Sabatinas conferiram a Trump derrota no quesito pelo qual é obcecado: a audiência
O site satírico The Babylon Bee tem por autodefinição divulgar “fake news em que você pode confiar”. Ele é inspirado no mais anárquico The Onion, venerado por pregar peças em incautos desavisados. Em 2012, o jornal do Comitê Central do Partido Comunista da China reproduziu na íntegra e a sério a escolha do camarada Kim Jong-un como Homem Mais Sexy do Mundo, competição inventada pelo Onion. Segundo os humoristas, o homem-forte da Coreia do Norte fazia jus ao título por uma soma de atributos: “Com suas feições arredondadas, charme juvenil e porte garboso, este crush nascido em Pyongyang é o sonho acabado de toda mulher. Dotado de uma aura de poder que esconde um lado carinhoso, Kim encantou nosso conselho editorial com seu impecável faro fashion, corte de cabelo ímpar e, é claro, seu famoso sorriso”.
O Babylon Bee consegue fazer humor republicano, conservador, com frequentes cutucadas no Partido Democrata. Exemplo recente: “Para prevenir incêndios florestais, o governador da Califórnia ordena o uso de máscara a todas as árvores do estado”.
Talvez por isso Donald Trump tenha baixado sua guarda e expôs-se ao ridículo de retransmitir como verdadeira uma “notícia-bomba” da turma do @The BabylonBee. A postagem anunciava que o CEO do Twitter, Jack Dorsey, havia simplesmente retirado do ar sua rede social, evitando, assim, a circulação de revelações danosas ao candidato democrata Joe Biden. “Dorsey quebrou a caixa de vidro instalada em seu escritório, para emergências de publicidade prejudicial aos Democratas, e acionou a marreta no interior da caixa destinada a destruir o servidor geral. Alerta vermelho, alerta vermelho”, dizia a postagem dos humoristas. Trump, talvez atarantado pelo duelo à distância com Biden da noite anterior, não só acolheu a “notícia-bomba”, como manifestou sua indignação, acrescentando que algo assim jamais havia sido feito na história das redes sociais.
Como se sabe, o segundo debate entre os dois candidatos fora cancelado tanto no formato presencial, quanto na alternativa online, recusada pelo presidente. Do impasse resultou a anomalia de cada um ser submetido a uma sabatina presencial com eleitores, mas à distância — Trump em Miami, Biden na Filadélfia. Com os dois eventos agendados para o mesmo horário, com transmissão ao vivo por canais distintos, só mesmo uns poucos com destreza de gamer conseguiram acompanhar as duas performances. Ou então com uma smart TV com split screen, como anunciam os fabricantes. Coisa para poucos. A maioria teve de optar.
O duelo à distância conferiu a Trump uma derrota amarga no quesito pelo qual é obcecado desde os tempos de “O Aprendiz” — e que independe de opinião: o tamanho da audiência. Segundo o instituto Nielsen, 13,9 milhões de telespectadores sintonizaram na ABC com Joe Biden. A audiência do presidente na NBC ficou quase 1 milhão abaixo.
Na verdade, o evento em separado acabou simbolizando a divisão da nação em dois planetas políticos inconciliáveis. Na forma, no tom, no desenlace e no conteúdo, cada chefe da respectiva tribo mostrou o que pode e escondeu o que não quis mostrar.
A conversa de Trump durou uma hora. Foi frenética e aguerrida, com o presidente mal acomodado num banquinho alto. À sua frente, a implacável Savannah Guthrie, que lavou a alma da centena de jornalistas atropelados verbalmente e com regularidade pelo presidente. Guthrie impôs-se como mediadora desde o primeiro minuto. Trump suou como nunca sob as luzes fortes da TV, mas sobretudo diante daquela inquisidora de olhos azul-cobalto e terninho fúcsia. Ela não lhe cedeu espaço para escapulir, nem para abreviar a lista de perguntas que trouxera. Houve embates verbais memoráveis em torno da simpatia do presidente pelas teorias conspiratórias do movimento QAnon. Foi engraçado vê-lo obrigado a dizer a frase que lhe dá urticária: “Eu repudio a supremacia branca”. Guthrie também quis saber por que Trump retransmitira em rede social a teoria de que a versão da morte do líder terrorista Osama Bin Laden por um comando de elite americano era fajutice do governo Obama. Segundo essa fantasia, Bin Laden ainda estaria vivo, o morto teria sido um dublê dele. “Foi apenas um retuíte que eu postei. Cada um pode decidir por si (se acredita ou não nisso)”, esquivou-se Trump. Guthrie cortou, impiedosa: “O senhor é o presidente, não um tiozão biruta qualquer que retuíta qualquer coisa”.
Já no planeta Biden, o compasso e o passo eram outros. Ao longo de 90 intermináveis minutos, o candidato democrata se confundiu com algumas datas, foi evasivo e previsível em questões relevantes, claro e conciliador noutras. Difícil imaginar que tenha arrebatado algum eleitor ainda indeciso. Mas respondeu com hombridade desarmante à pergunta mais penosa neste momento de esgarçamento democrático:
— Se o senhor perder — perguntou o mediador George Stephanopoulos — o que isso lhe dirá sobre os EUA de hoje?
— Indicará que sou um péssimo candidato —respondeu Biden.
E acrescentou desejar que sua hipotética derrota não signifique também a nação estar tão dividida “quanto o presidente quer que estejamos”.
No próximo dia 22, se nada mudar, haverá um último debate real entre os dois candidatos. Fica a torcida por uma mediação que trate ambos da forma que merecem. Pode ser decisivo.