Para Randolfe Rodrigues, últimos fatos precipitam CPI da covid
O Coronel Emílio é um chefe político de prestígio local, cujos domínios se estendem pelas fazendas de gado e metade da vila. Certo dia, ele recebe a notícia do assassinato de Bento Porfírio, um de seus capatazes, que estava de chamego com a prima De-Lourdes, casada com o Xandão Cabaça.
Quando o marido descobriu a traição, espreitou o detrator em uma pescaria, golpeou-o pelas costas com uma foice e fugiu sem deixar rastro.
Ao ser informado pelo sobrinho da tragédia envolvendo um de seus empregados mais antigos, Tio Emílio reagiu com fleuma: “Boi sonso, marrada certa”.
Perplexo, o sobrinho cobrou compaixão: “O senhor que é tão justiceiro e correto, e que gostava tanto do Bento Porfírio, vai deixar isto assim?”
De súbito, entretanto, o coronel bateu na testa, saltou da cadeira, e ordenou que os jagunços fossem ao encalço do fugitivo da lei.
O objetivo da ordem, entretanto, não era fazer justiça à vítima. O coronel estava preocupado em mitigar danos eleitorais. “Já perdi um voto, e, se o desgraçado fugir para longe, são dois que eu perco!”, desabafou com o sobrinho.
Pela cartilha do velho coronel político, retratado por Guimarães Rosa em “Sagarana” (1946), uma vida vale um voto. No Brasil da pandemia, a impressão que se tem é que a vida não vale nem isso mais. Se valer, os políticos já perderam pelo menos mais de 200 mil votos.
A diferença entre o Coronel Emílio e uma ala de políticos da vida real é que pelo menos o personagem se preocupava com a preservação da vida de seus eleitores, ainda que por razões pragmáticas.
No Brasil, a perda de centenas de milhares de vidas, vítimas da covid-19, não despertou empatia em segmentos da classe política nem em segmentos da população. As aglomerações em bares e outros locais públicos, e festas clandestinas, ocorrem à luz do dia. Políticos e populares ainda resistem à adesão aos cuidados mais comezinhos, como uso de máscaras e distanciamento social.
Um dos papéis das autoridades na pandemia deveria ser a conscientização dos brasileiros quanto à relevância de seguir os protocolos sanitários para coibir a disseminação do vírus.
A pandemia está em escalada galopante, mas os números não assustam. Um ano depois, chegamos ao pior momento da pandemia, com uma média móvel de 1.208 mortes diárias. São cinco Boeings caindo por dia, pela metáfora do neurocientista Miguel Nicolelis.
Contabilizamos mais de 10 milhões de contaminados, e mais de 255 mil óbitos. É como se enterrássemos de uma vez a população de uma cidade inteira do tamanho de São Carlos (SP), ou Foz do Iguaçu (PR), sem direito a velório. As UTIs estão lotadas em todos os Estados.
O comportamento dos políticos que se omitem, ou que propagam discurso negacionista, estimula a conduta de uma parcela de brasileiros que resiste a encarar a pandemia.
Ontem a doutora Ludhmila Hajjar, cardiologista e intensivista da Rede D’or, alertou em entrevista à “Globonews” que estamos à beira de um colapso nacional. Ela atribuiu o quadro dramático também a uma parcela de brasileiros que se esbaldou no carnaval em festas clandestinas, favorecendo o contágio.
Na quinta-feira, quando o Brasil atingiu um recorde de mortes por covid-19 (1.582), o presidente Jair Bolsonaro criticou, sem base científica, o uso de máscaras, em um comportamento que estimula seus seguidores a imitá-lo.
Ontem o correspondente no Brasil do “The Washington Post” alertou que a tragédia em curso no Brasil pode ter “implicações globais”. Ele afirmou que se o Brasil não controlar o vírus, vai se transformar no “maior laboratório aberto do mundo para o vírus sofrer mutação”, favorecendo a “disseminação de variantes mais letais e infecciosas”.
Em outra frente, governadores e políticos independentes, ou da oposição, buscam saídas para driblar a lentidão do Programa Nacional de Imunização, e também para cobrar responsabilidade das autoridades que podem ser acusadas de negligência.
Mais da metade dos governadores enfrentam a ira de empresários, de seus opositores e de segmentos da população por adotarem “lockdown” ou medidas restritivas, como toque de recolher, no esforço de conter o vírus. Ontem o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) defendeu imediato “lockdown” nos Estados com mais de 85% de ocupação de leitos, e de um toque de recolher nacional.
Sob ataque de Bolsonaro, hoje os governadores reúnem-se em Brasília com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Na base eleitoral de Lira, em Arapiraca, segunda cidade mais importante de Alagoas, causou comoção na semana passada a morte de uma enfermeira vítima da covid-19. Ela se recusou a tomar a dose da Coronavac, a que tinha direito por ser profissional de saúde, por duvidar da comprovação científica do imunizante, embora autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Lira perdeu a oportunidade de se manifestar para condenar a disseminação de “fake news”, mazela que contribuiu, pelo menos lateralmente, para a morte de sua conterrânea, quiçá eleitora.
Diante dessa conjuntura, no Senado, alguns parlamentares voltam a carga contra o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), nesta semana para pressioná-lo a instalar a CPI da covid.
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirma que os fatos mais recentes sobre a pandemia “precipitam a instalação da CPI”. Ele cita, por exemplo, o depoimento modificado do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, à Polícia Federal; o embate do presidente com os governadores; a persistência do discurso negacionista.
O Coronel Emílio e uma ala de políticos da vida real têm em comum a falta de empatia pelo semelhante, ou seja, a incapacidade de se colocar no lugar do outro, de compartilhar a dor do outro. Mas, ao contrário do personagem, também falta a alguns políticos uma dose de pragmatismo para que se movimentem para salvar seus eleitores. A Justiça Eleitoral não instala urnas no cemitério.