RPD | Reportagem | Covid-19 destrói vidas e deixa povos indígenas em risco de ‘apagão cultural’

Ao todo, doença já matou 658 indígenas no país; entidades cobram controle de invasores e apontam falta de atenção do governo.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Ao todo, doença já matou 658 indígenas no país; entidades cobram controle de invasores e apontam falta de atenção do governo

Cleomar Almeida

“Quando morre um cacique, a comunidade perde um líder. Quando morre um mestre e um ancião, é um livro cheio de informações que se fecha para sempre”. No início do mês, a frase do neto do cacique Raoni Metuktire, Patxon Metuktire, repercutiu na internet em honra à vida e história do líder do Alto Xingu, Aritana Yawalapitit, de 71 anos, que morreu por complicações da Covid-19. Entre os povos indígenas, os efeitos da doença são ainda muito maiores, já que a falta de atenção à saúde e proteção deles os deixam ainda mais vulneráveis à destruição de vidas, mitos, línguas e tradições milenares.

Levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) registrou 658 indígenas mortos e ao menos 23.712 infectados pelo novo coronavírus até o dia 11 de agosto. No total, são 148 povos atingidos pela doença, que, segundo a entidade, chega às aldeias principalmente por meio das rodovias e profissionais de saúde que não vivem nas comunidades. Não há monitoramento de acesso aos territórios tradicionais para fazer testagem das pessoas, como caminhoneiros, que trafegam nas estradas do país, além de garimpeiros e madeireiros ilegais que invadem os territórios indígenas para devastar a floresta.

Ao todo, 900 mil indígenas vivem em todo o país. Nos territórios, cada morte provoca um apagão sobre a cultura milenar, já que anciãos servem como autoridades morais, conselheiros espirituais e detentores de conhecimento e memória para os povos indígenas.

Cacique desde os 19 anos e um dos líderes mais antigos e respeitados do Alto Xingu, Aritana Yawalapitit era um dos últimos falantes da língua yawalapiti, do tronco linguístico aruak, e conhecido por lutar pela defesa dos povos indígenas, principalmente pela preservação das terras conquistadas. Ele ficou internado por duas semanas após ser contaminado pelo novo coronavírus. Morreu em Goiás, em 5 de agosto, no mês em que é celebrado o Dia Internacional dos Povos Indígenas. O líder havia sido transferido de Mato Grosso.

“Perdemos um dos maiores guerreiros da nossa família. Foi referência dentro da aldeia e fora. Sua história rompeu fronteiras. Perdemos um grande líder Yawalapiti. Nós, Kamayuras, estamos de luto”, desabafou Jeff Kamayura, primo de Aritana, nas redes sociais.

Mortes também geram desorientação para as populações originárias, como também é o caso dos 14 mil habitantes da comunidade Munduruku, que vivem nos Estados do Pará, Amazonas e Mato Grosso. No total, a Covid-19 já matou 12 integrantes desse povo; 11 deles eram idosos.

“Quando vamos descansar nossos corações? Meu tio cacique Vicente Saw Munduruku; meu pai Amâncio Ikõ Munduruku; Arcelino Dace Munduruku; Francidalva Saw Munduruku; cacique e professor Martinho Boro Munduruku. E agora mais um, o professor Bernardo Akay Munduruku. Tem sido dias difíceis para nosso povo!”, escreveu Arlisson Ikon Biatpu Munduruku, em uma rede social.

Efeito devastador
Entre os indígenas, a morte de líderes provoca impacto devastador em comunidades inteiras. Vai além da dor de familiares e amigos, como é o caso de Amâncio Ikõ Munduruku. Em 1998, ele foi um dos fundadores da Associação Indígena Pariri, que atua em defesa dos direitos desses povos. Além disso, Amâncio encorajou o cacique Juarez Saw a retomar território ancestral da etnia, que depois se tornaria a Terra Indígena Sawre Muybu/Daje Kapap Eïpi.

Lideranças indígenas dizem que se tornaram ainda mais suscetíveis ao novo coronavírus em razão do desmonte de políticas públicas realizado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, visto como uma ameaça aos povos nativos, que também lutam pela proteção ao meio ambiente. O cacique Raoni Metuktire, conhecido pelos coloridos cocares de plumas e o grande disco inserido no lábio inferior, vem intensificando as denúncias de ataques contra os povos indígenas no Brasil por parte de Bolsonaro.

Ícone da luta pela conservação da Amazônia, Raoni afirmou à imprensa que Bolsonaro quer “se aproveitar” da pandemia para impulsionar projetos de ameaça aos povos indígenas, que têm histórico de vulnerabilidade a doenças externas. Ele recebeu alta, no dia 25 de julho, após ficar internado durante uma semana por causa de infecção intestinal. Sua mulher, Bekwyjkà Metukire, morreu, em 23 de junho, depois de sofrer acidente vascular cerebral.

As perdas indígenas provocam uma série de consequências para a organização social dos povos e para o conjunto das relações deles com seus territórios e os demais segmentos da sociedade brasileira, de acordo com a coordenadora executiva da Coordenação das Organizações dos Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Nara Baré.

“É fundamental que o Brasil não indígena perceba que também sofrerá com as perdas desses povos, seja por toda a influência da cultura indígena na formação da cultura nacional, seja pela relevante contribuição que o modo de vida dessas populações oferece à manutenção do equilíbrio ambiental do país”, afirmou.

Resistência e socorro
Em todos os biomas, em especial na Amazônia, as terras indígenas são palco de resistência à destruição do meio ambiente, o que, segundo Nara, “os posiciona como verdadeiros guardiões das florestas”. O movimento indígena informa que instalou, na região, mais de 100 Unidades de Atendimento Primário Indígena (Uapi) e denuncia a falta de apoio e atenção do governo brasileiro.

Em todo o país, movimentos e organizações indígenas se mobilizam, por meio da internet, em busca de doações de produtos e fundos para comunidades e aldeias, mais vulneráveis a infecções respiratórias. O objetivo é amparar as famílias para diminuir o impacto do novo coronavírus na vida dessas pessoas.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) diz que já investiu R$ 26 milhões em medidas de combate ao novo coronavírus e que reforçou ações de prevenção em parceria com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). O órgão também informa que atua para garantir a segurança alimentar e higiene de famílias indígenas, com distribuição de cerca de 500 mil cestas básicas e quase 62 mil kits de higiene pessoal e limpeza.

De acordo com a Fundação, foram realizadas “ações de vigilância e monitoramento territorial”. O órgão informa, ainda, que participa de 271 barreiras sanitárias para impedir a entrada de não indígenas em aldeias, contabilizando 151 ações de fiscalização em 63 terras demarcadas para coibir “extração ilegal de madeira, garimpo e pesca predatória.”

Fonte: Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena/Articulação dos Povos Indígenas do Brasil


Aumenta tensão entre governo e líderes indígenas

A tensão entre os povos indígenas e o governo brasileiro tem aumentado cada vez mais. No dia 7 de agosto, o embaixador do Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA), Fernando Simas Magalhães, vetou a participação da coordenadora executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Nara Baré, para falar na reunião do seu Conselho Permanente, durante a 3ª Semana Interamericana de Povos Indígenas, e da Comemoração do Dia Internacional dos Povos Indígenas.

Nara iria informar ao Conselho Permanente e outros convidados da sessão os impactos da Covid-19 entre os povos indígenas e como as organizações e comunidades estão combatendo o vírus por sua iniciativa própria. O presidente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), Jaime Cargas, também teve sua participação cancelada.

O secretário-Geral da OEA, Luís Almagro Lemes, admitiu os impactos do novo coronavírus principalmente entre os povos nativos. “A Covid19 exacerbou a vulnerabilidade dos mais necessitados. Hoje, quando começamos a 3ª Semana dos Povos Indígenas, devemos reconhecer a frágil condição em que estão os povos indígenas e convocar a todos a levar em consideração suas necessidades no mundo pós-coronavírus”, disse, em suas redes sociais.

“A postura da OEA e de seus membros, principalmente o Brasil, não condiz com o discurso do secretário-geral da OEA, em que afirma que quer nos escutar e fazer algo pelos povos indígenas, mas impede uma liderança amazônica de se pronunciar perante os membros da organização”, afirma Kleber Karipuna, liderança da Coiab, em nota de repúdio publicada no site da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Fundada em 1948, a OEA é o mais antigo organismo regional do mundo. Foi originada na União Internacional das Repúblicas Americana (1889-1990), com o objetivo de promover relações pacíficas nas Américas. O governo brasileiro não se pronunciou sobre o episódio.


‘Índios não vão se acabar’, diz antropólogo

Ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), o antropólogo Mércio Pereira Gomes, diz se preocupar com a morte de indígenas, mas ressalta que esses povos não serão extintos por causa da doença. “O que estamos sentindo hoje é o perigo de os velhos desaparecerem e, por isso, lamentamos muito. Estamos preocupados com essa perda das fontes de moral, de conhecimento tradicional e de mitos, que guardavam os mais velhos”, afirmou. “Entretanto, acredito que os índios segurarão essa doença. Não vão se acabar”, disse.

Gomes é autor do livro Os Índios e o Brasil (304 páginas, editora Contexto), que, em sua primeira edição, anunciou a sobrevivência dos povos indígenas na década de 1980 e que analisa o crescimento deles no país. Em entrevista à revista Política Democrática Online, ele ressalta que a questão indígena é de nacionalidade. “Os indígenas formam a raiz da nacionalidade brasileira”, pondera.

O autor lembra que, em 1955, o antropólogo Darcy Ribeiro, que foi diretor do Museu do Índio, afirmou que esses povos somavam 100 mil pessoas e estariam em declínio. “Em 1988, eu disse que índios eram 300 mil e em crescimento”, ressaltou Gomes, explicando que a população indígena não vai acabar no Brasil. “Os índios sobreviveram, cresceram mais de 10 vezes, em população, desde 1950”, asseverou.

Nem por isso o governo deve se eximir de sua responsabilidade de proteção e garantia dos direitos dos povos indígenas, na avaliação de Gomes. “É preciso que o governo fique mais atento e consiga usar sua estrutura médica e sanitária, com redobrada atenção, para que essa fase de mortes acabe e os índios voltem de novo a respirar com alegria e determinação em suas vidas”, acentuou. “Os velhos importam. No caso dos índios, há conhecimento na sua própria alma”, destacou.

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