A covid-19 obrigou a que esta despedida ocorra sob máscaras, à distância. Mas há séculos o que não muda é nossa necessidade de encontrar sentido num cenário despido de lógica. O luto, portanto, como um grito de mobilização e insurreição de consciências
A covid-19 obrigou a que o ritual humano do luto pelos que se foram ocorra coberto por máscaras, à distância, sem um último beijo. Num recente evento em Madri, uma enfermeira arrancou lágrimas ao resumiu esse novo adeus. “Temos sido mensageiros do último adeus para os idosos que estavam morrendo sozinhos, ouvindo a voz de seus filhos através do telefone. Fizemos videochamadas, apertamos as mãos e tivemos que engolir nossas lágrimas quando alguém nos disse: “Não me deixe morrer sozinho. Vivemos situações que ferem a alma”, disse a enfermeira.
Ao longo dos séculos, o que não mudou foi nossa necessidade de encontrar sentido num cenário despido de lógica, acima de tudo por aqueles que diretamente perderam pessoas amadas. Uma necessidade de homenagear aqueles que nos deixaram, ainda que passaremos anos sonhando em silêncio com eles. O luto faz parte de diferentes culturas e de diferentes religiões, se confundindo com a própria história da humanidade. A perda é uma temática estudada e especialistas nos ensinam como ela nos afeta de forma psicológica e física. Nos tira o sono e muda nossa maneira de encarar o restante de nossas vidas. Ao longo dos séculos, as práticas mudaram. Na Idade Média, rituais relativos à morte eram públicos. O luto era de uma comunidade. Em outros locais, a morte era seguida por eventos festivos que a desafiava com uma explícita demonstração do poder da vida.
Foi com a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, e o fato de muitos dos garotos enviados ao front nunca terem voltado, que monumentos com nomes desses heróis se espalharam por praticamente todas as cidades da Europa. Nesses monumentos, até hoje, pequenos vilarejos se encontram uma vez por ano para deixar claro que existe uma comunidade de destino.
Hoje, a alma ferida de uma nação fica evidente ao atingirmos um trauma de massa. Mas, no caso brasileiro, temos sérios obstáculos para conseguir transformar essa tragédia em uma reação coletiva, em uma mobilização popular. Em parte, trata-se de o resultado de anos de um processo de banalização da morte, ao ponto de contar com um chefe de Estado cujo símbolo de campanha era uma arma.
Hoje, o Brasil precisa ter a coragem de declarar seu luto coletivo e assumir que a morte do outro é, em parte, uma perda de todos. Uma tarefa difícil quando, nos discursos improvisados dos almoços de domingo, sobra ódio contra o outro. Uma tarefa complicada quando parte da sociedade ainda acredita que uma parcela do país não tem direito a ter direitos. Ou quando, de forma hipócrita, o governo faz discursos de combate ao racismo na ONU ao lembrar da morte de George Floyd. Mas não destina uma só palavra para lamentar a perda de seus velhos caciques na floresta.
Ao atingirmos 100.000 perdas de vidas, é o tempo de suspender tudo, recolocar nossas prioridades sobre a mesa e avaliar que sociedade queremos reerguer. Não há como seguir fingindo uma falsa normalidade. Se não agora, quando? O que precisaremos para despertar se nem 100 mil mortes nos transformam como nação? O que precisaremos para nos transformar em nação?
Recuperar a ideia de um luto coletivo é o primeiro passo para dizer que não aceitaremos a fatalidade da crise. O luto por aqueles que não resistiram às falências do Estado. Um luto por caminhos não tomados. Um luto por escolhas equivocadas. Um luto pela politização de uma pandemia, talvez a grande história que nossos descendentes contarão no futuro sobre nós.
Não são 100.000 mortes. São 100.000 pessoas. Não se trata de um destino inevitável. Mas das consequências de ações e opções políticas. O luto, portanto, como ato de resistência. Um grito de mobilização. O luto, enfim, como insurreição de consciências. Essa, sim, uma homenagem real àqueles que morreram e uma chama de esperança para que os permaneceram.