Agenda progressista depende de conservadores
Aos 31 anos de idade, recém-chegado à Câmara, o primeiro ato do jovem deputado mato-grossense Dante de Oliveira (PMDB) foi apresentar uma proposta de emenda à Constituição visando restaurar as eleições diretas para presidente da República. Sem exercer o poder do voto para escolher o mandatário máximo do país desde 1960, a população logo abraçou a ideia. Comícios se espalharam pelo Brasil, congregando políticos de diferentes partidos, artistas e celebridades – e um número cada vez maior de pessoas.
No fim de janeiro de 1984, o instituto Gallup apurou que 81% dos brasileiros eram favoráveis às eleições diretas para presidente da República. E dez dias antes da data marcada para a votação da emenda na Câmara dos Deputados, quase 2 milhões de pessoas lotaram o Vale do Anhangabaú, em São Paulo, pressionando pelas Diretas-Já.
No dia 25 de abril de 1984, 298 deputados votaram a favor da emenda Dante de Oliveira. O sonho do retorno imediato das eleições diretas para presidente, contudo, ruiu por apenas 22 votos. Apesar do amplo apoio popular, a proposta foi derrubada graças à resistência do PDS, partido governista herdeiro da velha Arena que apoiava o regime militar: 65 de seus membros votaram “não” e outros 113 se abstiveram ou simplesmente faltaram à sessão de votação.
Com a derrota da emenda Dante de Oliveira, o ciclo autoritário teve que ser encerrado por vias indiretas. No dia 15 de janeiro de 1985, reunidos no Colégio Eleitoral, senadores, deputados federais e delegados estaduais deram a presidência ao mineiro Tancredo Neves (PMDB), que superou Paulo Maluf (PDS) por 480 a 180 votos.
A eleição de Tancredo diz muito sobre o modo de se fazer política no Brasil. Enquanto setores progressistas da sociedade pediam Diretas-Já, o então governador de Minas costurava nos bastidores uma transição mais gradual com as elites partidárias, econômicas e militares de então. Autointitulado um reformista, colocou-se como uma garantia contra os “revolucionários” liderados por Ulysses Guimarães. Fazendo acenos a quem lutava há décadas contra a ditadura, mas principalmente para aqueles que estavam cansados de apoiá-la, Tancredo comandou a transição para a democracia.
Lula demorou um pouco mais para entender essa mensagem. Depois de ver seu discurso radical ser derrotado por três vezes seguidas, só chegou à Presidência quando garantiu em papel passado sua versão mais moderada. Uma vez no Palácio do Planalto, não apenas seguiu à risca as promessas da Carta ao Povo Brasileiro, como tratou de alargar – por meios lícitos e ilícitos – seu apoio no Congresso. No fim do primeiro ano de mandato, apenas quatro partidos estavam oficialmente fora da sua base de governo: PSDB, PFL (hoje DEM), PDT e Prona.
A associação do PT e do PCdoB com partidos conservadores permitiu a Lula – e depois a Dilma, pelo menos em sua fase I – aprovar uma pauta progressista em diversos campos. Tome-se o caso da criação do Fundeb. A sua primeira versão, aprovada no final de 2006, foi elaborada (quem diria?) por Valdemar Costa Neto, e além da relatoria exercida pela petista Iara Bernardi, contou com a colaboração decisiva de ninguém mais, ninguém menos que Eduardo Cunha.
Quase 14 anos depois, a Câmara dos Deputados acaba de aprovar a transformação do Fundeb em instrumento permanente de financiamento da educação pública. A demanda por garantir mais recursos para o ensino básico mobilizou sindicatos de professores, secretários estaduais e municipais de educação, entidades estudantis, organizações da sociedade civil e partidos de esquerda durante toda a tramitação legislativa, mas é preciso reconhecer que a aprovação da PEC nº 15/2015 só foi possível com a entrada em campo de políticos de centro e de direita – sob a liderança do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e da relatora, Professora Dorinha (ambos do DEM).
A sociedade brasileira é conservadora e o Congresso ainda mais – há um emaranhado de regras partidárias e eleitorais que acabam favorecendo a eleição de candidatos avessos a mudanças, principalmente sociais. O sucesso da votação quase unânime do Fundeb – apenas uma meia dúzia de gatos pingados bolsonaristas votaram contra – ensina que, no Brasil, construir alianças com a representação dos setores mais conservadores no Congresso Nacional é condição fundamental para a aprovação de qualquer item da agenda progressista.
Infelizmente ainda são maioria, principalmente na esquerda, os puristas e radicais que rejeitam qualquer estratégia de composição com políticos “do outro lado”. Demonizando alianças eventuais com “inimigos”, preferem o conforto de pregar para convertidos, pescando votos nos seus próprios aquários enquanto sonham com uma vitória nas próximas eleições.
Mesmo com o ativismo das bancadas BBB – bala, boi e bíblia -, há um grande espaço para a aprovação de reformas sociais e econômicas no Congresso atual. Entre ambientalistas e ruralistas existe um amplo espectro de parlamentares que podem ser convencidos de medidas a favor da sustentabilidade. Mas para convencê-los, é preciso deixar o radicalismo de lado e negociar de forma desarmada, abrindo espaço para contrapropostas.
Passado o choque inicial da pandemia, que exigiu medidas emergenciais e um esforço fiscal gigantesco, uma ampla agenda de reformas econômicas e sociais se faz necessária para lidar com o efeito devastador do mundo pós-covid. O Congresso se prepara para discutir as reformas tributária e administrativa, ao mesmo tempo que setores relevantes da sociedade se articulam para discutir propostas de uma renda básica universal e uma nova economia de “carbono zero”.
Apesar de todo o conservadorismo do governo Bolsonaro, é possível construir pontes e estabelecer diálogos em direção a um sistema tributário menos regressivo, um meio ambiente sustentável e gastos públicos focados nos mais pobres mesmo antes das eleições de 2022.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”