André Amado publica artigo Porta dos Fundos na revista Política Democrática online

Confira, abaixo, trecho do artigo do embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática online.
Foto: Reprodução
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Confira, abaixo, trecho do artigo do embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática online

Cleomar Almeida

Gostava do restaurante. Não cheirava a comida e, em geral, atraía pessoas com certo charme. No almoço de hoje, sentadas a meu lado, duas moças davam o tom do ambiente. Examinavam o cardápio como se fosse a orelha de um livro ou a sinopse de um filme. Tinham interesse real no que liam e pressa nenhuma em fazer os pedidos. Só definiram as bebidas – água sem gás para uma e taça de vinho tinto para a outra – e logo retomaram a conversa que deviam ter interrompido a caminho da mesa.

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Já te disse, Odete, é perda de tempo começar a ler as obras dos grandes escritores, assim, diretamente, pela porta da frente. Você acha que pode encarar um Cervantes, um Flaubert, um Proust ou um Joyce sem ajuda? Acha que é capaz de captar a complexidade dos personagens, a teia entrelaçada do enredo, a qualidade e a novidade da narrativa apenas por sua força de vontade?

Eu também queria participar da conversa, mas se me inclinasse um centímetro a mais na direção da mesa seria decerto acusado de assédio. Contive-me e ainda ouvi. A gente sempre precisa de alguém com intimidade familiar com as obras para trazer a nossos olhos, à nossa sensibilidade, as pistas iluminadas da arte desenvolvida por aqueles gênios. Em uma palavra, não dá para enfrentar os grandes escritores pela porta de frente. Temos que descobrir primeiro quem nos conduza pela porta dos fundos desse mundo fabuloso da criação e produção literárias.

Deixa eu lhe dar um exemplo, seguia a tal de Clarinha. Há anos, queria ler a Odisseia, mas tinha medo. Foi quando um amigo me recomendou uma edição especial da Companhia das Letras. Uma introdução de um scholar americano e o prefácio do tradutor, que ganhou uma coleção de prêmios pelo trabalho, me chamavam a atenção para o que tinha de saber sobre a origem da obra, a polêmica da autoria da Odisseia, os termos da relação entre os mortais, como Homero, e os deuses e as deusas protetores ou rivais, os percursos pelos mares da Grécia, as aventuras e desventuras do herói grego em sua viagem épica de volta à casa, a efervescência em Ithaca, onde “os arrogantes pretendentes” disputam a mão de Penélope e o reencontro, enfim, com a mulher amada e a refrega com os competidores pelo amor da amada.

Só posso lhe dizer, Odete, que duvido que pudesse ter desfrutado tanto da leitura e viagens mentais que empreendi não fosse a mão amiga do scholare do tradutor na maçaneta da porta dos fundos da Odisseia.

 

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