A discussão acerca da prisão em segunda instância antes mesmo do trânsito em julgado da sentença penal condenatória — festejada por uns e repudiada por outros — pode até soar casuísta à primeira vista caso se leve em conta que sua motivação gravita exclusivamente em torno da figura do ex-presidente Lula. Na verdade, não há casuísmo.
Em essência, cuida-se de temática penal de índole constitucional da mais elevada importância, tendo em vista que a eliminação definitiva dessa controvérsia afetará a vida de milhares de cidadãos brasileiros que se encontram em iguais condições processuais às de Lula.
Sabemos que em fevereiro de 2016 o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), ao rejeitar por maioria de votos o Habeas Corpus n. 126.292, alterou drasticamente sua jurisprudência para afirmar que a partir de então seria possível a execução provisória da pena após a confirmação em segunda instância da sentença penal condenatória, mesmo antes de seu trânsito em julgado.
Além do placar ter sido de 7 a 4 (acompanharam o saudoso ministro relator Teori Zavascki pelo indeferimento do HC, os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, vencidos os ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski), o julgamento atingiu somente as partes envolvidas naquele processo criminal, à míngua de efeito vinculante da decisão.
Daí a importância maior do desate final, havido dia 7 de novembro de 2019 por meio do julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44 pelo Plenário do STF — palco próprio para aquilatações de questões dessa magnitude e impacto social — cujo resultado proclamado, por decisão majoritária de votos (6 a 5), deu pela constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal. Este afirma que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado, em exata harmonização com o artigo 5º., inciso LVII, da Carta da República, a prestigiar o princípio da inocência ou da não culpabilidade.
Vale dizer, a maioria dos membros da mais alta corte de justiça do país, enquanto guardiões da Carta Magna, nada mais fizeram do que, no estrito cumprimento do dever judicante, decidir pela procedência dos pedidos formulados nas ações diretas de controle constitucional. Estes que ambicionavam o reconhecimento expresso da constitucionalidade do referido dispositivo processual penal que, em tudo e por tudo, replica, às inteiras, o postulado da presunção de inocência e rechaça a hipótese de execução provisória da pena para resguardar, com grau de definitividade e segurança jurídica, um dos maiores direitos da pessoa humana, qual seja, o direito à liberdade e o de recorrer, até final deslinde da controvérsia penal, a fim de reverter eventual injustiça ou antijuridicidade cometida em primeira ou segunda instância de julgamento.
Em que pese revelar-se perfeitamente razoável o reclamo da sociedade leiga acerca do desfecho havido no STF , motivado pelo sentimento de impunidade que se irradia do resultado proferido, o fato jurídico insofismável é que o legislador constituinte originário optou por adotar regra garantista inabalável — no campo dos direitos e garantias fundamentais — segundo a qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Frise-se que o texto constitucional é de clareza solar, e, respeitado entendimento diverso, não comporta — com honestidade intelectual daqueles que se debruçam de forma isenta sobre o tema — qualquer flexibilização em sua interpretação ou aplicação ao caso concreto.
O resultado do julgamento não poderia mesmo ter sido diferente e o STF teve a oportunidade ímpar de reverter a equivocada e anti-republicana posição jurisprudencial dantes adotada em detrimento do Estado Constitucional Democrático de Direito.
É eloquente — e vale ser reproduzida — a irresignação do ministro Celso de Mello: reflete preocupante inflexão hermenêutica de índole regressista no plano sensível dos direitos e garantias individuais, retardando o avanço de uma agenda judiciária concretizadora das liberdades fundamentais. Que se reforme o sistema processual, que se confira mais racionalidade ao modelo recursal, mas sem golpear um dos direitos fundamentais a que fazem jus os cidadãos de uma república.
Agora, vem à baila a proposta de congressistas para alteração do texto constitucional — por intermédio de emenda à Constituição Federal — com o fito de autorizar a prisão em segunda instância.
As propostas, entretanto, não merecem reflexão maior a fim de considerá-las corretas ou inadequadas do ponto de vista jurídico, na medida em que — com todas as vênias necessárias — cuidam-se de iniciativas impróprias, e, sobretudo, inconstitucionais, por vício insanável que as acometem já em seu nascedouro.
Entrementes, o entendimento favorável à execução provisória da pena — presente o atual cenário constitucional — ganha contornos de populismo político em nítida subversão da ordem jurídica, tornando tábula rasa um dos mais fundamentais mandamentos constitucionais de proteção do indivíduo, em combate ao arbítrio e ao abuso do Estado punitivo: a presunção de não culpabilidade.
Com efeito, o indigitado comando constitucional foi erigido à categoria de cláusula pétrea, na forma do artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição Federal, ao estabelecer que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.
E a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 410/2018, do deputado federal Alex Manente (PPS/SP), que aguarda deliberação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), promove inaceitável tentativa de mitigar a presunção de inocência enquanto condicionante da execução da sentença penal condenatória ao julgamento de segunda instância, por equivaler à completa aniquilação do referido preceito republicano, ou, na letra do texto constitucional, em sua abolição.
Confira-se a proposta legislativa: “Art. 5º. (…) LVII – ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.
Em igual sentido, vai a PEC 5/2019, em curso no Senado Federal e proposta pelo senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR). Por via transversa e notória burla à sistematização constitucional, também busca eliminar a presunção de inocência, ao inserir o inciso XVI no art. 93 da Constituição Federal, para positivar a possibilidade de execução provisória da pena, após a condenação por órgão colegiado, sem que o preceito guarde, nesse capítulo, qualquer pertinência temática, já que inserida em passagem resguardada à organização do Poder Judiciário.
Não se desconhece que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, inclusive para alterarem o texto constitucional, a denominar o poder derivado constituinte, tal como previsto nos artigos 1º., parágrafo único e 60, da Constituição Federal.
Contudo, não se pode perder de vista que o exercício desse poder reformador deve observar os termos e limites expressos ou implícitos contidos na Constituição Federal.
O ilustre ministro do STF e doutrinador constitucional Alexandre de Moraes — em que pese ter se pronunciado pela possibilidade da prisão em segunda instância — esgota o tema ao analisar a vedação de alteração das matérias qualificadas como cláusulas pétreas, conforme se extrai do voto proferido na ADI 5058/DF, ao registrar que, “mutatis mutandis”: “O Poder Constituinte derivado está inserido na própria Constituição, pois decorre de uma regra jurídica de autenticidade constitucional e somente conhece as limitações constitucionais expressas e implícitas.
O poder de o Congresso Nacional alterar a Constituição Federal é derivado porque retira sua força do Poder Constituinte originário; subordinado porque se encontra limitado pelas normas expressas e implícitas do texto constitucional, as quais não poderá contrariar, sob pena de inconstitucionalidade; e, por fim, condicionado porque seu exercício deve seguir as regras previamente estabelecidas no texto da Constituição Federal.
Não há dúvidas, portanto, de que, no exercício do legítimo poder constituinte derivado reformador, denominado por parte da doutrina de competência reformadora, o Congresso Nacional pode alterar o texto constitucional, respeitando-se a regulamentação especial prevista na própria Constituição Federal. Entre as limitações expressamente previstas pelo texto constitucional, estão as `cláusulas pétreas´, pois não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais”.
Assim, mostra-se inescapável concluir que a imutabilidade da não culpabilidade somente poderá ser apreciada, votada e implementada por meio de uma nova Constituição, a fim de alterar tão fundamental direito do cidadão, o que se espera, em verdade, nunca ocorra.
*Adib Abdouni é advogado constitucionalista e criminalista