Ainda sobre o tema do centenário da Revolução Russa, é oportuno registrar uma lacuna nas celebrações, a do pensador italiano Antonio Gramsci. Ele foi não só um dos dois marxistas mais inventivos do século 20 (o outro seria o húngaro György Lukács), mas um pioneiro ao intuir as deficiências sobre as quais assentava a experiência soviética. A crítica de Gramsci, embora implícita, tinha mais alcance que a do próprio Trótski e sua teoria do desvio burocrático.
É verdade que está saindo agora “Gramsci e a Revolução Russa” (Mórula Editorial), coletânea de ensaios de especialistas brasileiros e italianos, e que há meses foi publicado um gigantesco “Dicionário Gramsciano” (Boitempo), ambos trabalhos instrutivos, mas apologéticos, voltados a um público de iniciados e militantes.
O próprio Gramsci, porém, está mal editado. As traduções de Carlos Nelson Coutinho estão em parte esgotadas; falta, sobretudo, uma reedição crítica desse autor inesgotável. Escrita quase toda na precariedade extrema dos dez anos que passou numa prisão fascista, até ser libertado para morrer de tuberculose em 1937, aos 46 anos, sua obra são anotações iluminadoras sobre uma imensidade de tópicos, em geral culturais (como Nietzsche, sua área de origem era a filologia).
Gramsci extrapola as fronteiras de uma seita intelectual e pertence ao pensamento humano. Sua escrita, como a do próprio Marx, é plástica e imaginativa, sem aquele automatismo determinista de tantos marxistas que faz a história parecer tão viva quanto um teatro de marionetes. Sua maior contribuição terá sido enfatizar que o poder repousa sobre instrumentos coercitivos, mas nunca dispensa outra dimensão, que se expressa como persuasão e relativo consentimento.
A dimensão coercitiva concerne ao Estado, mas a “sociedade civil” (economia e instituições privadas) é o palco onde se disputa em épocas de crise a “hegemonia” (direção mental da sociedade), exercida habitualmente pelo “bloco histórico” (aliança de classes e grupos antagônicos acoplados a um mesmo modo de produção) por meio de uma ideologia elaborada pela camada de “intelectuais”.
Estes podem ser “tradicionais” (quando resquício de modos de produção extintos, que por isso aparentam autonomia social; por exemplo, o clero católico) ou “orgânicos” (quando surgem em resposta a demandas de uma classe ascendente, como técnicos, cientistas, gerentes e publicitários, no caso da burguesia). Quanto ao proletariado, seus intelectuais haveriam de se formar no partido, que assim aparece como príncipe moderno, numa releitura do precursor da ciência política, Maquiavel.
As percepções de Gramsci vão do específico (“a escola é uma luta contra o folclore”, no sentido de conhecimento irrefletido) ao mais geral, como a noção de “revolução passiva”. Trata-se das modernizações econômicas promovidas não por uma sublevação social, mas pelo próprio partido da ordem, com pouca mudança na estrutura social (“revoluções sem revolução” que o leitor da história brasileira conhece de cor e salteado).
Quando insistia que os comunistas italianos deveriam obter a hegemonia, esse intelectual cedo convertido em dirigente partidário estava oficialmente falando de uma sociedade civil superdesenvolvida, como a italiana. Mas ficava subjacente a ideia de que os revolucionários russos, vitoriosos no surpreendente assalto ao poder, teriam de se manter nele por meios cada vez mais coercitivos, porque não tiveram tempo nem interesse em conquistar consentimento.
Gramsci nunca chegou a ser um dissidente, embora suas críticas ao sectarismo criminal das lutas entre facções bolcheviques fossem conhecidas em Moscou e lhe tenham valido, nos últimos anos, isolamento por parte dos camaradas italianos. Ele definhava na prisão, escrevendo. A sobrevivência de sua obra é devida à cunhada russa, Tatiana Schucht, que salvou seus numerosos “cadernos do cárcere”.
Sua atualidade se deve ao menos a dois motivos. A esquerda, depois de tantas aventuras frustradas, entendeu que o programa socialista para a economia funciona mal e concentrou as lutas nas batalhas culturais de cunho identitário. A direita, depois de cinco décadas de hegemonia progressista, seja no âmbito mundial, seja no nacional, volta a articular um discurso cultural conservador. Gramsci é o autor por excelência da política tomada como cultura.
Com boçalidade insuperável, o promotor fascista que pediu a condenação do deputado Antonio Gramsci em 1926 escreveu que “precisamos fazer esse cérebro parar de pensar por 20 anos”. Oitenta anos depois de desaparecer, aquele cérebro continua a pensar na mente de quem o lê.