo, é ex-funcionário terceirizado da mesma pasta. Sara é investigada nos inquéritos das Fake News e sobre o financiamento dos atos antidemocráticos.
A violência e ousadia dos ataques não têm precedentes nos 129 anos de história do STF. Em 1964, o presidente da Corte, Álvaro Ribeiro da Costa, alertou que se ministros fossem cassados, fecharia o tribunal e entregaria as chaves ao porteiro do Palácio do Planalto. Então o presidente Castello Branco editou o Ato Institucional n. 2 que ampliou de 11 para 16 os integrantes, recompondo as forças do tribunal. As cassações viriam quatro anos depois, com o AI-5 – com cuja reedição acenou o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) – que depôs Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima.
O ex-presidente do STF Carlos Ayres Britto afirma que um atentado com tal nível de insolência contra o STF é o primeiro no regime democrático, enquanto as cassações se deram num estado de exceção. “Um ataque desse atrevimento é inédito”, disse o ex-ministro à coluna. Ele classifica a ofensa como uma “predação institucional constituicida, tal a gravidade do atentado à Lei Maior do Brasil”.
O jurista vê a Corte e o Parlamento nos últimos meses “sob contínuo e concreto atentado, em rota de colisão frontal com a Constituição, no mais intolerante propósito de instauração de um quadro de desordem civil”. Mas pondera que pelo menos esse quadro de desordem “está circunscrito a um grupelho sem a menor consistência representativa de povo em sentido jurídico-político, um reduzido aglomerado de pessoas em estado de desespero ante a solidez das instituições democráticas”.
Enquanto o STF, acrescenta, é uma dessas “vitoriosas instituições democráticas – não pelo voto popular, mas pela sua função de zelar imperativamente pela democracia, e para isso dispõe do poder, não de governar, mas de impedir o desgoverno”.
Ocorre, entretanto, que em meio às ações do Supremo para impedir a expansão do desgoverno, o atentado do último sábado interrompeu os esforços dos últimos dias para apaziguar as cúpulas do Executivo e do Judiciário e distensionar a conjuntura.
A temperatura política vem aumentando progressivamente desde o fim de abril, quando o ministro Alexandre de Moraes impediu a nomeação de Alexandre Ramagem para a direção-geral da Polícia Federal. Bolsonaro protestou: “Chega de interferência, queremos independência verdadeira dos três Poderes”.
Depois, um despacho de Celso de Mello consultando a Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre busca e apreensão do celular de Bolsonaro jogou gasolina na fogueira, ensejando a nota do ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), sobre as “consequências imprevisíveis” para a nação.
Em novo foco de incêndio, Moraes autorizou no fim de maio a operação da PF que mirou aliados de Bolsonaro no âmbito do inquérito das Fake News, que teria como um dos alvos o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). Bolsonaro esbravejou: “Acabou, porra! As coisas têm limite”.
Quatro dias depois, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, visitou Moraes em sua residência em São Paulo. Um dia depois, num aceno de conciliação, Bolsonaro, Azevedo e mais dois ministros prestigiaram, ainda que virtualmente, a posse de Moraes no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Moraes é um dos três votos do STF na Corte Eleitoral, que analisa oito pedidos de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.
Embora tumultuada, a tentativa de diálogo entre os Poderes estava em curso, mas os ataques ao STF e, em reação, a prisão de Sara Winter, jogaram por terra as chances de continuidade do esforço de entendimento entre os litigantes.
Ontem foi Bolsonaro quem esticou a corda – para usar a expressão do ministro Luiz Eduardo Ramos. Em entrevista à BandNews TV, o presidente disse que está sendo “complacente demais” com decisões judiciais, e avisou que militares como ele “jamais aceitaríamos intervenção [do Judiciário] para derrubar um presidente eleito”. Esse tom incendiário foi um aceno às suas bases, que estão inflamadas com a prisão da líder ativista e de outros seguidores, e também um recado velado ao TSE, em meio ao desdobramento dos processos de cassação de seu mandato.
Em paralelo ao contra-ataque do presidente, Carlos Bolsonaro também atirou e o alvo foi o vice-presidente do STF, Luiz Fux, que esclareceu em liminar que o artigo 142 da Constituição não confere às Forças Armadas um “poder moderador”. Menos de 24 horas depois dos fogos contra o STF, Carlos publicou um vídeo em que o ex-ministro José Dirceu chama Fux de “charlatão” por supostamente tê-lo assediado até obter a nomeação para a Corte. “E aí, STF, de boas?”, provocou Carlos.