Cacá Diegues: Vamos cantar até o fim

Outros horizontes surgem diante de nós, com conceitos menos culpados de liberdade.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Outros horizontes surgem diante de nós, com conceitos menos culpados de liberdade

A visão e revisão, na televisão, do espetáculo dirigido por Bárbara Paz, com Lirinha, músico e poeta pernambucano, me levou, por oposição, a algumas ideias sobre a cultura popular cultivada no Brasil, em meados do século passado. Não vou voltar ao rico espetáculo, sobre o qual escrevi na semana passada. Mas ele representou, para mim, alguma coisa que, partindo daquela tradição de mais de 60 anos, nos envia a novos horizontes de uma cultura nacional.

Para os que não sabem ou não se lembram, a cultura popular da segunda metade do século XX se tornou um estilo de criação, como tinha sido o Modernismo, anos antes. Mais que isso, ela foi tratada, por nossos mais finos intelectuais, como instrumento de conhecimento e transformação do país, nos revelando o que não sabíamos sobre nosso povo e servindo de rumo para o que seríamos com o fim à vista do subdesenvolvimento social e econômico. Inventores da poesia neoconcreta se tornavam cordelistas, músicos de vanguarda compunham hinos de mobilização política, gênios do teatro de costumes se dedicavam a esquetes de shows sindicais.

A cultura popular foi, no Brasil daquela geração, o que seria a contracultura nos países do Primeiro Mundo, uma revolução cultural sincronizada ao que acontecia em nossa política partidária e ideológica. Uma troca de Marcuse por Gramsci. O que chamávamos de cultura popular adquiriu tal força de expressão entre nós que se tornou a representação mais generosa do que era e do que pretendia ser o país. Ela não só representava com pertinência o que se passava, como ainda se tornava fundadora de novos costumes capazes de nos organizar como nação.

É claro que, do bolero ao forró, da bossa nova ao tropicalismo, a canção popular exerceu um papel de destaque e, às vezes, de liderança no desenrolar dessa história. Mas a chama da cultura popular pegou fogo nos mais variados formatos e plataformas, das artes plásticas ao cinema, da arquitetura ao teatro, da ficção à poesia. Passando sobretudo pela recuperação de tradições esquecidas, do folhetim e do rádio, das caravanas circenses e do teatro de revista, das quais nós não nos lembrávamos que amávamos tanto e que foram reordenadas pela então recente televisão. Mesmo que houvesse eventuais conflitos entre essas manifestações, cada uma delas se julgava o cerne fértil da sociedade brasileira daquele momento, a origem de uma nova nação.
De tal modo essa ideia de cultura popular radical e construtiva se instalou entre nós, que os sucessivos fracassos políticos, econômicos e sociais de nossos governos passaram quase despercebidos, voluntária ou magicamente disfarçados pelo que era, para os criadores e seu público, o Brasil de verdade. Só recentemente nos demos conta da mediocridade do conjunto de homens públicos, de direita ou de esquerda, que temos merecido, dos enganos a que eles nos levaram em nome de ideias que não se traduziram, na prática, em bem-estar, justiça e progresso permanentes para todos.

A cultura popular acabava sendo o lugar de nossas queixas pelo fracasso de nossos projetos. Navegantes embarcados em canoas sem rumo, alimentando a pretensão de uma relevância que não tínhamos, não percebíamos a distância entre povo e nação. Do horror da ditadura militar, passamos a uma democratização de circunstâncias e compromissos, até chegar à tragédia que vivemos hoje. A tragédia de um país sendo destruído pelo fascismo, para o qual a cultura é inimiga prioritária, porque ela é movimento e aponta direções.

Não digo que isso esteja mudando ou que vá necessariamente mudar, que encontramos enfim o caminho que a bússola política descompensada do passado não nos permitia encontrar. Mas outros horizontes surgem diante de nós, com conceitos menos culpados de liberdade, uma fé maior em nossas ilusões pessoais, a certeza de que somos responsáveis por todos mas não necessariamente por ninguém, que, parodiando Baudrillard, somos produto do desejo e da necessidade. A diferença é que, no passado do século passado, queríamos, sem saber que queríamos, que o conjunto de nossas obras substituísse a nação. E hoje sabemos que cada um de nós é uma nação.

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