Neste planeta infestado pelo SARS-CoV-2, o Brasil deve ser o país mais mergulhado em guerras políticas com jeito de insolúveis. O país em que as diversas facções estão mais longe de alguma espécie de trégua. Talvez atrás do Iêmen. Um armistício aqui ajudaria não apenas contra a Covid-19, mas também a achar um caminho para retomar a economia de modo coordenado e combinado entre os entes federados. Sem isso, pagaremos todos um preço ainda maior.
O Brasil é mesmo uma federação, fato bem estabelecido no papel pela Constituição de 1988. O recente federalismo foi a diástole depois da sístole vivida nos anos do regime militar (1964-1985). E a redemocratização trouxe outro componente: a possibilidade de o Congresso ter voz na elaboração do orçamento, algo que vem sendo progressivamente hipertrofiado, tanto no volume dos recursos alocados às emendas quanto na crescente obrigatoriedade delas.
A crise da Nova República, cujos primeiros três atos foram junho de 2013, o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro, é uma crise em progresso. A Covid-19 apenas catalisou a etapa atual da reação química. A chamada nova política, que em última instância supõe concentrar no presidente da República poderes quase absolutos para derrotar a velha, precisa agora, para sobreviver, neutralizar o federalismo e o poder do Parlamento.
Fosse Bolsonaro mais convencional, estaria aproveitando melhor a oportunidade de avançar sobre os demais poderes da República em nome da união nacional e da necessidade de somar esforços para enfrentar as crises da saúde e da economia. Seria uma fagocitose pacífica. Mas o presidente criado e cultivado no conflito prefere fazer as coisas ao modo dele. Tornando permanente e elevando a um novo patamar a pressão pela retomada do poder moderador.
Claro que isso iria produzir uma reação, bem de acordo com aquela Lei de Newton. Os governadores e o Congresso reagem a Bolsonaro emparedando-o. E a única certeza sobre essa queda de braço é que as coisas não ficarão como estão agora. Ou bem o presidente consegue neutralizar as forças centrífugas, ou, como temem seus eleitores mais fiéis, terá definitivamente amputada parte vital do poder a ele atribuído pelas urnas.
E como será o desfecho? Mas a pergunta que interessa é um pressuposto desta. Desfecho do quê? O que caracteriza nosso tempo? Se abrirmos os olhos notaremos já estar em pleno processo constituinte, resultado da caducidade daquele texto de 1988. A vida real já o ultrapassou. A dúvida agora é se a corda vai arrebentar para um lado ou para o outro. Por enquanto, quem avança são as tropas centrífugas. Mas convém não subestimar as centrípetas.
No Brasil já tivemos processos, e desfechos, constituintes de várias modalidades. Eles podem grosso modo ser agrupados em dois grandes tipos: os mais e os menos democráticos. Num extremo, 1988. No outro, 1937. E o que vai definir o grau de democracia embutido na próxima ruptura? As características do poder político encarregado pela sociedade de convocar e garantir os trabalhos da Constituinte que vem aí.
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Publicado originalmente na revista Veja 2.683, de 22 de abril de 2020
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação