Vargas Llosa candidata-se a ser, com todas as honras, o Balzac das ditaduras cucarachas
Saudei aqui, em 2006, a eleição de Evo Morales, a grande esperança chola de um país que, até então, sofrera cerca de 200 golpes de Estado em 175 anos de história. Cholos são os índios aculturados da Bolívia. Morales não os decepcionou: a desigualdade social diminuiu bastante, o PIB subiu de forma surpreendente. Muitos criollos (brancos descendentes de colonos europeus), donos seculares daquelas terras e riquezas, desdobraram-se na manutenção de seus privilégios e do recorde golpista boliviano, fazendo Morales pagar bem caro pela teimosia de um mandato a mais – o quarto.
Se antigamente os gringos cobiçavam a prata e, depois, o gás dos bolivianos, agora em jogo também figuram as maiores reservas de lítio do mundo. Combustível básico das baterias de celulares e dos carros elétricos, o lítio virou o pré-sal da Bolívia.
Poucos meses atrás, quando começou a balançar o coreto da direita (Áñez, Camacho e Mesa) que tomou conta do poder após derrubar Morales, o fundador da fábrica de carros elétricos Tesla Motors, Elon Musk, temeroso de perder a mamata do lítio, ameaçou, ele próprio, uma nova virada de (sem trocadilho) mesa. “Vamos dar um golpe em quem quisermos!”, fanfarronou o empresário. Ridículo. Musk foi um dos mais gozados pela lídima vitória eleitoral do candidato de Morales, Luis Arce, no último fim de semana.
Minha recolhida celebração da segunda “vitória chola” coincidiu com a leitura do novo romance de Mario Vargas Llosa, Tempos Ásperos, traduzido pela Alfaguara. A rigor, só mudei de país: da Bolívia para a Guatemala, ambos com majoritária população indígena e passado, presente e vilões similares. Vilões adventícios e autóctones, de ternos e fardados, com e sem armas de fogo. Nas repúblicas bananeiras da América Latina, férteis em bananas e outras riquezas vegetais e minerais, as palavras golpe e militar são como irmãos siameses, inseparáveis.
(Sempre que algo palpitante rende manchetes à Guatemala, eu me lembro de uma hilariante chamada do telejornal que o comediante Chevy Chase apresentava no humorístico Saturday Night Live, nos anos 1970: “Um terremoto de grande intensidade atingiu ontem a Guatemala, matando 350 ditadores militares”).
O romance de Vargas Llosa conta a história de um deles, o tenente-coronel Carlos Castillo Armas que, em 1954, à frente de um exército de mercenários financiado pela CIA, tirou da presidência da Guatemala o coronel Jacobo Árbenz Guzmán, eleito democraticamente em 1950. Começava ali a longa cruzada golpista dos EUA ao sul do Rio Grande, alimentada pela Guerra Fria e arquitetada pelos sinistros irmãos John Foster e Allan Dulles, respectivamente secretário de Estado e diretor da CIA do governo Eisenhower, dois falcões obcecados com a União Soviética e o “avanço do comunismo” mundo afora. Pelos estragos que causaram, esses dois mereciam um círculo especial no Inferno de Dante.
Tempos Ásperos é, de certo modo, uma complementação de A Festa do Bode, que o escritor peruano escreveu sobre o ditador dominicano Rafael Trujillo, 20 anos atrás. Vargas Llosa candidata-se a ser, com todas as honras, o Balzac das ditaduras cucarachas.
Déspotas fardados é o que não falta na história do continente; todos “cavernícolas fanáticos” do anticomunismo, quase todos irremediavelmente corruptos e ocasionalmente assassinados. Trujillo, por sinal, aparece no livro, assim como outro assassinado, Anastasio Somoza, que permitiu o treinamento dos mercenários da Castillo Armas na Nicarágua, pois a invasão foi uma operação consorciada pelos tiranetes da região subservientes aos interesses econômicos, ideológicos e geopolíticos dos EUA.
Árbenz Guzmán era um militar honesto, reservado, caladão (daí o apelido de “Mudo”), apenas interessado em aclimatar ao país uma democracia moderna à americana, com imprensa e eleições livres e concretizar uma eficiente reforma agrária, também os anseios de seu antecessor, o educador Juan José Arévalo, de quem Guzmán foi ministro da Defesa.
O coronel legalista enfrentou mais de trinta tentativas de golpe contra Arévalo, demonizado, sem pudor nem fundamento, como títere do comunismo soviético. Essa mesma aleivosia seria lançada contra Guzmán pela máquina de mentiras e meias-verdades manipulada da CIA e disseminadas na imprensa amiga pelo embaixador americano na Guatemala, John Peufiroy, que não ganhara o apelido de “açougueiro da Grécia” por eventuais obras beneficentes em Atenas, seu posto anterior.
Em janeiro de 1954, Peufiroy insinuou à revista Time que o comunismo avançava célere na Guatemala. No mês seguinte, falsas armas soviéticas “destinadas à Guatemala” apareceram, misteriosamente, na Nicarágua. Tais patranhas eram as fake news da época, inventadas e orquestradas por um ancestral de Steve Bannon chamado Edward Bernays.
Pioneiro da propaganda e do serviço de relações públicas, Bernays era o braço direito do magnata das bananas Samuel Zemurray, dono da United Fruit, que, embora tivesse conseguido do governo guatemalteco um bom preço pela compra de parte do seu gigantesco latifúndio, não abriu mão do golpe.
Em 18 de julho, Guzmán foi derrubado e exilou-se no México, onde viveu até morrer, em 1971. O traiçoeiro coronel Castillo Armas, “figura apagada que passou pela Escola Militar sem glória nem brilho”, enterrou o país, mas não chegou ao fim de sua ditadura, interrompida em 1957 quando um guarda da presidência o despachou para os quintos do inferno.
*É jornalista e escritor, autor de ‘Esse mundo é um pandeiro’