Dorrit Harazim: O fator Kamala

Biden precisa dela para seu projeto de arrancar o país da era Trump.
Foto: RS
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Biden precisa dela para seu projeto de arrancar o país da era Trump

Que ninguém se engane: a indicação de Kamala Harris como vice do candidato democrata Joe Biden, que em novembro próximo disputa a Presidência com Donald Trump, é coisa grande. Não por ter sido surpresa — Harris sempre esteve entre as primeiras da lista de 11 finalistas sabatinadas para o cargo. É coisa grande por abrir caminho, algum dia e com séculos de atraso, a um autorretrato mais verdadeiro da sociedade americana em acelerada mutação.

Para Donald Trump e sua América nostálgica dos anos 1950, a indicação da senadora multirracial é desconcertante. Por um lado, fica difícil acenar com o fantasma do crime e caos urbano dominarem o país em caso de vitória democrata. O currículo de Harris, quando procuradora-geral da Califórnia, foi notoriamente durão — demais, até, para muitos jovens negros da época. Trump também não irá muito longe com seu bordão apocalíptico de uma “América comunista”, dado que Harris nunca foi da ala mais radical/progressista do Partido Democrata. Por fim, acusar a adversária de chapa, abertamente, de ser mulher, negra e de ascendência asiática, pode ser arriscado demais. Trump até tentou, em entrevista à rádio Fox Sports. Sugeriu que “algumas pessoas” diriam que “homens” poderão se sentir “insultados” com a indicação de uma mulher — tudo em fraseado indireto e no condicional, não atribuível a ele.

Kamala, como a candidata a vice prefere ser identificada em campanha, encarna tudo o que desestabiliza a escassa autoconfiança do ocupante da Casa Branca. Ela sabe quem é e domina o poder que deriva desse autoconhecimento. É debatedora afiada, capaz de desconcertar pesos pesados como o ex-ministro da Justiça Jeff Sessions e o ministro do Supremo Brett Kavanaugh, em sabatinas no Congresso. Foi impiedosa com o próprio Biden no primeiríssimo debate entre a plêiade de candidatos à indicação democrata, o que lhe valeu críticas de deslealdade partidária.

Ainda assim, Biden não a teme, precisa dela para seu projeto de arrancar o país da era Trump e servir de transição para tempos mais civilizados. Será presidente de um só mandato, se eleito e empossado aos 78 anos. Precisa de alguém capaz de substituí-lo desde o dia de sua posse.

Kamala Harris, de 55, é uma assombração para Mike Pence, o atual vice-presidente que mantém fidelidade ladina a Trump, pois pretende sair candidato solo em 2024. Seu debate televisivo com a adversária democrata tem tudo para ser tão faiscante quanto os dois confrontos agendados entre Trump e Biden. Sobretudo quando se sabe que 1 em cada 3 vice-presidentes da história dos Estados Unidos tornou-se chefe da nação, comparado a apenas 1 em cada 145 governadores ou 1 em cada 124 senadores.

Onipresente em defesa do chefe, Pence tem sido o contraponto perfeito para a destemperança errática do presidente. Monocromático no visual e monocórdio na fala, o máximo que Pence se permite é um ligeiro levantar de sobrancelha em sinal de lamento, nunca de rancor ou raiva. Divergiu publicamente de Trump uma só vez, às vésperas da eleição de 2016, quando veio à tona a famosa gravação chula, sexista e cafajeste do candidato. Na ocasião prevaleceu sua fidelidade à fé evangélica que norteia seu cotidiano — em 2002 ele afirmara nunca sentar-se à mesa para jantar com uma mulher que não fosse sua esposa, nem participar de eventos sem Kate em que bebidas alcoólicas seriam servidas. É esse personagem que eleitores americanos verão em confronto com uma adversária assertiva e incômoda em tudo.

Kamala tem dupla função. Uma, na atual campanha : bater em Trump sem receio de prejudicar o papel tiozão de Biden. Cabe-lhe apontar, através de dados e retórica, a incapacidade do presidente para liderar a nação, seja na guerra à pandemia seja na pacificação racial e social do país. Embora candidatos a vice tenham pouco impacto efetivo sobre a base eleitoral já constituída do presidenciável, talvez Kamala até consiga garantir o voto de mulheres negras em estados cruciais como Michigan e Pensilvânia, que tanta falta fez a Hillary Clinton em 2016.

Sua segunda função é mais duradoura e independe de vitória: apressar a urgente adequação do país a suas muitas gentes. Kamala Devi, filha de imigrantes , tem sangue negro e indiano, é casada há 6 anos com um advogado branco e judeu de Nova Jersey e tem duas enteadas adultas que a chamam de Mamala. Abriu caminho a fórceps, empurrada por pais que valorizavam educação, formação e atitude. Tem a cara, as cores e o vigor que a esclerosada máquina do Partido Democrata fingia ter, mas não abraçava de fato. Agora terá de ser na marra.

Kamala também tem a cara, cores e vigor que Donald Trump precisa deslegitimar a qualquer custo. O primeiro tiro indica o estado de alarme do 45º presidente dos EUA. Foi de um pódio da Casa Branca que Trump levantou a falsa hipótese de Kamala Harris não preencher os requisitos de cidadania americana para o posto. “Me falaram disso ainda hoje”, comentou meio en passant durante a coletiva de quinta feira. “Não tenho ideia se é isso mesmo …”, acrescentou com a habitual vileza de isentar-se de qualquer responsabilidade pelo que diz. Conseguiu, assim, colocar em roda uma falsa discussão sobre o que diz a 14ª Emenda de 1868, que concede cidadania americana a quem é nascido dentro de suas fronteiras territoriais — a jus solis que já ameaçara abolir por decreto. Pela Constituição dos EUA, são apenas dois os requisitos para se tornar presidente ou vice: ter nascido em solo americano e ter idade acima dos 35 anos. Kamala preenche ambos.

Outros tiros virão, mas as Kamalas já são muitas, e muitas mais virão. O que não muda é o medo que o presidente dos EUA tem de mulheres fortes e do poder que elas emanam.

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