Certamente o fator decisivo para a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump foi a capacidade do ex-vice-presidente de encarnar o que mais os Estados Unidos precisam hoje, um conciliador. O caminho para derrotar um extremista de direita não é um extremista de esquerda, e por isso Bernie Sanders se perdeu pelo caminho durante as primárias, e Biden recuperou sua vantagem moral com os votos dos negros na Carolina do Sul.
O mesmo pode acontecer entre nós. O famoso efeito Orloff, eu sou você amanhã. Se em 2018 o eleitorado queria sangue nos olhos, e por isso o PT ainda conseguiu levar seu candidato Haddad ao segundo turno, menos por ele, que é um moderado, mais pela história do partido, radicalizado pela prisão do ex-presidente Lula, talvez não seja esse o cenário em 2022.
Essa tensão permanente que Trump impunha aos Estados Unidos e ao mundo cobra seu preço, assim como aqui entre nós Bolsonaro já teve que dar uma meia trava em sua beligerância. Trump e Bolsonaro têm os mesmos arroubos autoritários que acabam sendo uma ameaça à democracia que lhes proporcionou chegarem onde chegaram.
Ambos se batem contra as instituições democráticas que limitam os poderes de um presidente da República, como sói acontecer na democracia ocidental. Ambos se colocam contra a imprensa livre e tentam constrangê-la com ataques e críticas. Agora, nos Estados Unidos, Trump viu-se na condição de censurado a bem da verdade pelas três redes de televisão aberta do país, uma atitude drástica que mostrou a que ponto de conflito as relações do presidente com os órgãos de imprensa chegaram.
Os conflitos estimulados, a violência tolerada, como Trump com os supremacistas brancos e Bolsonaro com os radicais que cercaram o prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) e ameaçavam o fechamento do Congresso, acabam cansando os cidadãos comuns, que não estão em guerra com o mundo e buscam um ambiente pacífico para viver, especialmente empregos para trabalhar.
Ser popular não requer usar camisas de times de futebol, nem oferecer pão com leite moça a uma autoridade que o visita. Nem fazer piada homofóbica, estimulando pelo exemplo um hábito brasileiro que deveria ser erradicado. Seria preciso uma política econômica que gerasse empregos, uma atitude séria diante da pandemia da Covid-19, um governo sólido que desse aos cidadãos confiança no futuro.
A popularidade de Trump levou o Partido Republicano a ter uma votação histórica, com a possibilidade de manter a maioria no Senado. Mas para Trump, a perda da presidência é uma dor pessoal, não partidária, assim como Bolsonaro já pertenceu a cerca de 10 partidos e continua à disposição de qualquer legenda que lhe ofereça submissão total. Não são políticos a serviço do país, mas deles mesmos.
Diz-se em política que presidência é destino. No Brasil, temos exemplos vários disso, com Collor, Itamar, Sarney, Temer, o próprio Bolsonaro, que nunca sonharam em ser presidente e chegaram lá por caminhos diversos. Com Joe Biden, essa premissa se confirma. Concorreu três vezes dentro de seu partido, quatro anos antes deveria ter sido o candidato natural após os oito anos de vice-presidência, mas as forças políticas dos democratas levaram Hillary Clinton a ser a candidata contra Trump.
Biden chegou a presidente quando menos se esperava, aos 78 anos, mas com o perfil talhado para derrotar o arrogante autoritário que havia chegado à Casa Branca também fora de qualquer possibilidade previsível. Populistas escrachados como Trump ou Bolsonaro apenas aproveitam-se das fragilidades da população para vender ilusões e alimentarem seu autoritarismo. Falta-nos, no momento, uma figura que represente o político de centro-esquerda que Biden encarna, um político confiável como já tivemos, que represente a solidez de uma carreira dedicada à conciliação e ao combate à desigualdade.