Cada um vê o imbroglio venezuelano conforme as lentes da ideologia, e esse é um direito inalienável. Há poucas coisas mais inúteis em política internacional do que discutir “quem tem razão”. Costuma ter razão quem tem a força para impor seu desejo. Os propagandistas entram na história para dar um trato na cena, fazer a limpeza e o embelezamento. Como aquele sujeito em Pulp Fiction. Não viu o filme? Veja.
Quem “tem razão” na Venezuela? Depende. Se você defende que o melhor para a América do Sul agora é estancar a penetração russa e chinesa, e quem sabe iraniana, e de quebra varrer a esquerda que apoia o chavismo, faz sentido apoiar as pressões contra o governo de Nicolás Maduro. Se você acha que o mais importante é conter a tentativa americana de retomar a região como esfera de influência, fique do outro lado.
Mas se você é movido por teses como a defesa dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos e do respeito irrestrito à separação dos poderes numa democracia que permita a alternância real no governo, aí talvez seja o caso de cautela. Porque a cada acusação contra o chavismo nesses temas há pelo menos um caso de país amigo dos Estados Unidos, e agora do Brasil, onde isso é deixado para lá. Então deixemos para lá.
A Venezuela é o país da hora onde enfrentam-se as potências que disputam a hegemonia planetária. Os Estados Unidos têm força militar suficiente para tentar resistir à perda de protagonismo para a economia da China. E a Rússia parece ter retomado o poderio militar para conter o declínio deflagrado pela dissolução da União Soviética. Por que a Venezuela? Tem muito petróleo e a América do Sul é um celeiro de commodities.
Está em curso portanto um movimento baseado na interpretação mais crua da Doutrina Monroe, “A América para os americanos”. E no princípio da projeção de poder (militar). Se a Ucrânia, a Síria e a Coreia do Norte são muito longe dos Estados Unidos, a Venezuela é muito longe da China e da Rússia. O recado de Trump é claro: se longe de casa precisamos negociar e aceitar acordos, aqui nas redondezas fazemos o que dá na telha.
E o Brasil? Se o plano de uma derrubada “limpa” do chavismo der certo, com as Forças Armadas dali coesas degolando o governo sem maiores reações e conseguindo estabilidade social e militar, e eventualmente política, tudo bem. O bolsonarismo celebrará a queda de mais um desafeto e vida que segue. Quem sabe até com oportunidades econômicas, com o Brasil entrando de sócio minoritário no desmonte da PDVSA.
Mas, e se der errado? Um risco para o Brasil é a disputa política na Venezuela enveredar para a guerra civil, coisa de que o continente parecia ter se livrado com o acordo de paz na Colômbia. E já que o Brasil decidiu ser protagonista na “guerra pela Venezuela”, será difícil simplesmente voltar para casa e dizer “virem-se, não temos nada a ver com isso”. Até porque nossa fronteira norte é extensa, porosa e cheia de povos indígenas.
Povos para os quais a fronteira e as nacionalidades produzidas após a ocupação hispano-portuguesa têm importância apenas relativa. Em miúdos, gente para quem ser da tribo é mais importante do que ser “brasileiro” ou “venezuelano”. Em tempo de paz, isso tem sido um desafio latente para o Brasil, particularmente para nossas Forças Armadas. Como ficaria a coisa em tempo de guerra? Especialmente se ela transbordar para cá?
Isso traria um conflito bélico para dentro de nossas fronteiras pela primeira vez desde a Guerra do Paraguai. Ela deu na Abolição e na República. #FicaaDica.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação