No idílio passadista do presidente, filho de pobre trabalha e o do rico estuda
Paulo Guedes salta na frigideira porque seu modo de ser reacionário não combina com o de seu chefe, Jair Bolsonaro. O tal “Big Bang” do ministro da Economia —o dito “plano econômico-social”— promove uma redistribuição da pobreza entre os pobres. Seu chefe achou a coisa explícita demais, com potencial eleitoral danoso.
No universo recriado por Guedes, o Brasil continuará a ser o país em que, segundo o Relatório da Desigualdade Global, da Escola de Economia de Paris, os 10% mais ricos ficam com 55% da renda. O problema não está aí. Ocorre que o 1% dos ricos de verdade —coisa de 1,4 milhão de adultos— ficam com mais da metade: 28,3%.
Não fiz a conta. Talvez seja o caso de saber quanto detêm do tal bolo aqueles que formam o 0,1%, a “crème de la crème” da concentração de renda. Os liberais de fancaria que andam por aí a vomitar obscenidades logo vociferam: “Ninguém é pobre porque o outro é rico. É preciso esforço!”.
Fruto da indolência, quem sabe?, os 50% mais pobres têm de se contentar com 13,9% do conjunto de todos os rendimentos. A seu modo, Guedes até quer fazer alguma correção. Pretende acabar com a dedução no Imposto de Renda dos gastos com saúde e educação. Topa mexer naqueles 10% que concentram 55% da renda, mas nunca no 1% que abocanha 28,3%. Quanto ao 0,1%, bem…
O ministro é um reacionário antipopulista. E é aí que seu modo de fazer o Brasil andar para trás se choca com o do chefe. O “Mito” descobriu o potencial eleitoral do assistencialismo agressivo e precisa do voto de milhões. Ao comandante da Economia, basta o apoio da Faria Lima, com a concordância, é certo!, do presidente.
A questão, por enquanto sem resposta, é como “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos” sem que os primeiros reajam nas urnas. Será Bolsonaro, no confronto com Guedes, um pouco mais, digamos, “progressista”? Respondo com um fato. Na terça (25), ao falar na abertura do congresso nacional da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), o presidente lembrou que começou a trabalhar aos dez anos, num boteco, por decisão de seu pai, e fez a defesa aberta do trabalho infantil.
Com gramática sempre peculiar, mandou brasa: “Meu primeiro emprego, sem carteira assinada obviamente, eu tinha dez anos de idade. Foi no bar do seu Ricardo, em Sete Barras, no Vale do Ribeira. (…) E bons tempos, né?, onde (sic) menor podia trabalhar. Hoje ele pode fazer tudo, menos trabalhar, inclusive cheirar um paralelepípedo de crack, sem problema nenhum”. Aplausos.
Antes ainda da posse, em dezembro de 2018, Guedes afirmou que os 30 anos de ineficiência da social-democracia seriam interrompidos por ao menos quatro anos de liberalismo associado ao conservadorismo. É mesmo?
Numa democracia, conservadores aceitam o progresso social e buscam conservar o molde institucional. Já os reacionários pretendem fazer o país marchar para trás, conservando não instituições, mas iniquidades —e, se possível, ressuscitando fantasmas. A depender do caso, podem ser disruptivos, golpistas.
No idílio passadista bolsonariano, filho de pobre trabalha e o do rico estuda, reproduzindo, assim, um e outro, o ciclo de desigualdade. Nessa perspectiva, dispensa-se um Estado que possa já nem se diga corrigir as injustiças, mas, ao menos, capacitar um pouco mais a criança pobre para uma disputa de… desiguais.
Ainda que aos trancos e barrancos e, às vezes, recuos, o mundo caminha tendo como norte a justiça social. Logo, toda ação reacionária será sempre contra os desvalidos, os que podem menos, os injustiçados. Existe, sim, o bom conservador. Mas inexiste o reacionário virtuoso.
Bolsonaro cobra de Guedes que coloque uns tostões a mais no bolso dos pobres para que as urnas sustentem seu propósito de resgatar aquele passado idílico, em que filho de pobre trabalha feliz para honrar a sujeição histórica de seu pai. Vivemos o momento glorioso de uma tensão entre reacionarismos distintos e combinados.