Dizia-se, no século passado, antes da modernização avassaladora que assolou o país entre as décadas de 60 e 80, que o destino dos filhos das classes médias do interior seria a igreja, o exército ou a escola; em outras palavras, que seriam, na idade adulta, padres, militares ou professores. Não deu outra: passei pela primeira, fugi da segunda e, ao final, me tornei, meio que sem convicção, professor. Diante das alternativas que estavam à minha frente, não lamento a opção feita. Mais do que isso: acabei gostando muito da profissão e creio que me sai bem nela.
Do exército escapei antes de ingressar. Havia uma prova teórica e física que os meninos tinham que fazer para ingressar na “academia militar” depois de concluído o antigo ginásio. Combinamos, eu e meu irmão, que nos “esforçaríamos” para sermos reprovados em ambas as provas porque não queríamos nada com a vida militar. Tínhamos acabado de sair do seminário onde ficamos, eu 3 e ele 4 anos, longe da família, para onde voltávamos nas férias semestrais já que o seminário ficava em outra cidade. Fazíamos essa viagem em trem, com baldeação no entroncamento de Bauru. Nunca houve um atraso significativo nas viagens. O trem funcionava muito bem e era confiável.
Ao final de 1967, “fomos saídos” do seminário, ou seja, convidados a não mais retornarmos. Tivemos que completar o ginasial na cidade onde moravam nossos pais. Em poucos meses, como resultante da severa crise econômica que se abateu sobre o país, veio o desemprego e meu pai não teve outra alternativa senão migrar para São Paulo, em 1969. No inicio de 1970, toda a família se transferiu para a capital.
Mas 1967 foi efetivamente um ano movimentado. Havia agitação entre os padres e os seminaristas “maiores” (nós fazíamos parte dos “menores”). Como se sabe, depois das reformas do papa João XXIII, emergiu na igreja católica um espirito de renovação mais liberalizadora e com tintas populares que, mesclado com a influência de um “revolucionarismo” inspirado principalmente no guevarismo e no maoísmo, passou a agitar o ambiente.
Além disso, víamos pela TV os festivais de musica popular, os programas juvenis, como a Jovem Guarda e programas de entrevistas que faziam pensar na situação do país e do mundo. Tudo isso era corroborado pelas revistas que chegavam a nós nas malas daqueles que voltavam das suas cidades ou de familiares que nos visitavam. A vida ficava cada vez mais desafiadora e propícia a isso, mesmo em nós que estávamos lá como “internos”.
Tudo mudava dentro do seminário. Havia mais liberdade, mais espaço para novos desejos. Em meio a tudo que fazíamos lá, como estudar, trabalhar, jogar futebol, nadar, trabalhar servindo a comida e lavando os pratos, ler em voz alta no refeitório enquanto todos comiam … em meio a tudo isso houve algo insólito. Era necessário estabelecer o ensino de inglês. Como não havia padres para ministrar a disciplina, o prefeito dos menores decidiu pela contratação de uma professora. Era uma mudança e tanto. Semanalmente não víamos a hora da aula de inglês para incendiarmos nossa imaginação apreciando a moça, dentro e fora da sala de aula.
Estávamos certos que os padres buscavam o melhor para a formação de um caráter responsável naqueles jovens que não sabiam muito bem porque estavam lá, embora em algum momento houvessem concordado em testar a existência de alguma vocação sacerdotal em suas almas e corações. Mas as avassaladoras mudanças que se processavam conspiravam contra tais objetivos. E, pelo que me lembro, ninguém seguiu em frente e se ordenou sacerdote; anos depois, também chegou aos meus ouvidos que o “prefeito dos menores” havia abandonado a batina e se casado.
O ambiente era de agitação, abertamente convidativo à transgressão. Na Semana Santa, fui passar alguns dias em Rudge Ramos, distrito de São Bernardo do Campo. Com uma turminha, fomos em trem até São Paulo e, ao invés de tomarmos o ônibus urbano, caminhamos da Estação da Luz até o Parque Xangai (colado ao Parque Dom Pedro) só para vermos as moças de minissaia circulando pelo centro de São Paulo, informação assegurada pelas fotos que víamos em algumas revista que nos chegavam às mãos.
Na viagem compramos maços de cigarros. Fumar, sozinho ou em turma, era conquistar um status de galã. Sabíamos que fumar era uma quebra da disciplina, um risco. E, não deu outra: durante a missa da manhã, o “prefeito dos menores” junto com alguns “maiores”, vasculharam nossos armários no grande dormitório onde tínhamos nossas coisas. Encontravam o que procuravam e fizeram com que cada um se delatasse. Assumimos o “erro” e fomos punidos: mais trabalho, menos diversão durante um mês. E maior vigilância em cima de cada um de nós. Estávamos fritos: não seria mais possível passar sorrateiramente pelo corredor que levava da cozinha ao refeitório dos padres para roubarmos xícaras de sorvetes que a nós, “menores”, nos eram negadas como sobremesa.
Um dos trabalhos que fazíamos coletivamente era a encadernação de livros velhos. Por coincidência ou não, o grupo de fumadores se reunia na encadernação para conversar … e fumar (escondido). Certo dia, um dos mais distraídos deixou uma guimba mal apagada e provocou um incêndio grave, mas de pequenas proporções. Por sorte conseguimos apagar o fogo e impedir que ele se alastrasse para outros cômodos de oficinas. Obviamente, depois do rescaldo, fomos rigorosamente punidos.
Havia pouca consciência sobre toda aquela agitação. Era o espírito do tempo ou parte da idade? Difícil saber. O fato é que sentíamos uma certa agitação fora dos muros do seminário e que chegava a invadir nosso espaço com desejos que não compreendíamos muito bem nem sua validade nem suas proporções. O certo é que lá também se avivou alguma chama … mas, que queimava pra valer.