No Brasil o exercício da administração pública por militares de novo dá em fracasso
Nos últimos meses tem sido intenso o debate sobre a conveniência ou superioridade da democracia sobre outras formas de governo, em particular no caso brasileiro. De pedidos e ameaças de golpe militar a pesquisas de opinião e campanhas jornalísticas, a democracia não sai do noticiário.
Mas quem é ela, a democracia? Há diversas respostas, decorrentes de distintas matrizes teóricas. Sabemos, no entanto, que a democracia moderna é caracterizada pela ideia de representação. Em regra, elegemos aqueles que tomarão as decisões coletivas em nosso nome. Ou seja, nosso voto normalmente não decide, ele elege quem deverá decidir.
Essa compreensão vai ao encontro da definição que Norberto Bobbio dá à democracia: “conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” (O Futuro da Democracia). Trata-se de uma definição que Bobbio mesmo chama de “mínima”, e que também é formal, já que ela não nos diz o que se deve decidir numa democracia, mas quem deve decidir (“participação mais ampla possível dos interessados”) e como se deve decidir (“regras de procedimento para a formação de decisões coletivas”).
Mas Bobbio não ignora a existência de valores e condições da democracia. Alguns desses valores e condições estão implícitos nas seis regras pelas quais Bobbio especifica sua definição “mínima”.
A primeira regra dispõe que “todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade etária, sem distinção de raça, religião, condição econômica, sexo, devem gozar de direitos políticos, isto é, cada um deles deve gozar do direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a expresse por ele”. A segunda regra estabelece que “o voto de todos os cidadãos deve ter igual peso”.
Nessas duas primeiras regras sobressai o valor da igualdade tanto na inclusão do maior número de pessoas no processo de formação das decisões coletivas quanto na atribuição de igual importância ao voto de cada uma delas.
Na terceira regra, Bobbio afirma que “todos aqueles que gozam dos direitos políticos devem ser livres para poder votar segundo sua própria opinião, formada, ao máximo possível, livremente, isto é, em livre disputa entre grupos políticos organizados em concorrência entre si”. Conforme a quarta regra, todos “devem ser livres também no sentido de que devem ser colocados em condições de escolher entre diferentes soluções, isto é, entre partidos que tenham programas distintos e alternativos”.
Nessas duas regras sobressai o valor da liberdade tanto no sentido de que a opinião política de cada um deve poder se formar livremente, sem distorções (daí o necessário pluralismo dos e nos meios de informação), quanto no sentido de que as pessoas devem dispor de alternativas políticas reais, que permitam que elas se identifiquem com alguma orientação política (daí a importância dos diferentes partidos e movimentos políticos).
Na quinta regra Bobbio afirma que, “seja para as eleições, seja para as decisões coletivas, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de que será considerado eleito o candidato ou será considerada válida a decisão que obtiver o maior número de votos”. Essa regra traz um meio que garante a eficiência do processo de decisão coletiva: a regra da maioria, pela qual vence o candidato ou a decisão que obtiver o maior número de votos.
Enfim, a sexta regra da democracia dispõe que “nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar (…) maioria em igualdade de condições” (Teoria Geral da Política).
Esta última regra não se refere, como as outras cinco, ao quem ou ao como do processo de escolha e decisão política. Ela se refere ao quê, ao conteúdo das decisões políticas. E nos permite um comentário final sobre as regras do jogo democrático.
Ao dizer que “nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar (…) maioria”, Bobbio toca num ponto crucial, que é o fato de a democracia ser um regime que permite a alternância pacífica de governos. Nela os conflitos são resolvidos “pela contagem de cabeças”, e não “batendo na cabeça dos que pensam diferente” (Le Basi della Democrazia).
A não violência, para Bobbio, é um princípio fundamental da democracia e a definição “mínima” ou formal trazida acima é justamente uma técnica de convivência destinada a resolver conflitos sociais sem o recurso à violência. Na democracia a violência dá lugar ao compromisso.
Assim, na atual discussão sobre democracia ou ditadura, pode-se afirmar que o regime democrático é preferível ao regime militar não só porque, no Brasil, o exercício da administração pública por militares dá novamente em fracasso, mas também porque, na lógica democrática, “o adversário não é mais um inimigo (que deve ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar” (O Futuro da Democracia).
*Respectivamente, doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela UERJ, coordenador científico do Instituto Norberto Bobbio; e doutor em Direito pela USP e pela Università degli studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio e professor da Facamp