Discutindo o Renda Brasil superficialmente, pode-se pôr em risco a credibilidade do País
No prefácio do livro que acabo de publicar com Josué Pellegrini, Contas Públicas no Brasil (424 páginas, Editora Saraiva), o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega avalia que os aprimoramentos na institucionalidade fiscal do País “não foram de todo introjetados nas nossas elites, menos ainda na sociedade”. A verdade é que leis e regras ficam incompletas sem o espírito da responsabilidade fiscal. Dívida e déficit não se controlam por obra da lei apenas, mas pelo efetivo saneamento das contas públicas. Por isso a ameaça do populismo fiscal precisa ser barrada, sob pena de pormos a perder a capacidade de resposta do Estado no pós-crise.
A crise nas finanças públicas não chegou ao Brasil com o novo coronavírus, mas ele a exacerbou. O risco, passada a tempestade da covid-19, é mergulharmos fundo no aumento indiscriminado do gasto público. Trata-se das propostas que desconsideram a restrição orçamentária do País. A abordagem do governo no chamado Renda Brasil pode ser um primeiro sintoma.
Em tese, ninguém é contrário à criação de um bom programa de transferência de renda para os mais pobres, sobretudo depois da crise, dada a situação prospectiva de fragilidade social e econômica. Há, contudo, que levar em conta o custo, a forma de financiamento, o objetivo e o desenho da política. A ação do Estado deve estar baseada em evidência empírica. Há muita gente qualificada na academia, na burocracia estatal, no setor privado e no terceiro setor para ser consultada.
Dar continuidade ao programa de auxílio a vulneráveis seria positivo desde que respeitado o compromisso com a responsabilidade fiscal. A motivação do Renda Brasil, como vem sendo chamado, é guarnecer uma parte dos que ficarão órfãos do benefício emergencial pago durante a pandemia e terão dificuldades de encontrar emprego. Mas por ora é apenas uma boa ideia. Enquanto o leitor lê este artigo, provavelmente o Executivo está enviando ao Congresso a proposta para o orçamento público de 2021. Hoje é o prazo final. Até o momento em que terminava de escrever, três dias atrás, não havia nenhuma indicação sobre o desenho do Renda Brasil.
De quanto será esse novo benefício? Quem terá direito a receber? Será um programa permanente?
Do ponto de vista do custo, a incerteza é gigantesca. Nas contas da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, o auxílio a vulneráveis custa R$ 51,5 bilhões ao mês, ou R$ 618 bilhões em termos anualizados. Para ter claro, esse montante equivale a quase todo o gasto do INSS, em 2019, de R$ 626,5 bilhões. Se o Renda Brasil corresponder a 10% disso (R$ 62 bilhões, ou quase o dobro do Bolsa Família), já será um gasto elevado e difícil de ser enquadrado no orçamento e na regra do teto de gastos em 2021.
Considere-se a seguinte hipótese de financiamento: corte de subsídios creditícios (R$ 5 bilhões), corte de gastos tributários (R$ 25 bilhões), redução temporária de jornada no serviço público (R$ 23 bilhões) e redução do abono salarial (R$ 9 bilhões). Haveria tempo hábil para articular essas medidas? A redução de jornada, por exemplo, dependeria de proposta de emenda à Constituição (PEC). As mudanças no abono salarial poderiam ser feitas por lei, mas sua extinção, apenas por PEC. Além disso, o presidente da República já disse ser contrário a mexer no abono, apesar de não ter apresentado alternativa.
E quanto ao teto de gastos? Das fontes acima listadas, a mudança nos gastos tributários não ajudaria no teto, pois essas renúncias de receitas não estão sujeitas à regra. O quadro seria de estouro do limite, lembrando que as projeções da IFI já indicam risco alto de rompimento em 2021, mesmo sem o Renda Brasil. Assim, seriam acionadas as medidas de ajuste previstas na Emenda Constitucional n.º 95, de 2016 (regra do teto).
Tais gatilhos proíbem reajustes salariais, contratações e ações, pelos três Poderes, que impliquem aumento de despesa acima da inflação. Bem aplicados, não configurariam abandono do teto, mas o seu pleno funcionamento. Espanta que o governo não tenha dado encaminhamento célere a essa questão, para que a proposta orçamentária de 2021 já nascesse em contexto de maior previsibilidade. O noticiário econômico mostra que o Ministério da Economia está correndo atrás de uma PEC para dar conta do recado. Parece descartar – não se sabe a razão – a possibilidade de construir uma saída pela própria Emenda 95.
Acionar os gatilhos daria fôlego de um a dois anos para se discutir uma reforma fiscal mais ampla, ajudando a afastar a ameaça de burla das regras fiscais por meio de contabilidade criativa. O populismo fiscal é ardiloso, porque se baseia em promessas atraentes, mas ignora os números, as estimativas e, principalmente, a indicação das fontes de financiamento.
Ao se discutir a criação do Renda Brasil de maneira superficial e sem números, pode-se pôr em risco a credibilidade das contas públicas e do País. Se prevalecer a tese de que não é preciso aumentar receitas e/ou cortar gastos para custear aumentos de novas despesas, terá vencido o populismo fiscal. É tempo de barrar essa ameaça.
*DIRETOR EXECUTIVO DA IFI