Revista online | A frente democrática, aqui e agora

Esperança e mudança foram alguns dos anseios da frente democrática que lutou pela redemocratização do Brasil | Foto: Reprodução
Esperança e mudança foram alguns dos anseios da frente democrática que lutou pela redemocratização do Brasil | Foto: Reprodução

Luiz Sérgio Henriques*, exclusivo para revista Política Democrática Online

“Brasileiro, profissão esperança” – era assim que costumávamos nos autodefinir, na trilha do belo musical de Paulo Pontes sobre Dolores Duran e Antônio Maria, ainda nos anos 1970. A ditadura, afinal, era como que “externa” a nós, imposta de fora. Não a queríamos, só éramos forçados a suportá-la. O que talvez explique certo pessimismo hoje disseminado é a descoberta – terrível – de que a esperança não é necessariamente nossa profissão e muito menos a segunda natureza. De dentro de nós mesmos, de pessoas como nós – amigos, parentes, vizinhos – podem brotar dezenas de milhões de votos capazes de jogar o país, como jogaram em 2018, nos braços da extrema-direita. Uma escolha, historicamente desesperada, de quem quer voltar atrás no tempo, negar conquistas, fugir a incertezas e desafios.

A experiência da luta contra o regime ditatorial nos educou, é verdade, mas é preciso entender bem o que houve. Aprendemos, por exemplo, que o “centro político” é um conceito essencial, pois nele se cruzam, se chocam e, também, se conciliam as tendências fundamentais de toda uma conjuntura. O centro não é um termo médio amorfo, um espaço povoado por mornos ou desmotivados para a luta, mas, sim, o elo que é preciso pegar firmemente com as mãos para fazer mover, num sentido ou no outro, o conjunto das forças políticas e a própria sociedade. De nada adianta autoexilar-se num gueto, batendo a mão no peito e apregoando a condição de “verdadeira” esquerda – condição talvez sincera, certamente impotente.

Considerar aquele centro como terreno estratégico define a questão da hegemonia e das forças que se credenciam para dirigir as demais numa dada circunstância. Na ditadura, o sentido da luta contra o voto nulo e pela valorização das eleições foi precisamente este: animar um centro organicamente comprometido com a redemocratização do país, no qual pudessem convergir forças e personalidades variadas, inclusive as que paulatinamente se destacavam do regime – Teotonio Vilela, Aureliano Chaves ou José Sarney. E havia uma esquerda, uma parte dela ao menos, que dava legitimidade a este movimento progressista, que desaguaria na Constituição de 1988.

Na situação de agora, um motivo de desesperança – ou, se quisermos, uma interrogação para a qual ainda não temos resposta – decorre da incerteza sobre o principal partido da esquerda, sua linha básica e a orientação dos seus simpatizantes, que não foram “treinados” na política de frente. Será que basta acenar simbolicamente para o centro, escolhendo, tal como em 2002, um vice-presidente “conservador” para compor a chapa? A intenção será só a de “acalmar os mercados”, sugerindo relações de “paz e amor”? Ou, ao contrário, haverá algo de novo na ação institucional e na definição de políticas que não copiem o velho desenvolvimentismo?   

A inquietação, na verdade, não deve ser estranha ao próprio núcleo da campanha petista. O senador Randolfe Rodrigues demonstra instinto apurado quando constata a reconstituição de um poderoso bloco em torno de Bolsonaro, militares e Centrão (“Bolsonaro vencerá se Lula não for mais plural”, Metrópoles, 03.04.2022). Um conjunto que não está suspenso no ar, uma vez que esta extrema-direita no poder tem sustentação na sociedade: os 25 ou 30% que apoiam irrestritamente Bolsonaro são uma espécie de aríete antidemocrático pronto para ser acionado contra instituições-chave, como o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ou qualquer outra. E um eventual segundo mandato do atual presidente, como toda a literatura tem repetido a propósito da farta safra de populistas autoritários, seria um risco ainda maior do que tentativas canhestras de golpe, como em setembro de 2021.

Estadistas se movem audaciosamente na hora do perigo. Tomam a iniciativa de procurar desafetos, curar ressentimentos, reestabelecer pontes com adversários de ontem, sem nenhuma exceção. O senador Randolfe menciona os palanques das diretas-já, cruciais para a eleição da chapa Tancredo-Sarney e a consequente derrota do regime de 1964. A menção é pertinente porque se trata, também, de acolher forças e personalidades da direita democrática, bem como seus eleitores, em torno da candidatura oposicionista mais forte. Além do mais, aquela ação típica de estadista, se efetivada, teria um efeito pedagógico não desprezível sobre os adeptos de sempre, mostrando a estes, num momento decisivo, que a vida em democracia sempre requer embates e acordos, dissensos e consensos, com exclusão só de quem ameaça a própria convivência civil.

Ao longo dos anos, a falta desta pedagogia terá sido, em boa medida, a responsável pelo déficit de recursos que ora sentimos para vencer o adversário nas urnas e diminuir na sociedade o expressivo número de brasileiros com inclinações autoritárias. Não se pode esquecer que, com a frente democrática de antes, o país afinal pôde respirar por algumas décadas ares de “esperança e mudança”. Estas, contudo, são páginas já escritas por gente como Ulysses e Tancredo. Há outras mais, igualmente decisivas, a serem escritas aqui e agora. O feito será repetido?


Saiba mais sobre o autor

* Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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