Ao que tudo indica, nesta terça-feira (3) Donald Trump se tornará um presidente de um mandato só. As pesquisas são favoráveis a Biden, e, se elas errarem só o que erraram em 2016, Biden ainda ganha. O site 538, do estatístico norte-americano Nate Silver, dá a Trump pouco mais de 10% de chance de vencer a eleição. Não é zero. É o risco de morte de quem faz roleta-russa com uma arma de dez tiros. Mas é pouco.
É possível que Trump não aceite a derrota e tente ganhar no tapetão. Grande parte da votação já ocorreu por correspondência, por causa da pandemia. Trump pode sair em vantagem no início da contagem, quando os votos por correspondência ainda não tiverem sido totalmente contados.
No cenário golpista, declararia vitória enquanto estivesse na frente e montaria uma ofensiva jurídica para interromper contagens estaduais por um motivo ou outro. Para isso contaria com sua recém-adquirida maioria na Suprema Corte e com os juízes federais que nomeou nos últimos anos. Temendo conflitos de rua em caso de impasse, a rede de supermercados Walmart interrompeu a venda de armas até a confusão passar.
Não é o cenário mais provável, até porque há uma chance razoável de Biden vencer por margem incontestável. Mas o fato de que uma eleição possa terminar em conflito civil generalizado mostra o tamanho do dano que Donald Trump já causou ao ambiente cívico americano. Se a roleta-russa der errado e Trump vencer nesse clima de radicalização, o dano pode ser ainda maior.
A vitória de Trump em 2016 foi um marco decisivo da onda populista reacionária que já havia começado antes, em lugares como a Hungria e a Polônia, mas que chegou ao centro do capitalismo internacional com o brexit.
As negociações do brexit vão mal. E, sem o Reino Unido, deve crescer a pressão por uma federação europeia mais centralizada, o que não é boa notícia para os radicais poloneses e húngaros.
A maré está virando? O grande porre mundial da década de dez está passando?
Mesmo se virar, nenhum dos problemas que criaram a onda populista terá sido resolvido. A desigualdade continua alta. A desindustrialização de áreas inteiras do mundo desenvolvido (e do Brasil) continuará difícil de reverter. Como as crises da pandemia deixaram claro, a desconfiança com relação aos especialistas não vai embora da noite para o dia.
As notícias falsas, a política difícil das redes sociais, tudo isso ainda continuará existindo. A tensão entre Estados-nação e capitalismo global não desapareceu, muito pelo contrário.
Por outro lado, é possível ter esperança, ao menos alguma esperança, de que certas soluções idiotas para esses problemas serão descartadas. Não, não foi o encanador polonês que tirou o emprego do mineiro britânico.
Não, Trump não tinha uma alternativa ao Obamacare que preservava tudo que o programa tinha de popular e descartava tudo que tinha de impopular. Não, Bolsonaro não era inimigo da corrupção, nem a corrupção era a causa da crise econômica brasileira.
De qualquer maneira, ao que tudo indica, amanhã a democracia americana vai para o rehab. Lá os grandes partidos sobreviveram, a volta ao normal deve ser mais fácil. Nós, que decidimos não derrubar Bolsonaro em 2020, seguimos fincando pé na cracolândia por mais dois anos, agora como párias internacionais.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).