‘Baruch Hashem’, disse Luiz Fux ao encerrar um discurso que teve muitos recados institucionais. O som da música “Shalom” ocupou de forma inesperada o ambiente do Supremo Tribunal Federal. Fux é filho de um imigrante que veio para o Brasil fugindo do nazismo. É o primeiro judeu a assumir a presidência da mais alta corte do país. “O Estado é laico, mas a paz é uma necessidade”, explicou o ministro ao anunciar a música. Houve vários outros sinais do tempo. Os cumprimentos foram suspensos, os convidados eram poucos e estavam distanciados, as autoridades usavam máscaras em cabines de acrílico, e as primeiras palavras do novo presidente foram em homenagem às vítimas do coronavírus. “Esta página triste e devastadora da nossa história.”
O presidente Jair Bolsonaro ouviu Fux dizer que a intervenção do Judiciário precisa ser minimalista. Deve ter gostado, porque acha que o STF tem entrado em questões próprias do Executivo. “STF não é o oráculo, não detém o monopólio das respostas”, disse Fux e pediu que não houvesse tanta judicialização da política. Ao mesmo tempo, atravessou o discurso inteiro lembrando as virtudes da democracia.
O presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, fez discurso breve e forte. Elogiou Dias Tóffoli. “Soube reagir quando os ataques — virtuais e reais — ao Supremo Tribunal Federal tentaram solapar a autonomia do Poder Judiciário, constranger a independência dos juízes e ferir a democracia brasileira.” Filho de desaparecido político, cuja memória Bolsonaro atacou, Santa Cruz contou que a OAB se reuniu duas vezes nos últimos 18 meses em atos “em defesa dessa Corte e da Constituição”. Falou do direito ao meio ambiente e do combate a todo tipo de discriminação.
Fux, ao lembrar avanços recentes consagrados pelo STF, falou que o tribunal trabalhou pelo “resgate das identidades historicamente vulneráveis, reconhecendo direitos dos povos indígenas e dos afrodescendentes nas ações afirmativas em prol das minorias étnicas, legitimou as uniões estáveis homoafetivas e paternidades socioafetivas, rechaçou a trans e a homofobia e validou a Lei Maria da Penha”. Em qualquer outro momento, pareceria a natural comemoração de avanços civilizatórios, mas ao lado de Bolsonaro as palavras soavam como aviso de que a sociedade brasileira já escolhera os valores da aceitação das diferenças e do respeito às identidades. Ele falou em “altivez” do tribunal.
A transição no STF se dá num tempo muito difícil. Na escalada da pandemia, o presidente participou de atos que pediam o fechamento do Supremo. Na reunião ministerial cujo teor foi divulgado pela decisão do ministro Celso de Mello houve pedido de prisão dos ministros do STF, que foram definidos como “vagabundos”. Bolsonaro fez ameaças diretas à Corte em seus gritos matinais na porta do Alvorada. Ontem, contudo, estava de máscara e por algumas horas ouviu os elogios ao tribunal e a exaltação dos valores da liberdade, diversidade e democracia. “O mandamento da harmonia entre os Poderes não se confunde com contemplação e subserviência”, afirmou Fux.
Outro recado do discurso de Fux foi sobre o combate à corrupção. “Não mediremos esforços para o fortalecimento do combate à corrupção, que ainda circula de forma sombria em ambientes pouco republicanos em nosso país. Como no mito da caverna de Platão, a sociedade brasileira não aceita mais o retrocesso à escuridão e, nessa perspectiva, não admitiremos qualquer recuo no enfrentamento da criminalidade organizada, da lavagem do dinheiro e da corrupção”.
O STF dos próximos dois anos será diferente. Primeiro, porque o ministro Celso de Mello, que foi decano pleno, com senioridade e senso de urgência na defesa institucional, está saindo. Segundo, porque até meados do ano que vem o tribunal terá dois indicados de Bolsonaro. No seu plano de gestão, Fux colocou em primeiro lugar “a proteção dos direitos humanos e do meio ambiente”. Isso enquanto a Amazônia e o Pantanal ardem, e o governo nega que isso esteja acontecendo.
A posse de ontem exibiu a dissonância no país. O ministro Marco Aurélio Mello, o decano presente, lembrou a Bolsonaro o básico, “o senhor foi eleito por 57 milhões de votos mas é presidente de todos os brasileiros”. Bolsonaro nunca entendeu esse papel.