Nem mesmo o mais ingênuo dos analistas vai acreditar que qualquer proposta de reforma poderá ser discutida e votada antes do término das eleições municipais
Aconteceu o que era previsível. O calendário eleitoral deste ano se sobrepôs a todas as demais questões. A partir da próxima semana, deputados e senadores terão olhos e disposição para tratar apenas das eleições municipais. Nem mesmo o mais ingênuo dos analistas vai acreditar que qualquer proposta de reforma poderá ser discutida e votada antes do término do pleito. Entramos no recesso branco, como é chamado o período pré-eleição pelos parlamentares.
Senadores e deputados não conseguiram sequer instalar a Comissão Mista de Orçamento do Congresso, responsável por apreciar e votar a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) para 2021 e a proposta orçamentária. Isso dá uma dimensão da falta de acordo político sobre o cenário fiscal do próximo ano.
Os parlamentares estão preocupados é com a eleição de seus principais cabos eleitorais, que são os prefeitos e os vereadores de suas regiões. Neste momento de grandes disputas políticas locais, o Ministério da Economia queria que o governo encaminhasse proposta ao Congresso primeiro acabando com o abono salarial aos trabalhadores que ganham até dois salários mínimos e com o seguro-defeso, concedido aos pescadores artesanais na época da desova dos peixes. Depois propuseram a suspensão, por dois anos, da correção dos valores dos benefícios previdenciários, o que resultaria em redução, em termos reais, das aposentadorias e pensões.
Obviamente, os líderes partidários que apoiam o governo devem ter mostrado ao presidente Jair Bolsonaro que essas propostas, apresentadas pelo governo às vésperas do pleito eleitoral, significariam um suicídio político, que não estavam dispostos a cometer. Ao apresentar as propostas, a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, deu a oportunidade ao presidente de produzir um frase de grande efeito eleitoral: “Não vou tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.
Às vésperas de uma eleição, ou se apresenta propostas populares ou não se apresenta nenhuma. Há obviedades que parecem serem esquecidas, às vezes até mesmo por pessoas inteligentes e experientes. As medidas para o ajuste das contas públicas, que são duras, e para viabilizar o programa Renda Cidadã, que exigirão cortes em outras despesas, ficaram para ser discutidas após as eleições.
Depois do famoso jantar que pacificou as relações entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro Paulo Guedes, duas estratégias foram anunciadas. Em primeiro lugar, o novo programa social do governo terá que caber dentro do teto de gastos da União. Os ministros “fura teto” parece que foram, pelo menos temporariamente, contidos.
Ao mesmo tempo, abriu-se uma janela que já vinha sendo reivindicada pelos políticos desde agosto deste ano. O governo aceitou colocar na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 188, conhecida como PEC do Pacto Federativo, um dispositivo que torna permanente a possibilidade de acionar o chamado “Orçamento de Guerra”, instituído pela emenda constitucional 106 e adotado neste ano para o enfrentamento da pandemia.
Os políticos querem que as regras da emenda constitucional 106 possam ser utilizadas em qualquer situação de calamidade. Fonte do governo explicou ontem que os políticos estão temerosos com a possibilidade de uma segunda onda da pandemia da covid-19 no Brasil, como está ocorrendo atualmente na Europa. E querem se antecipar a essa possibilidade.
O artigo 11 da emenda 106 diz literalmente que a emenda entrará em vigor na data de sua publicação e “ficará automaticamente revogada na data do encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Congresso Nacional”. A interpretação de especialistas ouvidos pelo Valor é que, se o atual decreto de calamidade for prorrogado e o Congresso Nacional reconhecer o estado de calamidade, o regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações instituído pela emenda 106 continuará em vigor.
De acordo com essa interpretação, não haveria motivo, portanto, para que um novo mecanismo prevendo que o “Orçamento de Guerra” seja incluído na PEC 188, a menos que se queira fazer modificações no texto atual da emenda 106. Para que o “Orçamento de Guerra” continue em vigor, bastaria que o decreto de calamidade pública seja prorrogado e que tal situação seja reconhecida pelo Congresso Nacional.
A vontade dos políticos de incluir o “Orçamento de Guerra” na PEC 188 desperta suspeitas. Pode-se especular que o objetivo seja criar condições para a prorrogação do decreto de calamidade pública, que permitiria ao governo destinar recursos para pagar auxílios emergenciais e adotar outras medidas extraordinárias, à margem do teto de gastos e de regras previstas na lei de responsabilidade fiscal (LRF).
Qualquer que seja a intenção dos políticos em tornar permanente as regras do “orçamento de guerra” para os casos de calamidade, é preciso observar que o estado de calamidade precisará estar devidamente caracterizado, pois, do contrário, o acionamento das regras do regime extraordinário fiscal e financeiro poderá ser interpretado como fraude à Constituição.
Na verdade, o governo pode fazer despesas adicionais em 2021 fora do teto de gastos, mesmo sem a prorrogação do decreto de calamidade pública ou da existência do “Orçamento de Guerra”, desde que elas sejam destinadas a combater os efeitos remanescentes da pandemia. Para isso, o presidente da República poderá editar medida provisória de crédito extraordinário.
O “Orçamento de Guerra” autoriza o governo a segregar as despesas realizadas para o combate aos efeitos da pandemia, permite a adoção de processo simplificado de contratação de pessoal, de obras e de serviços, suspende a vigência de regras da LRF para a criação ou expansão de despesas, desde que destinadas ao enfrentamento da calamidade, e dispensa a União de cumprir a chamada “regra de ouro”, que limita o aumento da dívida pública às despesas de capital (investimentos e amortizações da dívida).