Carlos Andreazza: O minion dribla-teto

Guedes quer ser o pai do novo Bolsa Família.
Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil
Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil

Guedes quer ser o pai do novo Bolsa Família

Bolsonaro opera na ambiguidade. A história do veto presidencial afinal mantido sobre a possibilidade de aumentar salários de servidores públicos é exemplar da maneira propositalmente dúbia como manipula suas relações. No caso, com o que se chama de controle de gastos.

Lembremos.

Ainda em maio, ele autorizara que sua liderança apoiasse um acordo, no Senado, que abriria generosa janela de exceções à regra imposta até dezembro de 2021; arranjo por meio do qual várias categorias — inclusive as forças de segurança pública, que lhe compõem a base — poderiam ter reajustes na remuneração. Uma disposição segundo a qual — conforme já indicara a reforma da Previdência dos militares — alguns grupos seriam privilegiados; o que expunha um rigor fiscal destinado só aos outros.

O acordo foi fechado; os privilegiados, definidos. Ocorre, porém, que Paulo Guedes chiou. (Mas sem chamar o acerto apoiado pelo presidente de “criminoso”, né?) Para me valer da imagem formulada pelo ministro na famosa reunião de 22 de abril, ou era granada no bolso de todo servidor (“o inimigo”), ou nada feito. Bolsonaro recuou — e disse, traindo o pactuado, que vetaria o parágrafo cuja inclusão endossara. Vetou. Mas não sem demora. Entre o compromisso verbal com o veto e o veto em si, passaram-se 20 dias. Prazo no curso do qual aumentos para policiais pipocaram Brasil adentro; inclusive aquele que o próprio presidente deu à PM do DF.

E então, só então, passada a boiada, vetou. Difícil imaginar que tenha armado essa farra seletiva sem o aval de Guedes. Afinal, na prática, cumpriu a palavra dada ao ministro. Ficaram todos satisfeitos. Como todos satisfeitos ora estão com o efeito saneador da ação de Rodrigo Maia — a quem foram pedir arrego — para reverter, na Câmara, a rebeldia fiscalmente irresponsável (atitude “criminosa”, segundo o seletivo Guedes) do traído Senado.

Bolsonaro é ambíguo. Mas é Bolsonaro; em matéria econômica, mistura de Dilma Rousseff, Paulinho da Força e Ernesto Geisel. Um corporativista, que sentou o Planalto sobre o projeto de reforma administrativa. Um militar formado sob a fé num milagre econômico que faz Brasil Grande, de súbito —dada a circunstância pandêmica — diante da perspectiva de um Bolsa Família para chamar de seu.

Dúbio; mas um peão de bomba fiscal— a quem se deu caneta carregada — com três décadas de potencial atômico demonstrado, à parte o urânio enriquecido pela porteira de oportunidades aberta pela peste. Daí por que só mesmo a perplexidade com agentes do mercado — mui pouco patriotas — surpreendidos pelo risco de a popularidade ascendente do presidente, derivada em boa medida da fluência do auxílio emergencial, consolidar a irresponsabilidade fiscal como tendência.

Não é tendência. (Nunca foi.) Não há impasse; não mais há (se é que houve) disputa dentro do governo. Bolsonaro já fez a escolha. (Há 30 anos.) Vai gastar. É obra. A peleja agora é somente acerca de como bancar a conta. Essa é a missão dada pelo mito; todas as partes, liberal-guedistas e militar-desenvolvimentistas, movendo-se para encontrar a solução pagadora.

A peleja agora também sendo, pois, por quem terá a primazia no acesso à carteira do brasileiro. Que não se tenha dúvida — se ainda não deixei suficientemente claro: Guedes está no páreo; com CPMF, com tudo. Já topou o jogo. Pede alguma discrição, mas aceita aquele desagravo fúnebre à porta do Alvorada quando a rapaziada expuser excessivamente a corrida por custear a campanha do chefe a 2022.

A não ser na fachada, nunca houve competição entre austeridade fiscal e pulsão gastadora. Nunca, fica-teto versus derruba-teto. Não há fura-teto. O debate sobre a derrubada do teto de gastos, hoje, não tem lugar, senão na falácia discursiva por meio da qual Guedes disfarça a fabulosa flexibilidade de sua cervical liberal. “O teto sou eu” — sugere o ministro, definindo, como critério para sua permanência no governo, a improvável implosão da âncora fiscal. Isso enquanto ele próprio cuida de buscar brechas — vide o que tentou embutir no Fundeb — para driblar o teto.

Não é fura-teto. É fica-teto e dribla-teto. Guedes — antes de tudo um minion — sendo a perfeita encarnação do dribla-teto. Esta, a competição que há: entre dribla-tetos; sobre quem melhor oferecerá condições para financiar a reeleição de Bolsonaro.

Guedes quer ser o pai do novo Bolsa Família. Tenta costurar essa marca para si —para se fortalecer ante os militar-desenvolvimentistas, que propõem sustentar a vitória do chefe com obras de infraestrutura e de desenvolvimento regional. Se o auxílio emergencial é a garantia de porção expressiva da popularidade de Bolsonaro, calcula o ministro da Economia, o programa que o substituirá, o Renda Brasil, seria a perenização dessa popularidade. É como Guedes quer bailar. Ou tentar; porque o Ministério da Economia tem sido ruim de projeto.

Para o caso de falhar, e sem muito chororô no mercado, Roberto Campos Neto já está no aquecimento. Vida que segue — dirá o presidente.

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