Brasil corre o risco de ficar isolado se não rever suas posições de política externa
A vitória de Joe Biden nos Estados Unidos criou a expectativa de uma nova abordagem do governo americano em relação às instituições multilaterais e aos acordos de comércio. Se espera que o presidente eleito ajude o país a voltar a uma situação de “normalidade” quando se trata da inserção dos EUA em um sistema de cooperação internacional que eles mesmos ajudaram a criar e que foi sistematicamente torpedeado por Donald Trump nos últimos quatro anos.
O papel ativo de Biden em favor do multilateralismo, para fortalecer o trabalho conjunto dos países em áreas como sustentabilidade ambiental, saúde e comércio, não vai evitar, porém, que os Estados Unidos continuem a aplicar medidas pontuais de proteção para setores da economia americana.
“É preciso ter clareza de que, independentemente de o governo ser republicano ou democrata, os EUA sempre vão defender o que é percebido como interesse comercial do país, o que leva em conta lobbies de setores”, diz a economista Sandra Rios, diretora do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes).
Uma diferença importante agora, no entanto, é que os EUA vão fazer a transição de um governo declaradamente protecionista e antiglobalização, sob o comando de Trump, para uma administração que tem apreço pelos mecanismos de concertação internacional, visão essa reforçada nos próprios discursos de Biden.
“Não é que o Brasil e o comércio exterior brasileiro vão ter vida fácil com Biden”, diz Sandra. Mas, na visão dela, o presidente eleito americano pode ajudar a criar novas condições para o sistema multilateral e para o comércio global, mudanças essas que também podem ser positivas para o próprio Brasil.
Historicamente, nos EUA, os democratas sempre foram vistos como mais protecionistas em matéria de comércio que os republicanos. Essa ideia se vincula ao fato de que a visão de economia dos republicanos sempre foi mais liberal e menos intervencionista, o que combinava com uma política mais “pró-comércio”, diz Sandra. Mas mesmo em governos republicanos houve medidas de proteção a determinados setores como no caso do alumínio e do aço. Também houve casos de aplicação de medidas antidumping e de direitos compensatórios para setores independentemente do viés político (democrata ou republicano).
A novidade com Trump foi ter incorporado o protecionismo ao discurso. Passou a ideia de que exportar era bom e importar era ruim, uma vez que contribuía para destruir empregos da indústria americana. Houve também a adoção de medidas unilaterais, muitas delas em desacordo com compromissos assumidos na Organização Mundial do Comércio (OMC). Prevaleceu o uso da força, do poder econômico, para implementar essa agenda, diz Sandra.
Com Biden, espera-se uma guinada a começar, por exemplo, pelo retorno dos EUA ao Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, do qual o país saiu por decisão de Trump. Outro tema pendente é a reforma da OMC, que deve avançar a partir da chegada de Biden ao poder. Os americanos têm interesse em mudar alguns dos instrumentos da organização com os quais não se sentiam confortáveis já no fim da administração de Barack Obama, como é o caso do Órgão de Solução de Controvérsias.
Também há expectativa de que os EUA voltem ao Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, na sigla em inglês), o que pode ter impactos negativos para os produtos brasileiros uma vez que a exportação do Brasil para os países do acordo, sobretudo no agronegócio, concorre com itens vendidos pelos EUA.
Ainda será preciso ver como o Brasil se posiciona frente a essas mudanças esperadas pela comunidade internacional e também diante da própria administração Biden, sobre a qual Bolsonaro “calou” desde que os resultados eleitorais mostraram a vitória do democrata no fim de semana. Desde o início da gestão, em 2019, o governo Bolsonaro adotou retórica antiglobalista, seguindo os passos de Trump.
“O Brasil deveria fazer a releitura das suas posições de política externa à luz dos novos desdobramentos [a eleição de Biden]. Em contexto em que se fica isolado, não faz sentido manter a posição. Só faz sentido quando se está seguindo um líder, do contrário seremos conduzidos a uma posição de isolamento ainda maior. O Brasil vai tocar essa música sozinho agora?”, questiona o embaixador Marcos Caramuru, que esteve à frente da embaixada brasileira em Pequim entre 2016 e 2018.
Caramuru acredita que ainda há muitas indefinições. Por exemplo, os EUA, na gestão Biden, vão retirar de forma seletiva tarifas impostas a países na administração Trump? Vão reduzir tarifas para produtos chineses, o que poderia levar a China a fazer o mesmo? Qual será a postura em relação à tecnologia e ao 5G? O que está claro, diz o embaixador, é que com Biden haverá mais espaço para diálogo e cooperação incluindo temas como ambiente e proliferação de armas nucleares.
O embaixador José Alfredo Graça Lima pensa de forma semelhante. Diz que, com o tempo e com maior respeito para com os organismos multilaterais, existe a esperança de que os EUA se insiram novamente em uma “normalidade” dentro desse sistema em que foram cofundadores. “Sustento que os americanos não se tornaram protecionistas nos últimos quatro anos, mas recorreram via presidente e USTR [representante comercial dos EUA] a medidas que eram típicas da pré-rodada Uruguai do GATT [instância que antecedeu a OMC] em que os Estados Unidos aplicavam medidas unilaterais e não tinham propensão para o diálogo sobre regras multilateralmente acordadas”, diz Graça Lima.
O embaixador vê as mudanças de forma positiva para o Brasil porque obrigam o governo a tratar com a contraparte americana dando prioridade a relações institucionais. “Leva a atuar de forma protocolar, o que é bom na relação entre Estados. Relação entre Estados tem que ser feita por estadistas, indivíduos que tenham objetivos específicos, o que é feito por diplomacia. A diplomacia presidencial pode dar muitos frutos, mas depende de como o diálogo é tocado”, diz Graça Lima. Um dos desafios do Brasil será se inserir mais no comércio global. “Ainda somos muito voltados para dentro”, diz o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro.