Uma bomba se arma, a da mentalidade autoritária
Quero alertar — sobretudo aos que ora celebram atalhos ao estado de direito — que os precedentes arbitrários estabelecidos pelo STF poderão ser, e serão, usados pelos dois (ao menos) ministros do Supremo indicados por Jair Bolsonaro, ambos decerto terrivelmente bolsonaristas; e que um inquérito sem objeto investigado definido, como o chamado das Fake News, amplo a ponto de impor censura, e que ora se move contra aqueles cujo comportamento desprezamos, tende a ser gatilho para que a perigosa combinação de autoritarismo, ressentimento e revanchismo resulte em descontrole e na multiplicação de canetadas, como a que retirou do ar uma reportagem da revista “Crusoé”.
Uma bomba se arma; a da mentalidade autoritária, que nos dirige desde há muito, aplicada — na prática — a uma estrutura em que o togado seja vítima, investigador, acusador e juiz. Que tal? Se não por amor ao estado de direito, que se projete — por medo, por zelo ao próprio escalpo — o futuro desarranjado desses processos excêntricos. Não fica bonito.
Quero alertar — sobretudo aos que cobram provas do autoritarismo do presidente da República — que Bolsonaro, aquele que tem, segundo confessou, um esquema particular de informações e que trabalha, talvez já com êxito, para que a Polícia Federal lhe sirva como polícia política, comanda um Poder em cujo Ministério da Justiça está montado um sistema de investigação e monitoramento contra policiais, professores e intelectuais críticos do governo; e que o titular dessa pasta, André Mendonça, cotadíssimo para uma cadeira no Supremo, é, antes de tudo, terrivelmente bolsonarista.
Daí por que se pergunte: e quando estiver ao alcance de um André Mendonça — cuja atuação já depredara a advocacia pública, pervertendo a AGU em banca de defesa personalista para Bolsonaro, família e amigos — ser um Alexandre de Moraes? E quando estiver a uma canetada de distância de um Mendonça — talvez também de um Augusto Aras, o procurador-geral do bolsonarismo — ser editor de um país inteiro, conforme Dias Toffoli definiu o papel de ministro do STF?
Toffoli conhece a função do editor. Talvez saiba também qual é a de um ministro do Supremo. Ocorre que escolheu ocupar aquela cadeira para exercitar seus vícios de agente político, não sendo surpreendente que deturpasse o ofício da edição para justificar as exorbitâncias — inclusive as engenharias sociais — promovidas pela corte que preside. Ele tem linha editorial — e essa não é aquela, a única, que deveria regê-lo e limitá-lo: a Constituição Federal.
Ministro de corte constitucional que se enxerga como editor, cedo ou tarde, avança sobre prerrogativas de outros poderes e reescreve a Constituição. E não nos faltam editores nem linhas editoriais disputando terreno no Brasil.
O lavajatismo — o próprio espírito do tempo — está em todos os espaços em que se exerça poder. É a força dominante entre nós. Em resumo: aquela que, modelando as leis e os ritos para além das margens do estado de direito, justifica-se porque, afinal, para deter os que consideramos bandidos — o objetivo virtuoso legitimando o caminho. Então, claro: para combater as ameaças de um projeto de poder autoritário, respostas autoritárias. E, de puxadinho em puxadinho jurídico, vemos se erguer o edifício da insegurança; ali onde bandido — a depender do editor — logo pode virar sinônimo de inimigo… O fetiche do combate à corrupção pode sair de moda, mas os meios empregados para tocar o combate ficam.
Se um ministro do STF, editor do povo inteiro, avalia que indivíduos ou grupos que atacam a instituição cometem crimes não tipificados nos códigos, por que não tipificá-los no ato? Obra em construção. Por que não lhes bloquear as contas em redes sociais — por que não a censura prévia — para se precaver contra as calúnias, injúrias e difamações que poderão praticar?
Sergio Moro, aquele que simboliza o lavajatismo (mas que não lhe é a única encarnação), também foi — como juiz — um editor. (Alguns maldosos dirão — lembrando a Vaza-Jato — que editor de ficção.) O editor Alexandre de Moraes — é provável — desaprova os métodos da República de Curitiba e decerto tem ressalvas a expedientes exóticos daquela força-tarefa e à linha editorial do doutor Moro; mas é um lavajatista, impregnado pela cultura justiceira que normalizou entre nós que se driblem procedimentos (que protegem garantias individuais) e se saltem as leis ordinárias para forjar, no caso, um inquérito obscuro destinado a caçar milicianos digitais. Alguém dirá que vale.
Toffoli, presidente do poderoso conglomerado editorial em que se transformou o STF, também é um lavajatista; um de tipo curioso, que odeia a Lava-Jato, operação que quer aterrar (pacote em que inclui o projeto para tornar Moro inelegível), mas lhe absorve a natureza jacobinista.
O cala a boca tinha morrido; mas nem tanto. Alguém dirá que por boa causa.