Não resta dúvida que os mais ricos são taxados proporcionalmente menos, e não mais, como receita a teoria. E até aqui foram eficientes em imprimir sua agenda pelo fim da tributação.
Ao contrário do que diz o senso comum, o Brasil é um país pobre. A décima economia do mundo é apenas o centésimo país em renda per capita, segundo ranking de 2019 do Banco Mundial. Faturamos em média um pouco menos do que US$ 15 mil ao ano, o que mal chega a um terço da renda per capita da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). O brasileiro médio, no entanto, não passa perto dessa grana. De acordo com a Rais (Relação Anual de Informações Sociais), só 10% dos brasileiros trabalhando no mercado formal (CLT) recebem salário mais alto que este, o equivalente a R$ 5.000 por mês. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) aponta ainda que cerca de 70% dos brasileiros dispostos a trabalhar mal ganham dois salários mínimos mensalmente no trabalho principal, o que equivale a R$ 2.200 em 2021.
Os baixos salários não livram o brasileiro de pagar um dos mais altos impostos sobre o consumo do mundo, mas os livra de pagar o IRPF (Imposto de Renda de Pessoa Física) — o Brasil é o 8° país que proporcionalmente mais taxa o consumo no mundo, dos 61 países analisados pela OCDE. Não existe cidadão que não queira ganhar mais do que R$ 1.900 por mês, ou ter mais de R$ 300 mil em bens e direitos e, assim, poder pagar o IRPF. Mas nada menos do que 70% dos brasileiros estão fora do seleto grupo dos declarantes; são os isentos da Receita.
Os declarantes no Brasil se dividem em cinco faixas de renda, correspondentes às cinco alíquotas existentes. São poucas quando comparamos com os países desenvolvidos, que tendem a ter mais faixas/alíquotas de forma a maximizar a progressividade. Também temos uma das menores alíquotas máximas do mundo civilizado, 27,5%, contra uma média de 41% entre os países da OCDE. A discussão sobre a proporcionalidade das alíquotas é antiga e remonta a Adam Smith, que, no livro “A riqueza das nações”, argumentava que os cidadãos (súditos, para a época) deveriam “contribuir o máximo possível para a manutenção do Governo (…) em proporção ao rendimento de que cada um desfruta, sob a proteção do Estado”.
Taxar os cidadãos segundo sua capacidade e não com uma alíquota única tem sido uma máxima da teoria da tributação desde então. O Brasil passou a adotar o imposto de renda em 1922, e logo estabeleceu a progressividade. No ano base de 1988, ainda tínhamos nove faixas com alíquotas que variavam de 10% a 45%. Mas a minoria organizada exerceu eficientemente sua voz no novo período democrático. No ano seguinte passaram a ser apenas duas alíquotas, a maior de 25%. Em 1994, introduziu-se uma nova alíquota e a máxima subiu para 35%
Mas a grita levou a uma nova redução para duas faixas/alíquotas, com a máxima de 25%, que em 1998 passaria aos 27,5% atuais. Sem conseguir implantar a “progressividade para cima”, implantaram a “progressividade para baixo”. Em 1999, criaram as alíquotas de 7,5% e 22,5% ao lado da antiga mínima de 15%, que vigorava desde 1992. Não é simples implementar a progressividade e sobretudo taxar os mais ricos. E este não é um problema só do Brasil, como mostram Gabriel Zucman e Emmanuel Saez no livro “The Triumph of Injustice: How the Rich Dodge Taxes and How to Make Them Pay” (em tradução livre, “O triunfo da injustiça: como os ricos evitam impostos e como fazê-los pagar”), publicado nos Estados Unidos, em 2019.
A alíquota padrão ou de referência não é, na verdade, a alíquota efetiva paga pelos declarantes. A tributação do IRPF varia também por tipo de rendimento auferido no ano, e ainda tem as isenções legais. Ocorre que justamente os mais ricos têm mais rendimentos provenientes de fontes com tributação exclusiva e isentas de imposto.
A REFORMA TRIBUTÁRIA E A ATUAL CRISE ECONÔMICA PODEM TER ABERTO UMA JANELA DE OPORTUNIDADE PARA MUDARMOS ESSE JOGO, EM DIREÇÃO A UM PAÍS MAIS JUSTO
A “alíquota efetiva”, ou o total de tributos pagos em proporção da renda total declarada, tributável ou não, deveria aumentar conforme a renda. Mas isso só ocorre até os contribuintes que declaram em média cerca de R$ 35 mil por mês em rendimentos. A progressividade pode ser vista no gráfico abaixo. O ordenamento e a alíquota efetiva foram calculados sobre a renda RB2, ou a renda tributável bruta + renda de sócio/titular + lucros e dividendos + rendimento sujeito à tributação exclusiva.
O recurso de imaginarmos uma escada com 100 degraus ordenando os contribuintes segundo sua renda anual declarada é sempre conveniente neste momento. Até o 15º degrau a alíquota efetiva é próxima a zero. A receita até recolheu cerca de R$ 5 milhões em impostos com os 7,5 milhões de contribuintes no primeiro quarto da escada — ou seja, com os que estão nos 25 primeiros degraus —, mas é um valor insignificante perto dos R$ 153,8 bilhões arrecadados em 2018.
A partir do 15º degrau a alíquota se eleva de forma progressiva até o 98º, o antepenúltimo. Neste patamar, os declarantes pagam entre 13,4% e 11,8% de imposto, e a alíquota é menor quando incluímos na RB2 as receitas declaradas como “outros rendimentos isentos”. Daí em diante a alíquota efetiva despenca. Os 29,8 mil declarantes no penúltimo degrau pagam em média 10,7% da renda em IRPF. Já o pessoal no clube dos 1% paga apenas 4,7% em média.
Mesmo os 1% mais ricos podem se achar injustiçados, pois enquanto os 10% mais “pobres” deste grupo pagam alíquota de 8,8% sobre a renda, os 10% mais ricos pagam uma alíquota efetiva de apenas 2,5%. A pontinha da cauda é ainda mais cruel: os 2.984 declarantes com maior renda pagaram efetivamente em 2018 apenas 1,6% em imposto sobre a renda total declarada. Não resta dúvida que os mais ricos pagam proporcionalmente menos, e não mais, como receita a teoria. E até aqui foram eficientes em imprimir sua agenda: chega de impostos! Mas a reforma tributária e a atual crise econômica podem ter aberto uma janela de oportunidade para mudarmos esse jogo, em direção a um país mais justo e com menos desigualdade.
Alexandre Sampaio Ferraz é economista, doutor em ciência política e assessor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).