Merval Pereira: Paciência histórica

Mais fácil imaginar um país como o nosso, em uma região com uma triste história de golpes militares e ditaduras, temer uma intervenção militar do que os Estados Unidos.
Foto: Twitter/Divulgação
Foto: Twitter/Divulgação

Mais fácil imaginar um país como o nosso, em uma região com uma triste história de golpes militares e ditaduras, temer uma intervenção militar do que os Estados Unidos. Mas vivemos em tempos tão estranhos que a insistência do presidente Donald Trump em não reconhecer a derrota na eleição presidencial para Joe Biden está levando os americanos a uma situação nunca vista, a de temer um golpe para Trump continuar no poder.

A disputa não vai apenas pelo lado da Justiça, onde se decidem os embates político-eleitorais nos Estados Unidos, mas também no campo militar. A demissão do Secretário de Defesa Mark Esper, e a nomeação de assessores leais no Pentágono trouxeram para a cena política um temor que não combina com a tradição democrática americana, mas com a atuação política de Donald Trump, que não gosta dos limites que as instituições democráticas impõem ao presidente da República.

A demonstração de desapreço pela liturgia democrática não deve passar disso, uma arrogância sem resposta institucional favorável. Protagonista de memes nas redes sociais que o transformam em bobo da corte, não no rei que gostaria de ser, Trump vai se deteriorando pessoalmente, mas também a maior democracia do mundo sofre com seus arroubos.

O fato de o país continuar seu cotidiano sem grandes alterações pode ser uma demonstração, mais adiante, de que a democracia tem meios de neutralizar as bazófias de Trump sem torná-las uma ameaça real. Aqui no Brasil, à custa de crises e ameaças à democracia, conseguimos controlar o nosso Trump tupiniquim.

Bolsonaro ensaiou passos agigantados em direção a um golpe militar, fomentou um ambiente tensionado contra os outros poderes da República, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), mas foi obrigado a recuar. Não teve apoio dos militares, nem conseguiu uma mobilização popular que o pusesse em condições de desafiar as instituições.

Os inquéritos das “fake news” e sobre a tentativa de desmoralizar o Supremo e o Congresso para subjuga-los, acabaram acuando o nosso aprendiz de feiticeiro, e a prisão do famigerado Queiroz teve o dom de convencê-lo de que a cadeia era uma possibilidade real. Nos Estados Unidos, Donald Trump foi alvo de um processo de impeachment que acabou bloqueado no Senado de maioria republicana. Aqui, Bolsonaro tem dezenas de pedidos de impeachment guardados na gaveta do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia.

Já houve clima político para tal decisão drástica, agora já não há mais. Apoiado pelo Centrão, o presidente Bolsonaro já não precisa temer um processo político, mas parece inevitável que venha a ter problemas políticos-policiais em relação a seus filhos, já que o presidente da República não pode ser processado no cargo, a não ser por fatos que tenham a ver diretamente com seu mandato.

As “rachadinhas” nos gabinetes dos filhos na Assembléia Legislativa do Rio, na Câmara de Vereadores e na Câmara dos Deputados estão sendo investigadas, e cada vez mais as apurações levam a desvendar uma armação financeira que fez da família Bolsonaro beneficiária de remunerações ilegais. Assim como Trump, cuja resistência maior em deixar a Casa Branca tem a ver com os problemas judiciais que vai enfrentar nos seus negócios particulares ao perder a imunidade presidencial, também Bolsonaro e os filhos têm contas a prestar com a Justiça.

Em meio a mais uma onda de protestos contra a postura de Bolsonaro diante da pandemia, que poderia resultar teoricamente em um processo de crime de responsabilidade, uma voz experiente se levanta para apoiar a cautela com que Rodrigo Maia vem tratando o assunto.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso classificou como “um desastre” a comemoração de Bolsonaro após a interrupção dos testes da vacina que o Instituto Butantan está realizando com a CoronaVac chinesa. Mas receitou “paciência histórica” para aguentar Bolsonaro no governo por mais dois anos, e derrotá-lo nas urnas, como aconteceu com Trump nos Estados Unidos.

Correção
Ontem, cometi um erro na coluna pelo qual me penitencio. Bolsonaro era tenente, não major e, indo para reserva, virou Capitão. Já corrigi ontem mesmo na edição digital.

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