As redes sociais deviam ser um instrumento de conhecimento, como a ciência
Miles Taylor, ex-chefe de Gabinete do Departamento de Segurança Interna dos EUA, acaba de se identificar como autor do artigo publicado como anônimo pelo “New York Times” há cerca de dois anos. No artigo, que o jornal informava apenas ter sido escrito por um colaborador do presidente, Taylor dizia que Trump era contraditório, mesquinho, ineficaz, amoral, um risco para as instituições democráticas do país. Na época, Trump mandou abrir investigação entre seus funcionários para descobrir o autor. Agora, Taylor pediu demissão de seu cargo, sem nunca ter sido descoberto.
Ainda no mundo do inesperado, Donald Trump, depois de empossado, demitiu de sua assessoria o famoso Steve Bannon, criador do sistema de fofocas e mentiras virtuais, as célebres fake news que, pelas redes sociais, o haviam elegido. Demitido, Bannon se mandou para a Itália, onde foi assessorar o populismo de direita que tomou o poder com o Movimento 5 Estrelas e a Liga. Reclamando do tratamento de Trump, Bannon foi consolado por fãs e discípulos de todo o mundo. Como Eduardo Bolsonaro, que o visitou e prestou homenagens ao mestre.
O reencontro de velhos inimigos jurados, assim como desavenças definitivas entre aliados de sempre, é mais ou menos uma constante na prática política de hoje em dia. Podíamos simplificar, dizendo que essa é uma das consequências do moderno embaralhamento ideológico. Ou do fim das ideologias com rigor de catecismo. Mas há outras razões, além dessas.
A BBC News revelou recentemente os termos de explosivo memorando interno da cientista de dados Sophie Zhang, ex-funcionária do Facebook. Com o título de “Tenho sangue nas mãos”, Zhang se queixava de não ter podido ou não ter tido tempo de acessar certos países, em vista de eventos antidemocráticos que neles viu acontecer. Diz ela: “Nos três anos que passei no Facebook, encontrei várias tentativas de governos nacionais de abusar da plataforma para enganar seus cidadãos e criar notícias internacionais que serviam a eles”. Aquelas famosas e genéricas fake news.
Zhang citava exemplos de manipulação política, no período em que esteve no Facebook. Como as 10,5 milhões de falsas reações de falsos seguidores, removidas de perfis de políticos de destaque no Brasil, durante a campanha presidencial e, nos EUA, durante as eleições legislativas de 2018. Além disso, o Facebook levou nove meses para agir, diante das informações sobre o uso de robôs (bots) para impulsionar o presidente de Honduras. Contas falsas e robôs também foram registrados na Bolívia e no Equador. Tudo do conhecimento do Facebook, que não fazia nada, segundo Zhang, devido à “carga excessiva de trabalho”. E Mark Zuckerberg demorou a entender a manipulação política de sua rede social.
Durante a pandemia, Zhang descobriu e removeu 672 mil contas falsas, que atuavam contra ministros da Saúde do mundo inteiro. A jornalista Carole Cadwalladr, do Reino Unido, já havia denunciado o uso manipulado de dados do Facebook pela consultoria Cambridge Analytica, pivô na eleição de Trump e na campanha do Brexit. “A velocidade e a escala de danos que o Facebook está causando às democracias em todo o mundo são verdadeiramente aterrorizantes”, escreveu. Zhang recusou perto de US$ 100 mil para não dar conhecimento público de seu memorando. Ela mesma tratou de divulgar seu conteúdo.
Quando penso na conquista do mundo pela nova cultura digital, penso logo na invenção de Gutenberg e no sucesso dela no Renascimento. As redes sociais deviam ser um instrumento de conhecimento, como a ciência e a literatura, o iluminismo e um novo humanismo, as ideias que refundaram a humanidade naquele período. Uma nova versão do mundo, pelo conhecimento e pela cultura, de como somos e de como queremos ser. Em vez disso, estamos deixando que se transformem em difusão de consumo imposto e de horror político, contra a busca da verdade e a democracia. Não podemos permitir que essa nova cultura, fruto da inteligência, da ciência e da inspiração humanas, se consolide como intervenção demoníaca em nossa civilização.
Já estava fechando este artigo, quando me ocorreram os versos de Vinícius de Moraes, citados na nova encíclica do Papa Francisco, publicada no dia de outro Francisco, o santo dos pobres: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.