“Irarrazabal chama-se a rua por onde caminhávamos em setembro. É um nome inesquecível porque jamais conseguimos pronunciá-lo corretamente em espanhol e porque foi ali, pela primeira vez, que vimos passar um caminhão cheio de cadáveres. Era uma tarde de setembro de 1973, em Santiago do Chile, perto da Praça Ñuñoa, a apenas alguns minutos do toque de recolher”.
É com essas palavras que Fernando Gabeira inicia a narrativa do seu famoso O que é isso, companheiro?, publicado em 1979, depois da anistia e de seu retorno ao Brasil. O livro alcançou um êxito tão fulminante quanto duradouro, especialmente em função da polêmica que criou ao questionar os valores e crenças daqueles que se lançaram à luta armada no Brasil. Gabeira era um deles e como muitos outros brasileiros que haviam saído do país por vincularem-se à esquerda – armada ou não –, ele estava no Chile no dia do golpe militar de 11 de setembro de 1973.
Naquele final de tarde Gabeira conheceria, mais uma vez, o sabor amargo da derrota. A sensação era pesada e a decisão difícil. Um tanto disfarçadamente, alguns companheiros caminhavam junto com ele pelas ruas de Santiago rumo à Embaixada da Argentina com o intuito de conseguir asilo político. Certamente não passava pela cabeça daqueles jovens a letra de “Para não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, na qual se cantava, com outro espírito, os versos: “caminhando e cantando e seguindo a canção … a certeza na frente, a história na mão”. Ao contrário do voluntarismo daquela canção que animara os corações e mentes no final da década de 1960, ali só havia uma certeza: para salvar a própria vida, caminhava-se para um “exílio dentro do exílio”. A história lhes escapava das mãos e, como registrou Gabeira, o reconhecimento era inevitável: “as ditaduras militares estavam fechando o cerco no continente”.
Entretanto, aquela era uma explicação compreensivelmente unilateral a respeito do que se passava na América Latina e bastante superficial em relação ao que estava ocorrendo no Chile. Era, enfim, a visão daqueles que haviam investido sua juventude na luta armada e que viam a sua situação pessoal se complicar ameaçadoramente a partir da eclosão do golpe militar contra o governo de Salvador Allende. Isto porque àquela altura já não havia mais – se é que alguma vez houve – um movimento guerrilheiro de perfil latino-americano que estava sendo acuado pelas forças da reação, como Gabeira, de alguma forma, supunha em seu registro. As mudanças que se produziam naquela hora teriam, como se confirmará depois, um caráter muito mais profundo do que apenas o de reação a movimentos armados ou governos eleitos pela esquerda. As ditaduras que se impuseram por meio de golpes militares, especialmente a chilena, refundariam seus países e as repercussões disso eram ainda insondáveis para os homens contemporâneos àqueles fatos, especialmente aos que militavam na esquerda latino-americana.
Salvador Allende havia assumido o poder no Chile depois de vencer a eleição presidencial de 1970 sendo candidato da Unidade Popular (UP), uma coalizão de esquerda que abrigava os partidos Comunista, Socialista, Radical, Social-Democrata, a Ação Popular Independente e o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU). Ao longo de três anos, Allende exerceu a presidência da República e foi deposto por um golpe militar na manhã daquela terça-feira, dia 11 de setembro de 1973. Seu governo ficou conhecido como a “experiência chilena” porque se propunha realizar uma tarefa inédita: construir o socialismo mediante a manutenção e o aprofundamento da democracia. Essa perspectiva política havia sido denominada por Allende como a “via chilena ao socialismo”, uma consigna que visava expressar o caminho que deveria levar à realização do objetivo maior de seu governo. Analiticamente, a “via chilena” era o projeto que deveria embasar a atuação do governo e da esquerda enquanto a “experiência chilena” constitui-se no processo que marcou todas as realizações, contradições e vicissitudes do governo conduzido por Allende e pela Unidade Popular.
Contrastando com a situação chilena do início da década de 1970, o Brasil vivia, naquela conjuntura, um aprofundamento do autoritarismo e da repressão política que caracterizavam o regime ditatorial implantado no país em 1964. No final de 1968, o Ato Institucional n. 5 (AI5) impôs severas restrições à vida política do país com o fechamento do Congresso, a implantação da censura prévia aos principais veículos de comunicação e a cassação do mandato de diversos parlamentares. Contudo, o Brasil não viveu, no início da década de 1970, apenas os “anos de chumbo” da ditadura militar. Esse também foi o período do chamado “milagre brasileiro” no qual a economia cresceu aceleradamente, com base numa combinação de arrocho salarial e entrada maciça de capitais internacionais, proporcionando uma vigorosa legitimidade ao regime militar. Com ela vieram o ufanismo do “Brasil Grande Potência” bem como o agressivo slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, uma dramática resposta aos críticos do regime. A situação política do país para aqueles que se situavam ideologicamente à esquerda, vindos do trabalhismo, do comunitarismo cristão, do comunismo, do socialismo ou do trotskismo, e que vislumbravam atuar em oposição ao regime militar quer do ponto de vista político-partidário quer do ponto de vista acadêmico e intelectual era visivelmente restrita e em alguns casos absolutamente impeditiva.
Não à toa muitos brasileiros tiveram que rumar para o exterior ou lá permanecerem, voluntária ou involuntariamente. Alguns o fizeram como último recurso para salvar a própria vida, outros simplesmente para conseguir dar seqüência à sua carreira profissional, especialmente aqueles vinculados ao meio acadêmico. Dentre estes últimos, muitos haviam se mudado para o Chile, depois de 1964, e lá permaneceram como pesquisadores da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina) quando o regime militar deu mostras de recrudescimento da sua ação repressiva após a promulgação do AI5. Outros, contudo, como o já mencionado Fernando Gabeira, chegaram ao Chile depois de trocados pela liberdade de algum embaixador estrangeiro seqüestrado pela esquerda armada no Brasil. Naquele momento, o Chile tornou-se um dos destinos preferenciais dos exilados brasileiros tanto em função da sua longa trajetória de democracia quanto da vitória da esquerda em 1970. Para todos esses brasileiros, como Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Plínio de Arruda Sampaio e José Serra, dentre outros, uma frase do hino nacional chileno, em que se canta que o Chile deverá ser sempre “el asilo contra la opresión”, soava bastante literal, além de garantir efetivamente um amparo seguro para eles e, em alguns caos, para suas famílias.
Darcy Ribeiro, um dos principais representantes da intelligentsia trabalhista brasileira, talvez tenha sido a liderança política vinda do Brasil que alcançou mais proximidade com o então presidente Salvador Allende. Darcy Ribeiro foi seu assessor especial e, nessa função, redigiu partes do famoso discurso presidencial de 05 de maio de 1971 no qual Allende define a via chilena como uma segunda forma de construção da sociedade socialista, procurando distinguir o caminho chileno das experiências soviética e cubana. Nesse discurso – que se tornou a principal referência a respeito da via chilena ao socialismo –, Allende menciona explicitamente trechos extraídos dos clássicos do marxismo, especialmente de F. Engels, em que se admite um caminho pacífico para o socialismo. A fala de Allende procurava enfatizar que o caminho chileno seria realizado “dentro dos marcos do sufrágio, em democracia, pluralismo e liberdade”, indicando que o principal desafio do Chile sob o governo da esquerda seria “institucionalizar a via política para o socialismo”.
Anos mais tarde, em suas Confissões (Cia. das Letras, 1997), Darcy Ribeiro relata que, juntamente com outro assessor, o valenciano Joan Garcés, defendera perante o presidente que o primeiro objetivo de seu governo deveria ser a criação de uma legalidade democrática de transição ao socialismo e não a ênfase na política de nacionalizações e estatizações. Assim, para ele, além das grandes transformações estruturais desenhadas no programa da UP – e que deveriam ser realizadas com muito equilíbrio –, o grande desafio da opção assumida no Chile residia no percurso que se deveria trilhar para se conquistar a institucionalização da via política para o socialismo.
Entretanto, os partidos da esquerda chilena se colocaram contra essa idéia, estabelecendo uma outra linha de ação. Nos três anos que se seguiram, a ação transformadora do governo da UP ficou concentrada no Poder Executivo, sob comando do presidente Allende. Acreditando que a legalidade chilena suportaria as transformações que o governo da UP colocaria em curso, adotou-se uma posição intransigente nas ações governamentais, visando incrementar a industrialização do país mediante processos de nacionalização e estatização, intensificar a integração social por meio de políticas públicas de corte popular e aprofundar a democratização com o aumento dos espaços de participação. A temática político-institucional, presente na reflexão de Darcy Ribeiro no inicio do governo, permaneceu em segundo plano e, mais tarde, meses antes do golpe, quando Allende lhe perguntou se a alternativa que propusera teria sido mais viável e eficaz, Darcy não teve como dar ao presidente uma resposta definitiva, preferindo um argumento mais consensual para o momento no sentido de reconhecer que a dimensão econômica já havia chegado ao seu limite e que o governo necessitava de outras soluções para enfrentar a severa crise que já vivenciava. Apesar das divergências de condução política, Darcy Ribeiro compartilhou com Allende a visão de que era preciso compatibilizar as transformações econômicas com o andamento político do processo e manter um comportamento hábil e cauteloso no sentido de “acumular forças” para passos mais decisivos que estariam por vir.
Contudo, desde o inicio, muitos viam com ceticismo a chamada via chilena ao socialismo. Influenciados pela Revolução Cubana e capitaneados pelo Movimiento de Izquierda Revolucionário (MIR), parcelas do MAPU e pelo Partido Socialista – o partido de Allende –, estes setores entendiam que esquerda e governo deveriam seguir a estratégia de “pólo revolucionário”, contestando de maneira antagônica o “poder burguês”, agindo no sentido de aprofundar as contradições e conflitos até se produzir uma situação pré-revolucionária. Para isso, era preciso “avanzar sin transar”, ou seja, aprofundar as transformações sociais e econômicas sem negociação alguma com outros segmentos do espectro político chileno. O MIR não apoiara a eleição de Allende e, durante todo o período, permaneceu como a força oposicionista mais ativa no campo da esquerda. Seu líder mais expressivo, Miguel Enriquez (que anos mais tarde seria brutalmente assassinado pela ditadura) qualificava de “mentirosa” a formulação da via chilena como um segundo caminho para se chegar ao socialismo. De uma forma geral, todos esses setores de esquerda eram contundentes críticos do projeto da via chilena ao socialismo – e a maior acusação era de que ela se mantinha equivocadamente no interior da institucionalidade do Estado burguês – e visceralmente contrários ao encaminhamento político adotado pelo governo Allende. Há que se mencionar também o fato de que, nessa avaliação, esses setores da esquerda chilena se viam acompanhados por intelectuais que expressavam o pensamento da então chamada gauche revolutionnaire que brilhou na Europa entre os anos 60 e 70. Estes intelectuais (dentre eles a italiana Rossana Rossanda do grupo Il Manifesto, jornal critico e dissidente do velho Partido Comunista Italiano, o PCI) vaticinavam em seus textos de avaliação da chamada experiência chilena que, mais cedo ou mais tarde, como em todos os reformismos, Allende seria forçado a mudar de estratégia, aderindo, por fim, ao caminho revolucionário – definido, para eles, por meio da ruptura armada com o Estado burguês.
Essa divisão marcaria profundamente a avaliação dos brasileiros que lá estiveram, refletindo a divisão que existia no seio da esquerda latino-americana a respeito do que se passava no Chile. Para boa parte da intelectualidade e da militância política da esquerda brasileira que se exilou no Chile, ao contrário do que defendia Allende, a experiência chilena teria que operar uma inflexão radical: passar do reformismo à revolução e do nacional-desenvolvimentismo ao poder democrático-popular. Um dos mais expressivos representantes dessa posição política foi Theotônio dos Santos, que era inclusive filiado ao Partido Socialista Chileno e dirigia, em 1973, o Centro de Estudos Socioeconômicos da Universidade do Chile (CESO). Nesse mesmo alinhamento poderíamos mencionar também os irmãos Eder e Emir Sader, Rui Mauro Marini, bem como Marco Aurélio Garcia, todos mais ou menos aderentes ou simpáticos às posições do MIR. Para se ter uma dimensão da contundência dos argumentos dessa corrente política, Theotônio dos Santos, no balanço final de um simpósio internacional realizado em Santiago, em outubro de 1971, procurou indicar o que ele entendia que deveria ser o papel chave do governo da UP: “criar condições para a tomada do poder (…) através da constituição do poder alternativo e não da conquista gradual do poder do Estado existente”. Depois do golpe, ao reavaliar todo o período, o que se deveria “julgar”, de acordo com Eder Sader, não eram os homens ou suas condutas no âmbito da esquerda e sim o próprio projeto da via chilena ao socialismo. O veredicto seria implacável: tratou-se de um equívoco trágico e fatal, ainda de acordo com Sader.
Para Darcy Ribeiro, esses setores praticavam um “radicalismo verbal exacerbado” e pretendiam – dogmaticamente – “cubanizar o processo chileno”. Para Darcy Ribeiro, essa “esquerda desvairada” ajudou a direita a dar o golpe definitivo em Allende. Essa avaliação, ainda que insuficiente enquanto uma explicação integral daquele processo histórico, nunca pode ser contestada cabalmente. Por outro lado, em sentido contrário ao que propugnavam no período e ao que escreveram posteriormente, aqueles que, como por exemplo, Theotônio dos Santos, à época criticavam Allende, entendem hoje – numa espécie de tour analítico surpreendente – que o governo da UP deve ser reivindicado “como vanguarda dos ideais revolucionários no nosso continente” e a sua experiência deve ser compreendida como um “projeto possível”.
Entretanto, para além da polarização acima apresentada, é possível identificar também entre os brasileiros uma posição intermediária, que chegou a ser formulada no correr do período Allende. Num texto publicado por Fernando Henrique Cardoso na extinta revista Argumento – escrito antes, mas vindo a público depois do golpe de Estado –, chamava-se atenção para algumas importantes dificuldades do processo político chileno no sentido de superar a situação de dependência existente no país por meio da estratégia e das práticas adotadas pela UP e pelo governo Allende. Para Fernando Henrique Cardoso, os conflitos políticos e sociais que envolviam o governo Allende ameaçavam chegar a um patamar incontrolável e lançavam uma nuvem de pessimismo sobre a situação política. Segundo o sociólogo brasileiro, em função dos graves acontecimentos que marcavam o governo Allende, o cenário que se apresentava não era dos mais auspiciosos para a democracia chilena. Contudo, essa percepção de Cardoso – em tudo distanciada do protagonismo polarizador que marcavam as posições dos dirigentes da esquerda brasileira no Chile – não se transformaria em uma orientação política relevante, permanecendo no seu universo estritamente acadêmico e reflexivo. Deve-se lembrar que Fernando Henrique Cardoso – no Chile, um funcionário da CEPAL – havia publicado, com o chileno Enzo Faletto, em 1967, o livro Dependencia y desarrollo en América Latina que se tornaria um clássico dos estudos sobre a dependência. A superação da dependência do Chile em relação à presença dominadora dos EUA em sua economia era uma das questões centrais do programa da UP e do governo de Allende.
De toda maneira, o que se pode observar é que expressas de forma contrapostas, as falas dos principais protagonistas invadem integralmente o campo de análise, mantendo o passado envolto em uma bruma que não se dissipa. Ao testemunharem sobre o Chile de Allende, é ainda a perspectiva da derrota da esquerda diante da direita que, de maneira exclusiva, conduz o repensar histórico. Evita-se pensar a experiência chilena como o fracasso de um governo conduzido pela esquerda. Nas avaliações publicadas pelos principais protagonistas que participaram daquele processo – e dentre eles alguns dos brasileiros que acima mencionamos – não se toma como relevante o fato de que o governo atuou como nucleador de uma política que seguia a via institucional e as bases sociais da esquerda como um outro pólo que buscou permanentemente resolver a chamada questão do poder para implantar o mais rapidamente possível o socialismo. Essa dissociação foi geradora de uma tensão permanente no campo da esquerda e invadiu o coração do governo da UP. A partir dessa perspectiva de análise é possível perceber que efetivamente Allende foi se tornando, com o passar do tempo, uma liderança disfuncional uma vez que não advogava pela ruptura institucional e, por outro lado, não revelava capacidade para dirigir e controlar por inteiro o processo político que, por fim, redundou numa polarização catastrófica.
De uma forma geral, pode-se dizer que a experiência chilena fracassou por razões que pareciam despreocupar os principais atores da esquerda chilena e que eram anteriores a qualquer possível erro de condução política do processo e que também não tinham que ver diretamente com o desafio inédito de construir o socialismo por meio da democracia. Hoje está claro que jogou um papel fundamental o fato de Allende ter sido um Presidente da República com apoio político minoritário do ponto de vista da representação, uma vez que ele havia sido eleito com apenas 36% dos votos e sua posse havia sido aprovada, em segunda instância, pelo Congresso chileno. Efetivamente, somente o “clima revolucionarista” do final dos anos sessenta e a poderosa influência da Revolução Cubana na esquerda latino-americana explicam a temeridade de se buscar avançar na construção do socialismo pela democracia com um percentual tão exíguo de apoio eleitoral. Hoje sabemos também que há, no Chile de Allende, uma extraordinária importância o fato de que as forças políticas à época se dividiam em três correntes político-ideológicas – os liberais e nacionalistas, a democracia-cristã e o eixo socialista-comunista –, com projetos de sociedade distintos e até antagônicos entre si, dificultando a convivência e o equilíbrio do sistema político ao extremarem suas posições. É importante chamar a tenção para o fato de que o Chile nesse momento não tinha um centro político com funções negociadoras. Ao contrario, a DC buscava também implementar o seu projeto de sociedade. Em outras palavras, a DC era um centro excêntrico e isso, senão impossibilitava, dificultava ao extremo qualquer negociação mais substantiva ou duradoura entre esquerda e centro político. Em terceiro lugar, se poderia mencionar um tema programático: as reformas implementadas por Allende, aprofundando a reforma agrária, estatizando bancos e empresas (especialmente aquelas vinculadas à área mineradora), eram excessivamente maximalistas e o caminho adotado para realizá-las, por meio do executivo, acabaram efetivamente abrindo espaço para a ingovernabilidade. A exacerbação da idéia de que socialismo era estatização no plano econômico gerou uma política de tipo “soma zero”, que agregada aos outros fatores acima mencionados, geraram uma crispação sem remissão entre as forças políticas do país. Por fim, há que se agregar o fator externo: o apoio dos EUA à oposição – democrática e não-democrática – e, em seguida, ao golpe de Estado, não deixa dúvidas a respeito da transcendência do que se passava no Chile no início da década de 1970. Impedir uma nova Cuba era essencial para os EUA e, de fato, se configurou como um processo impossível de ser levado a bom termo num país que havia experimentado décadas de vida democrática antes de 1973.
Dividida e aquém dos acontecimentos e dos ditames que a historia lhe colocava, a esquerda buscava, sob Allende, realizar uma revolução feita por mecanismos legais do Estado chileno, mas pretendia implantar um socialismo que não era outra coisa senão algo equivalente ao que se passava na União Soviética, na China ou em Cuba. Realizar uma coisa e outra se mostrou inviável naquelas condições, indicando que, em nenhum sentido, estava amadurecido o significado da via democrática ao socialismo que a esquerda chilena, a partir do governo, vocalizava e dizia querer implementar.
Por essa razão, o governo Allende não deve ser entendido como uma experiência prática da impossibilidade histórica de uma via democrática ao socialismo, como pensou a esquerda brasileira e latino-americana por vários anos, depois daquele 11 de setembro de 1973. Naquele governo apenas se anunciou essa possibilidade. Allende e a UP concebiam o socialismo a partir de uma cultura política convencional que predominava na esquerda latino-americana. Enquanto que o desafio que emergiu no Chile era novíssimo e obrigava a que se concebesse tanto o socialismo de outra maneira quanto um tipo novo de estratégia para se chegar a ele. Ator e circunstâncias se contraditaram e a história, por meio de outros personagens, se impôs implacavelmente.