É sintomático que o respeito à letra da Constituição tenha deixado de ser argumento importante para decisões judiciais mais relevantes. Aqui, as formalidades importam pouco: quando o julgador descumpre uma norma constitucional a pretexto de estar interpretando um princípio constitucional abstrato qualquer, apenas reveste a coisa de alguma elegância.
A Carta de 88 mal veio e já entrou na linha de tiro. Imediatamente, o liberalismo econômico abriu campanha contra os aspectos corporativos, estatizantes e distributivos dela. Restavam porém relativamente intocados alguns mecanismos sociais conservadores. E os um dia reverenciados direitos e garantias individuais, que a faziam “uma das mais modernas do mundo”.
Agora não mais. Cada pedaço do texto passou a ser alvo de desconstrução. A moda vinha ganhando novas cores desde os anos 90, quando a esquerda se acostumou a ir ao STF sempre que derrotada nas reformas pró-capitalistas do governo do PSDB. E a tendência só se reforçou. Hoje, o Supremo virou no dia-a-dia casa revisora e “vetadora” do Congresso e do Executivo.
Uma aberração, mas lógica. A esquerda exige do STF respeito à letra da Constituição contra a obrigatoriedade da prisão após condenação em segunda instância, no contexto do respeito às garantias e direitos individuais. E festeja quando o tribunal, e não vê contradição nisso, revoga as normas constitucionais antiaborto e em defesa da chamada família tradicional.
Já o jornalismo levanta-se em armas na luta pelas liberdades de expressão e imprensa, mas aceita bem relativizar qualquer outro direito individual ou coletivo, se for necessário para combater a corrupção. Vale, para quem não é da casa, o “não se faz o omelete sem quebrar os ovos”. De vez em quando lamentam-se “excessos”, por atrapalharem a empreitada. E só.
A direita nunca chegou a curtir o texto de 1988, pelos motivos já apontados, mas o abandono dele pela esquerda e pela imprensa vem sendo fatal. O resultado mais bizarro é transformar o STF numa espécie de regência de onze regentes, e com amplos poderes constituintes. Uma completa anomalia pelo ângulo da assim chamada democracia representativa.
Este status quo é insustentável, e os exemplos históricos indicam que deverá ser substituído por alguma forma centralizada de poder político, quando a sociedade estiver esgotada da bagunça, pela absoluta impossibilidade de essa bagunça produzir prosperidade e paz social razoavelmente sustentáveis no tempo. A dúvida é quem vai cortar o nó górdio desta vez.
O apodrecimento político do Brasil de 2018 é exatamente função de nenhum ator ter a força para promover a ruptura, amputar o membro gangrenado. O nome mais lógico para a missão será o presidente eleito em 2018, um candidato a Bonaparte, ainda que trazido pela urna. Não chegará a ser uma novidade para nós, mas só estará disponível em janeiro de 2019.
Ele vai enfrentar entretanto inimigos formidáveis. Um são as corporações de Estado empoderadas e endeusadas pela opinião pública que viu nelas, com alguma razão, o instrumento disponível para mudanças políticas que não deu para fazer pelo voto. Ou alguém acha que STF, MPF, TCU etc vão se recolher apenas por haver um novo presidente saído da urna?
Outro desafio será um país plenamente convencido, após anos de doutrinação, à esquerda e à direita, de que os corruptos são a razão maior de o Estado não ter dinheiro para resolver os problemas da saúde, da educação, da segurança, dos transportes públicos. E que portanto basta eleger um governo honesto para os recursos aparecerem.
Como não basta, o novo presidente precisará tirar algum coelho da cartola para que a frustração popular não se volte contra ele bem cedo. Um coelho disponível, já que a Constituição foi para o vinagre e o processo constituinte está em curso aos trancos e barrancos, é pegar uma carona nele, tomando a liderança e chamando a sociedade para participar.