Depois do teto, próxima vítima poderá ser a autonomia do Bacen
As ambições de um político o tornam capaz de passar por cima de anos de amizade e a desprezar laços de parentesco mesmo em momentos difíceis de saúde – o que dirá em relação a compromissos com a estabilidade econômica do país.
Em 1959, Lucas Lopes era o ministro da Fazenda do presidente Juscelino Kubitschek. Companheiro fiel desde os tempos da campanha de JK para o governo de Minas, o engenheiro foi o cérebro por trás da criação da Cemig – polo indutor da industrialização mineira, que catapultou JK ao primeiro plano da política nacional – e idealizador do famoso Plano de Metas, o programa desenvolvimentista que prometeu entregar “50 anos em 5”. JK e Lucas Lopes eram tão próximos que seus filhos vieram a se casar.
Depois de presidir o BNDE (o “S” só viria a ser acrescentado no início da década de 1980), Lucas Lopes foi escalado para comandar a economia do país em meio ao desequilíbrio das contas públicas gerado principalmente pela construção de Brasília. Ao lado de Roberto Campos, concebeu o Plano de Estabilização Monetária (PEM), cujo propósito era deter o crescimento do déficit público por meio de um controle mais rígido dos gastos e aprovar uma minirreforma tributária destinada a aumentar a arrecadação, além de reduzir a expansão do crédito para aliviar a inflação. A dupla Lopes & Campos ainda planejava rever a política de incentivos para o café e iniciou negociações de um novo empréstimo junto ao FMI para evitar uma crise cambial.
Qualquer ministro da Fazenda que tenha que defender a austeridade fiscal frente a um presidente que só pensa na sua popularidade vive em permanente estresse – e o de Lucas Lopes era tão grande que ele acabou sofrendo um infarto em 30 de maio de 1959. Com o grande amigo (e futuro consogro) correndo risco de vida, JK não pensou duas vezes: nomeou o expansionista Sebastião Paes de Almeida em seu lugar, rompeu com o FMI, autorizou um reajuste no preço do café e ampliou ainda mais os gastos públicos para entregar a nova capital dentro do prazo. Se o populismo de um político não respeita nem os laços pessoais mais íntimos, não serão as instituições econômicas que o deterão.
Em 2018 foi lançado o best-seller “Como as Democracias Morrem”, escrito por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, ambos professores de ciência política de Harvard. O argumento central do livro é que líderes autoritários estariam sorrateiramente enfraquecendo as instituições ao rejeitarem as regras do jogo democrático, encorajarem a intolerância e a violência e restringirem as liberdade civis, atacando especialmente a imprensa.
Desde a campanha eleitoral, Bolsonaro vem sendo apontado como o exemplar brasileiro dessa nova safra de governantes que buscam permanecer no poder e impor suas vontades não pelo uso de tanques e metralhadoras, mas por forçarem diuturnamente as grades de proteção da democracia.
A aliança firmada com o Centrão nos últimos meses tende a arrefecer esses temores. Cada vez mais refém da “velha política” para proteger a si mesmo e à sua família de processos e também para ampliar sua aprovação entre a população mais pobre do Norte e do Nordeste, parece que não é mais a democracia quem corre perigo no Brasil – mas sim a economia.
Bolsonaro colheu os frutos imediatos da enorme injeção de recursos públicos para combater os efeitos do coronavírus sobre trabalhadores e empresas. Com a popularidade em níveis recordes, inebriou-se com a perspectiva de uma vitória fácil quando tentar a reeleição. O problema é que 2022 está muito distante.
Os sinais de desequilíbrio na economia brasileira aparecem em todas as frentes. O déficit e a dívida pública estão em trajetória explosiva, elevando o risco-país e afugentando o capital externo. A saída de investidores pressiona a taxa de câmbio, que encarece insumos importados e estimula o agronegócio e indústrias nacionais a direcionarem suas vendas ao exterior. Os índices no atacado já mostram uma forte inflação de custos e os consumidores nos supermercados se assustam com os preços dos alimentos.
Tecnicamente, não há muita dúvida sobre o caminho para recuperar o equilíbrio. Passado o pior da pandemia, caberia ao governo recolher a artilharia fiscal montada para combater a covid e avançar nas causas estruturais de um desequilíbrio que já incomodava desde antes da chegada do vírus: trabalhar pela aprovação das PECs emergencial e do pacto federativo e atacar uma reforma administrativa muito mais corajosa do que a apresentada ao Congresso no mês passado.
O problema é que o receituário técnico entra em colisão com as ambições políticas de Bolsonaro. Um ajuste rigoroso pode abortar a recuperação e inviabiliza a continuidade dos agrados distribuídos aos futuros eleitores de 2022. O teto de gastos parece ser a primeira vítima do populismo fiscal do Palácio do Planalto. Mas é pouco provável que o ataque às instituições econômicas pare por aí.
O abandono do teto e a falta de comprometimento do governo com a sustentabilidade das contas públicas elevarão ainda mais o câmbio ao longo de 2021 e 2022, pressionando a inflação. Estará o presidente preparado para ver o dólar romper a barreira dos R$ 6 ou R$ 7? À medida em que a eleição se aproximar, será que Bolsonaro aceitará passivamente aumentos na taxa de juros?
Uma vez derrubado o teto de gastos, quem entra na mira do populismo presidencial é a autonomia operacional do Banco Central. Para não colocar em risco seus planos eleitorais, não me surpreenderia se Bolsonaro tentasse influenciar o Comitê de Política Monetária por uma maior leniência com a inflação ou até mesmo pela busca de soluções “criativas” para conter a taxa de câmbio, como o uso mais intenso das reservas internacionais ou medidas de controle de saída de capitais.
Nestes novos tempos, são incomuns as grandes rupturas macroeconômicas provocadas por declaração de moratórias, confisco de poupanças ou rompimento com o FMI. O perigo hoje em dia é o sorrateiro enfraquecimento das instituições econômicas por líderes populistas que só pensam em permanecer no poder a qualquer custo.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.