Amilcar Baiardi: Maniqueísmo ideológico no ambiente acadêmico

A intolerância existente hoje na universidade brasileira não tem precedente na História.
Foto: Álbum pessoal
Foto: Álbum pessoal

A intolerância existente hoje na universidade brasileira não tem precedente na História

O tema ideologia e intolerância no ambiente universitário tem merecido atenção da imprensa brasileira. Em menos de um ano foi foco em cinco edições do jornal O Estado de S. Paulo. Na página A2, por educadores com visões divergentes: em 22/4/2018 e 3/5/2018, pelos professores Carlos Maurício Ardissone e Roberto Macedo, respectivamente, e em 31/10/2018 pela professora Maria Paula Dallari Bucci. E em mais duas ocasiões na página A3, a de Notas & Informações: em 29/4/2018, no editorial A academia dominada e em 4/10/218, sob o título O papel da universidade. O argumento central de todos esses textos opinativos era a defesa da liberdade e da autonomia da universidade de promover debates e cursos, mas que estes contemplassem visões divergentes.

Não obstante essa percepção comum, provavelmente compartilhada por dirigentes universitários, ela não foi considerada por um grupo de instituições de ensino superior quando da oferta de disciplinas no primeiro semestre de 2018. Só assim se poderiam explicar os vários cursos que tinham como tema “O golpe de 2016 e o futuro da democracia”, aprovados pelos colegiados acadêmicos em 13 universidades federais – UNB, UFRJ, UFBA, UFSM, UFRGS, UFAM, UFSJ, UFJF, UFSC, UFop, UFU, UFC e UFRN -, em duas universidades estaduais paulistas, Unicamp e USP, algumas estaduais de outras unidades da Federação e poucas Pontifícias Universidades Católicas. Em nenhuma delas foram, concomitantemente, oferecidos cursos com visão divergente.

Pode-se supor que professores com concepções diferentes não tenham tido coragem de propor disciplinas alternativas. Mas parece mais plausível que, receando as reações das corporações e a ruptura de um pacto político que os levou à condição de dirigentes, reitores, pró-reitores e diretores não tenham estimulado a oferta de cursos que mostrassem a legalidade do impeachment.

Essa conduta se alinhava com anteriores que fizeram “vista grossa” a manifestações de intolerância nos câmpus universitários. As hostilidades contra o senador Cristovam Buarque, impedido de lançar seu livro Mediterrâneos Invisíveis no câmpus da UFMG durante a reunião da SBPC de 2017, e a não permissão para a exibição de filme baseado na obra de Olavo de Carvalho pela administração universitária da UFBA, em novembro do mesmo ano, repetindo o que ocorrera um mês antes na UFPE, são exemplos de como nas universidades se dá a cumplicidade entre dirigentes das instituições e lideranças corporativas visando a bloquear a difusão de ideias discordantes de suas visões.

Anteriormente, em outra universidade federal localizada na Bahia, a UFRB, houve impedimento físico de palestras do geógrafo e sociólogo Demétrio Magnoli e do filósofo Luiz Felipe Pondé, por serem contrários às cotas raciais. Em todos esses casos não houve diálogo nem possibilidade de negociação.

A intolerância existente na universidade brasileira não tem precedente na História. No seu nascimento, em 1287, na cidade de Bolonha, a universidade herdou dos colégios medievais, como aqueles em que ensinou Pedro Abelardo, uma atmosfera cultural que contemplava debates, com direito a réplicas, tréplicas, etc. Nessa atmosfera os debates, então denominados disputatio quod libetica, eram agendados e, neles, diferentes doxa (opiniões) eram defendidas sem assumirem a presunção de dogma. Apesar da interferência e do controle da Igreja Católica, vinculando a permissão para funcionar (bula papal) ao direito de emitir diplomas de professores (licentia docendi), a universidade medieval não impedia debates.

Antes mesmo da revolução científica, entendia-se que as controvérsias eram necessárias à incorporação de conhecimentos novos. Posteriormente, com a Reforma luterana e o Concílio de Trento, o argumento de autoridade impôs dogmas, limitando debates nas universidades escolásticas sob influência do catolicismo. Entretanto, a Reforma Protestante, diferentemente do que dizia Erasmo de Roterdã – “ubicunque regnat luteranismus, ibi litterarum est interitus” (onde quer que reine o luteranismo, a ciência entra em decadência) -, deu ensejo a outro modelo de universidade, definida como moderna, na qual a liberdade de debater e conviver com dogmas religiosos se impôs. Com a assimilação da pesquisa e da experimentação em seu campo de estudos a partir de meados século 19, sob a influência de pensadores como Schleiermacher, Fichte, Humboldt e Schelling, e após a reforma universitária alemã de 1848, as universidades reformadas passaram a refletir culturas nacionais, acolhendo ideias filosóficas em todos os campos. Essa mudança teve o protagonismo de Justus von Liebig, em Giessen, e é o marco do nascimento da universidade contemporânea. A teoria evolucionista de Darwin, malgrado contrariasse dogmas religiosos, foi debatida em 1860 na Universidade de Oxford, ocasião em que Thomas Huxley afirmou não se sentir envergonhado por ter um ancestral comum com os símios.

No século passado, no Ocidente, com exceção do que ocorreu nas universidades durante os regimes autoritários – nazismo, fascismo e o socialismo na Europa Oriental -, não se tem registro de intolerância ideológica em ambientes acadêmicos, nem mesmo na década de 1960 na França. Em quase 730 anos de existência da universidade, não são relatados fatos semelhantes aos do Brasil de hoje, uma cumplicidade entre dirigentes e movimentos corporativos visando a chancelar um “pensamento único”.

Considerando que é imanente ao papel da universidade estabelecer uma atmosfera de harmonia que contemple visões de mundo divergentes e seja refratária à barbárie, conviria enfatizar que o fomento de controvérsias favoreceria a avaliação das universidades brasileiras nos rankings internacionais, esvaziando o argumento de que elas se converteram em “madrassas” islâmicas, formando mais militantes do que cidadãos.

*DOUTOR EM ECONOMIA (UNICAMP), AMILCAR BAIARDI FOI PROFESSOR VISITANTE NAS UNIVERSIDADES DE AARHUS (DINAMARCA) E BOLONHA (ITÁLIA) E PRÊMIO JABUTI EM 1997.

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