Supremo deve aplicar a Constituição quando provocado e defendê-la quando exigido
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem raízes profundas na Casa da Suplicação do Brasil, criada por dom João VI após a chegada da Casa Real portuguesa, em 1808. Proclamada a Independência, a Constituição Imperial de 1824, outorgada por dom Pedro I, instituiu o Supremo Tribunal de Justiça, “composto de Juízes letrados, tirados das relações por suas antiguidades”, os quais eram “condecorados com o título de Conselheiros” (artigo 163). Relações era o nome dado a tribunais existentes nas províncias, destinados ao julgamento em segunda e última instância, “para a comodidade dos povos” (artigo 158).
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 1891, criou o Supremo Tribunal Federal (artigo 55). Na Constituição de 1934 a denominação passou a ser Corte Suprema (artigo 73). O nome Supremo Tribunal Federal foi restabelecido pela Carta Constitucional de 1937 e preservado nas Constituições de 1946, 1967, 1969 e 1988.
Na frase ácida e definitiva de João Mangabeira, encontrada no livro Rui o Estadista da República, “o órgão que, desde 92 até 937, mais falhou à República não foi o Congresso; foi o Supremo Tribunal (…). O órgão que a Constituição criara para seu guarda supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do Congresso e as violências do Governo, a deixava desamparada…” (Ed. Livraria Martins, SP, 3.ª ed., páginas 69/70).
A vaga aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, anunciada para 13 deste mês, não é de fácil preenchimento, diante das qualidades intelectuais e morais do ilustre magistrado. Concede, porém, ao presidente Jair Bolsonaro o direito de lhe indicar o sucessor. Quais os requisitos impostos pela Constituição para a indicação de magistrado dos tribunais superiores e do Supremo? São quatro. Dois de natureza objetiva: ser cidadão, ter mais de 35 e menos de 60 anos de idade. E dois de caráter subjetivo: notável saber jurídico e reputação ilibada. Os primeiros se provam com mera exibição de documentos, os segundos dependem da interpretação do presidente da República. A Lei Fundamental não cobra amizade com o chefe do Poder Executivo ou crença religiosa.
Apesar das palavras duras de João Mangabeira, o Supremo Tribunal Federal tem sido o último baluarte na defesa do regime democrático. Vem à lembrança a manifestação do ministro Álvaro Ribeiro da Costa, presidente no biênio 1964-1965, diante de impertinente e autoritária proposta de emenda constitucional enviada pelo presidente Castelo Branco. Reagindo ao ato presidencial, declarou Ribeiro da Costa: “Já é tempo de que os militares se compenetrem de que nos regimes democráticos não lhes cabe o papel de mentores da nação, como há pouco o fizeram, com estarrecedora quebra de sagrados deveres, os sargentos, instigados pelos Jangos e Brizolas. A atividade civil pertence aos civis, a militar a estes que, sob sagrado compromisso, juraram fidelidade à disciplina, às leis e à Constituição”.
Em 192 anos de vida o STF conheceu ministros das mais diversas personalidades. É de justiça relembrar alguns deles. Começo por Pisa e Almeida (19/11/1842), natural de Capivari, “cujo nome se imortalizou, como símbolo de resistência e honra, em meio à dobrez e à covardia”, como escreveu João Mangabeira; e do também capivariano e emérito processualista Moacyr do Amaral Santos (25/7/1902-16/10/1983). Alguns sobressaem na memória do STF pela cultura ou como símbolos de oposição ao totalitarismo. Além de Piza e Almeida, destaco o nome de Amaro Cavalcanti, de Carlos Maximiliano, de Epitácio Pessoa, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva, Vítor Nunes Leal, Ribeiro da Costa, Lafayette de Andrade, Gonçalves de Oliveira e de Moreira Alves,
O desembargador Kassio Marques, integrante do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, é desconhecido além das esferas do seu tribunal. Sabe-se que é do Piauí e foi promovido a desembargador pela presidente Dilma Rousseff. Ao indicá-lo, o presidente Jair Bolsonaro destacou ser seu amigo, com quem tomou tubaína e espera tomar cerveja nos fins de semana. Parece-me insuficiente para justificar a nomeação para o Supremo Tribunal, composto por 11 ministros, onde o desempenho não se dilui, como em geral acontece nos tribunais integrados por elevado número de magistrados.
A pauta do STF é carregada de processos que examinam matérias de alta indagação jurídica e política. A transmissão em tempo real das sessões de interesse nacional expõe à opinião pública o perfil de cada ministro. Revela se é dotado de reputação ilibada e notável saber jurídico ou se não passa de trapezista guindado à alta Corte pelas boas graças de um presidente da República e pela proverbial leniência do Senado.
Compete à Corte Suprema “precipuamente a guarda da Constituição” (artigo 102). Estamos na oitava, seis abatidas por golpes de Estado. Para não ser acusado de falhar à República o Supremo deve aplicá-la quando provocado e defendê-la quando exigido. É o que a Nação espera de seus 11 magistrados.
*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho