Não há exagero em prever que os investimentos diretos vão desabar, chegando aos níveis mais baixos dos últimos 20 anos.
Quando o radar sinaliza um iceberg, o comandante adverte o timoneiro a mudar o rumo do navio. Mas pode ser tentado a mudar o timoneiro. Se após a pandemia retornarmos ao teto de gastos, como prega o atual ministro da Economia, o risco é mais baixo. Porém, se a curva de contágio do vírus demorar a achatar, como é provável, a recessão aumenta, minando o apoio da população ao presidente, e no lugar do atual ministro da Economia pode ser colocado algum adepto da cloroquina fiscal, aumentando os gastos públicos para fazer o País crescer. As consequências seriam a insustentabilidade da dívida pública e o aumento das saídas de capitais, que já vem ocorrendo.
O balanço de pagamentos é composto por dois grupos de contas: as contas correntes e a conta financeira e de capitais. A menos de erros e omissões, a diferença entre elas é o saldo no balanço de pagamentos. O Brasil quase sempre teve déficits nas contas correntes, que nunca deixaram de ser superados pelos ingressos de capitais – os investimentos estrangeiros diretos e em carteira (renda fixa e ações). Em 2007, antes da crise de 2008/09, tínhamos equilíbrio nas contas correntes, mas o ingresso de capitais pouco acima de US$ 80 bilhões gerou um superávit de US$ 80 bilhões no balanço de pagamentos, e o Banco Central elevou as reservas. Em 2011, devido à forte recuperação do crescimento, tivemos um déficit nas contas correntes de US$ 80 bilhões, mas os ingressos de capitais chegaram a um pico de US$ 160 bilhões, com novo superávit no balanço de pagamentos e um novo aumento das reservas. Nos últimos 12 meses, contudo, assistimos a um déficit nas contas correntes de US$ 50 bilhões, com um ingresso nulo na conta financeira e de capitais. Pela primeira vez, em décadas, temos um déficit no balanço de pagamentos, que nos últimos 12 meses já atingiu US$ 50 bilhões. Consequência: as reservas caem.
Por que caíram os ingressos de capitais? A queda observada nos investimentos em carteira desde a perda do grau de investimentos do país vem se acelerando. Nos últimos 12 meses saíram mais de US$ 50 bilhões, dos quais perto de US$ 25 bilhões só nos últimos 30 dias. Quanto aos investimentos diretos, nos últimos 12 meses ingressaram US$ 50 bilhões, mas estes devem cair não só devido à redução dos investimentos no Brasil, mas também porque a recessão mundial gera grandes prejuízos nas matrizes de multinacionais, que não têm como (nem deveriam) investir nas suas subsidiárias brasileiras. Não há exagero em prever que os investimentos diretos vão desabar, chegando aos níveis mais baixos dos últimos 20 anos.
Se os déficits nas contas correntes não declinassem teríamos déficits enormes na balança de pagamentos, acelerando a queda de reservas, mas eles também vão cair. Com a recessão há uma redução sensível nos gastos em as viagens internacionais, nas remessas de lucros e dividendos, nos fretes e seguros, e nas importações. No entanto, embora o real depreciado e os bons preços dos alimentos provoquem otimismo quanto as exportações, não se pode ignorar que o valor em dólares das exportações brasileiras tem elevada elasticidade com relação ao valor em dólares das exportações mundiais, que despencam com a recessão mundial.
O que ocorreria se o governo decidisse elevar os gastos públicos, esperando que o “multiplicador keynesiano” elevasse a demanda agregada? O déficit nas contas correntes, que nada mais é do que o excesso da demanda agregada sobre o PIB, tenderia a aumentar. Porém, diante da política fiscal expansionista cresceria o risco percebido pelos investidores não residentes, levando a uma aceleração da saída de capitais. No mercado financeiro ninguém (ainda) acredita que um ministro, que repetidas vezes tem reafirmado seu compromisso como teto de gastos, aceitaria tal mudança de rumo. Mas o presidente, que admite não entender de economia, pode escolher alguém que não hesitaria fazê-lo. Lembrem-se da cloroquina. Uma política fiscal expansionista não só piora a dinâmica da dívida pública como acentua o desequilíbrio externo, e esta outra dimensão da crise ainda não está no radar. Sabemos como termina a história: no limite, para truncar a depreciação cambial e a venda de reservas, chegaríamos ao controle de capitais. É só olhar para a Argentina.
Há um iceberg por perto, e o risco de colisão é alto. Depois de tanto esforço, sofrer uma recaída do “efeito Orloff” seria uma lástima.
*Ex-presidente do Banco Central e Sócio da A.C. Pastore & Associados.