Neste início de século XXI, já deveria estar claro que crescimento do consumo não pode mais ser principal indicador de sucesso econômico e social
“Os grandes problemas não têm solução definitiva, apenas circunstanciais, requerem a busca permanente de respostas.” Alexis de Tocqueville
A questão de como organizar a sociedade e o convívio exige a busca perpétua por novas respostas. Ao mesmo tempo, a obsessão com a conjuntura faz com que as circunstâncias pareçam intransponíveis. A poucos meses das eleições, com o país imerso numa grave crise econômica, política e moral, o debate parece bloqueado, vítima da obsessão conjuntural.
A incapacidade de transcender a conjuntura, de imaginar além das circunstâncias, provoca duas reações opostas. A primeira é a particularização, a tendência a confundir algum aspecto específico da crise com a própria crise. A segunda é a generalização, a tentação de atribuir a crise ao todo. A obsessão fiscalista é exemplo da tendência à particularização. A apatia e a radicalização antidemocrática são exemplos da tendência à generalização.
O desequilíbrio fiscal e o crescimento insustentável da dívida pública são problemas graves. Precisam ser enfrentados o quanto antes, mas é ilusão achar que é possível resolvê-los com uma camisa de força legal ou constitucional, sem desmontar as forças corporativistas que capturaram o Estado. A apropriação de fatias da renda nacional, através de dispositivos legais que direcionam renda para interesses cartoriais ou patrimonialistas, é o verdadeiro problema a ser enfrentado. A solução não virá de mais regras, exige mudança de hábitos e atitudes. Exige olhar além da conjuntura.
A crise da democracia representativa é real e não é exclusividade nossa, mas não pode servir para justificar o sentimento de rejeição generalizada à política e às instituições. É a interpretação desesperada da crise conjuntural como a falência social e institucional que leva à radicalização e acende a tentação populista. A tentação de rejeitar a democracia, acusada de ter sido capturada pelas elites, e de flertar com o autoritarismo.
A reação particularizante é formalista e reformista. Associa a crise a algum aspecto institucional específico e acredita que a sua revisão é condição, necessária e suficiente, para a superação da crise. A incapacidade de ver além das circunstâncias faz com que a mentalidade reformista esteja sempre atrasada em relação à realidade. Incapaz de se antecipar, está sempre em busca de reformas anacrônicas, de revisões legais e institucionais voltadas para o passado. A mentalidade generalizante é redutora e irracional. Vê na crise um sinal de falência sistêmica. Atribui responsabilidade às forças estabelecidas, às elites, à tecnocracia, à tecnologia e à internacionalização. Sua proposta é uma volta simplificadora às origens. Daí a sua identificação populista.
O desafio contemporâneo, o grande problema do país hoje, é entender a razão pela qual chegamos ao século XXI sem ter superado a pobreza e socialmente dividido. Profundamente despreparado para reconciliar os desafios da nova revolução tecnológica, da economia digital, com as necessidades humanas permanentes de uma vida em comum e em segurança.
Durante a segunda metade do século passado, duas correntes de pensamento se contrapunham como forças inspiradoras da formulação de políticas públicas: o nacional desenvolvimentismo e o liberalismo tecnocrático. A discordância, essencialmente sobre o papel do Estado empresário e sobre o grau de abertura comercial, não impedia que o objetivo fosse o mesmo: elevar o padrão de consumo da população, reduzir a desigualdade e recuperar o atraso em relação aos países desenvolvidos.
Neste início de século XXI, já deveria estar claro que crescimento do consumo não pode mais ser considerado o principal indicador de sucesso econômico e social. O padrão de consumo da classe média americana da segunda metade do século XX não pode ser tomado como referência. Não pode ser generalizado para um mundo superpovoado, que ameaça perigosamente o equilíbrio ecológico. O ideal consumista revelou-se uma vitória de Pirro. Como parecem ter se dado conta os brasileiros que foram às ruas protestar em 2013, a vida da classe média urbana de hoje nada tem a ver com a da publicidade consumista da segunda metade do século passado. A realidade é muito diferente: criminalidade, falta de transporte público, saúde e educação de má qualidade, longas horas para se deslocar para o trabalho, falta de tempo para os filhos e a família. Parece ser a fórmula da frustração: deparar-se com o estresse da vida urbana empobrecida, no lugar da qualidade de vida prometida.
Todo momento é de transição, mas alguns o são mais do que os outros. São momentos em que é preciso reorganizar as ideias e rever os objetivos. São momentos onde o apego aos esquemas conhecidos é particularmente perigoso. Este início de século é um desses momentos. Preso a concepções anacrônicas, perplexos diante do impasse, a tentação é de radicalizar e atribuir a incapacidade de resolver os novos problemas ao fato de que as velhas soluções não tenham sido adotadas. É o que leva por um lado, ao clamor por um “laissez-faire” radical na economia e, por outro lado, ao questionamento do liberalismo democrático. As duas vertentes do radicalismo anacrônico se encontram na defesa de um Estado autoritário.
O jovem aristocrata francês Alexis de Tocqueville chegou aos Estados Unidos, na primeira metade do século XIX, oficialmente para fazer uma pesquisa sobre o sistema penitenciário, mas verdadeiramente interessado em entender um país onde a democracia não fora precedida por uma ruptura, como havia acontecido no seu país, mas brotara naturalmente na organização da sociedade. Sua impressão inicial foi de perplexidade diante da aparente instabilidade da sociedade que encontrou. Os americanos lhe pareceram descuidados e impacientes, sem “nenhum senso de continuidade e de durabilidade”. A política lhe pareceu instável e os políticos sem qualquer sentido de propósito.
As observações de Tocqueville sobre a sociedade americana, assim como suas reflexões sobre a democracia, revelam um observador arguto e sensível, um filósofo social do mais alto calibre. Quase dois séculos depois, quando a democracia representativa volta a ser questionada, as reflexões de Tocqueville revelam-se impressionantemente oportunas. Sempre muito citado, o seu “A Democracia na América” deveria ser leitura obrigatória.
Para Tocqueville, enquanto os defeitos da democracia saltam aos olhos, suas qualidades só se revelam com o tempo. A balbúrdia das sociedades democráticas ilude. Na superfície, dá impressão de uma sucessão de crises desconectadas, sem rumo definido. Parece extremamente frágil, mas é exatamente a sua flexibilidade, a sua capacidade de adaptação às mudanças, que lhe dá resiliência e uma grande vantagem no longo prazo. A democracia precisa de tempo para consolidar as instituições e os costumes.
Eleições não bastam. A democracia bem-sucedida, entendida como todos iguais em termos de direitos e deveres, não se cria com atos administrativos, leis ou instituições. É fruto dos hábitos e costumes, do sentido de comunidade, da confiança no concidadão desconhecido, que constroem um capital cívico. O capital cívico democrático precede as leis e as instituições. Crer que as leis e as instituições podem dispensar a vida pública, o sentido de comunidade e a civilidade, é um equívoco recorrente, no qual a nossa mentalidade formalista é especialmente dada a incidir.
A sociedade democrática não é a que dá expressão legal a reinvindicações incondicionais, a “direitos” de grupos organizados. É aquela que garante a autonomia individual, inserida numa rede de obrigações recíprocas. Tocqueville viu no desinteresse pela vida pública, na propensão a ceder ao Estado e ao legislador áreas crescentes de influência sobre a vida e liberdade, o grande risco da democracia. Suas observações parecem antever o desinteresse pela vida pública, o Estado patrimonialista e cartorial, capturado por interesses organizados das democracias contemporâneas.
É preciso escapar da armadilha da obsessão pela conjuntura e superar o consumismo anacrônico. É preciso usar o farol alto no debate. A civilidade deve ser o objetivo primordial das políticas públicas, com a revalorização da vida em comum e da política. Revalorização que só poderá ser feita pelo exemplo, pela consciência de que os que ocupam cargos públicos, representantes eleitos ou servidores, não estão acima dos demais, mas a serviço da sociedade. O turbilhão conjuntural não pode obscurecer a busca pela consolidação de uma sociedade verdadeiramente democrática onde, para todos, a vida valha a pena ser vivida.
*André Lara Resende é economista