RPD || Reportagem especial: Pandemia expõe alerta sobre saúde mental dos brasileiros

Estudos mostram aumento de casos de depressão e ansiedade. Especialistas apontam saídas em meio à crise sanitária global.
Foto: Ailton de Freitas
Foto: Ailton de Freitas

Estudos mostram aumento de casos de depressão e ansiedade. Especialistas apontam saídas em meio à crise sanitária global

Cleomar Almeida

A servidora pública Eliana Ramagem (50 anos) estava prestes a parar de tomar remédio para ansiedade, mas teve de continuar por causa da pandemia do coronavírus. “A preocupação era que eu tivesse colapso”, diz. De repente, o empresário Alexander Loureiro (47) viu sua renda zerar. A vida paralisou e ele também teve de procurar ajuda profissional para lidar com o período da crise sanitária global. “Tomo ansiolítico, senão a cabeça dá uma pirada, estava muito acelerada. Não dormia, ficava preocupado. Chegava às 5 ou 6 horas da manhã, eu ainda estava acordado”, conta ele.

Moradores de Brasília, Eliana e Loureiro não se conhecem, mas têm em comum o alerta lançado pela pandemia: a necessidade de cuidado com a saúde mental. Na dimensão da crise sanitária global, o traumático se traduz em prejuízos imediatos à mente das pessoas. Seus efeitos podem surgir em médios e longos prazos, em um aumento significativo de transtornos como estresse agudo e estresse pós-traumático, ansiedade, pânico, depressão, distúrbios do sono e até suicídio. No Brasil, a cada 45 minutos, uma pessoa se mata.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima aumento de até três vezes no número de pessoas com depressão e ansiedade em países mais atingidos pela pandemia. Estudo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), divulgado em maio, mostra que o número desses casos mais que dobrou durante a pandemia no país, ao passo que o número de casos de depressão teve aumento de 90%.

O levantamento aponta que as mulheres são mais propensas a sofrer com esses transtornos por causa da sobrecarga de tarefas. Outra pesquisa, realizada pela americana Kaiser Family Foundation, revela que 53% delas declararam ter sofrido muito abalo emocional com a pandemia, ao passo que 37% dos homens apresentaram a mesma queixa.

Assim como a maioria das mulheres, Eliana, que é graduada em Psicologia, assume multitarefas. Separada, ela vive com os dois filhos – um rapaz de 18 anos e uma moça de 23 anos – e a mãe, uma idosa de 87 anos que passou por uma cirurgia de retirada de tumor no cérebro no ano passado e de quem cuida com auxílio de enfermeira em casa. “Tomo conta dos meus filhos, sozinha, há anos. Nesse momento da pandemia, boa parte das mulheres tem sobrecarga, com trabalho home office, cuidado com filhos e tarefas domésticas”, conta.

Já no caso de Loureiro, o maior reflexo da pandemia surgiu ao ver zerado o caixa de seus dois estabelecimentos de self-service dentro de shoppings da cidade, que tiveram de ser fechados por causa do isolamento social. Até agora, a metade dos funcionários foi demitida, o que, segundo ele, aprofundou a tristeza. “Não consegui estar à frente nesse momento de demissão de funcionários e jogá-los no mercado, que não tem condições de absorver ninguém”, afirma. A dispensa foi feita pelo sócio. “No primeiro momento, tive todos os sentimentos: desespero, ansiedade, angústia. Não vejo ainda luz no fim do túnel diante da generalização de desgoverno”, lamenta.

Os impactos da pandemia sobre a saúde mental são ainda maiores e mais catastróficos entre as pessoas de baixa renda. Sem atendimento de saúde adequado, muitas ficaram desempregadas e não têm o básico para comer em casa. Para outra parte, a saída que resta é romper o isolamento social e se misturar a outras pessoas para ir trabalhar em ônibus lotados. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou, no final do mês de junho, que a pandemia destruiu 7,8 milhões de postos de trabalho no Brasil até maio. Menos da metade das pessoas em idade para trabalhar está empregada, o que nunca havia sido registrado desde 2012.

O levantamento aponta que as mulheres são mais propensas a sofrer com esses transtornos por causa da sobrecarga de tarefas. Outra pesquisa, realizada pela americana Kaiser Family Foundation, revela que 53% delas declararam ter sofrido muito abalo emocional com a pandemia, ao passo que 37% dos homens apresentaram a mesma queixa.

Membro da Sociedade de Psicanálise de Brasília e da Federação Brasileira de Psicanálise, a psicanalista Cláudia Aparecida Carneiro explica que a pandemia lançou uma realidade sem referências na vida das pessoas. “O medo é comum em momentos de crise em saúde pública, mas a velocidade de propagação desse novo vírus, a necessidade de isolamento social, as milhares de mortes no Brasil e no mundo, os enterros sem velórios e sem abraços, as valas comuns, tudo isso representa vivências traumáticas que levam ao adoecimento da alma”, afirma. “O trauma se instala quando a intensidade e a violência de um acontecimento vivido invadem o psiquismo e sobrepõem-se à nossa capacidade de pensar e de elaborar essa experiência”, explica.

Cláudia, que também é mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB), entende que “os ataques à vida estimulados por um presidente identificado com a necropolítica geram clima de insegurança e angústias traumáticas”. “A morte paira no ar”, afirma, ressaltando que, diante da angústia de morte e das incertezas quanto ao futuro, a ansiedade e o pânico assumem também a forma de pandemia. Segundo ela, a exacerbação da violência no país, associada à crise política e econômica, traz maiores prejuízos à saúde mental das pessoas.

O cuidado com a saúde da mente deve ser contínuo, não só durante a pandemia. O alerta é de um estudo sobre os efeitos da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), provocada pelo coronavírus em 2002 e 2003, na Ásia, realizado pela revista especializada East Asian Arch Psychiatry. A pesquisa mostrou que, depois de 4 anos, 42% das pessoas que sobreviveram à doença haviam desenvolvido algum transtorno mental. A maioria apresentou transtorno de estresse pós-traumático e, em segundo lugar, depressão.

Em casos mais graves, os quadros também podem evoluir para o suicídio. Diversos estudos, como o publicado no Journal of the American Medical Association – Psychiatry, em abril, mostram que os efeitos colaterais das medidas necessárias de isolamento social em razão da Covid-19 podem aumentar o risco de suicídio. Fatores como o estresse causado por desemprego e as incertezas sobre a própria subsistência, o isolamento e a solidão, assim como o aumento da ansiedade podem agravar a saúde mental de pessoas mais vulneráveis e o risco de tirar a própria vida.

O psiquiatra André de Mattos Salles diz que, em 90% dos casos, o suicídio pode estar relacionado a transtornos mentais. “A ajuda profissional é fundamental. Quando a pessoa perceber que não está se sentindo bem e achar que o médico precisa ser consultado, não precisa pensar duas vezes”, diz. “Ainda existe um tabu muito grande, mas a Psiquiatria está cada vez mais inserida na sociedade atual”, afirma.

Apesar de não ter depressão, a servidora pública Eliana sabe que, até 2030, a doença passará a ser a primeira a atingir pessoas e afastá-las do trabalho, conforme previsão da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ela toma pequena dosagem de ansiolítico, mas, para passar o período da pandemia, valoriza ainda mais o contato com a família. “Assumi os cuidados com minha mãe bastante consciente, o que tem seus ganhos. A convivência com meus filhos é ótima. Em casa, ficamos mais próximos”, diz.

Loureiro, por sua vez, diz encontrar muito apoio em seu companheiro, que é de outro ramo no mercado, tem socorrido a renda da casa e com quem tem 22 anos de história – três deles casados no civil. Neste mês, ele vai lançar um novo negócio, focado em comida latina e serviço de entrega no endereço dos clientes. Ele reconhece que nem todas as pessoas têm apoio familiar, conjugal ou psicológico, mas, apesar de dizer que ainda está “tudo nebuloso”, sugere a elas muita força e resiliência para superar esse período. “Vale a pena a gente virar e viver o dia seguinte. É o dia seguinte que pode surpreender a gente”, diz.


Lidar com luto e esperança é o grande desafio para equilíbrio

A atenção cada vez maior ao próprio comportamento e ao comportamento das pessoas próximas é fundamental para o cuidado com a saúde mental. No período de agravamento da pandemia, com um ciclo de vidas perdidas constantemente, a morte torna mais presente e profundo o sentimento de luto, mas especialistas entendem que é preciso aproveitar o momento também para acreditar na esperança.

Com a pandemia, ampla rede de psicólogos, psicanalistas e psiquiatras passou a oferecer atendimento online em todo o país. Redes de atendimento solidário foram criadas para possibilitar que pessoas mais vulneráveis possam ser beneficiadas. Sociedades e grupos psicanalíticos filiados à Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi) lançaram, em quase todas as capitais do país, serviços de atendimento online gratuito.

O médico psiquiatra André Russowsky Brunoni, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), explica que episódios de aumento de transtornos mentais já haviam ficado evidentes na população em epidemias passadas como as do ebola, na África, em 2014; a Sars, na China, em 2002; e a Mers, em 2012, no Oriente Médio.

“As amostras de estudos dessas doenças foram relativamente pequenas, restritas a indivíduos de risco e com medidas parciais de quarentena, situação diferente da que ocorre na pandemia de Covid-19”, diz. Recentemente, um artigo publicado na revista científica The Lancet, a partir de uma pesquisa realizada em 164 cidades chinesas observou que de 8% a 29% das pessoas que viveram a pandemia de Covid-19 descreveram sintomas moderados a graves de depressão, ansiedade e estresse.
Brunoni coordena uma pesquisa da USP que, desde maio, recebe respostas de pessoas a questionários para identificar mudanças que tiveram que fazer em seu estilo de vida durante a pandemia. O Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa) pretende avaliar repercussões psiquiátricas e psicológicas decorrentes da pandemia do coronavírus. A pesquisa alcança 15 mil funcionários de seis instituições públicas de Ensino Superior e pesquisa das regiões Nordeste, Sul e Sudeste do Brasil.

Risco de suicídio – O contexto de crise sanitária global também pode deixar as pessoas mais suscetíveis a dar fim à própria vida, mas, conforme ressaltam os profissionais, é possível acreditar em uma luz no final do túnel. No Brasil, o número de suicídios ultrapassa 13,4 mil casos por ano, o que equivale a 37 casos por dia. Os dados são de 2018, os mais atuais disponibilizados pelo Ministério da Saúde. Para cada morte por suicídio, 135 pessoas em média são impactadas diretamente. Em 2017, foram 13,1 mil casos e, em 2016, 12 mil.

A psicanalista Cláudia Aparecida Carneiro explica que ainda há muito tabu sobre o assunto. “Sabe-se que os dados são subnotificados, pois há muito preconceito sobre o tema. O que ocorre, em situações de pandemias e também de isolamento e quarentena é um aumento na ideia e no comportamento de suicídio entre as populações de risco”, acentua.
Em todo o mundo, estudos mostram que o aumento do desemprego, uma realidade na pandemia do coronavírus, está associado ao aumento do número de suicídios. Recentemente, a revista The Lancet revelou que o risco de suicídio aumentou em até 30% quando associado ao desemprego, entre 2000 e 2011, incluindo o período da crise financeira de 2008. Os pesquisadores utilizaram dados de 63 países.

Somado à previsão da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de um aumento no número global de desempregados de quase 25 milhões em consequência da crise econômica e trabalhista gerada pela pandemia, o prognóstico é preocupante, conforme avalia a Dra. Cláudia.

Cada suicídio é acompanhado de mais de 20 tentativas de suicídio, segundo a OMS, o que leva a prever aumento no número de pessoas com transtornos mentais que procurem os serviços de saúde mental. “Falar das próprias angústias em contextos adequados e debater sobre o suicídio são iniciativas importantes para preveni-lo”, destaca a Dra. Cláudia. “Precisamos falar do medo e da morte, fazer o luto de nossas perdas e também falar da esperança”, ressalta.


O comportamento diferente de criança exige atenção redobrada

Comportamentos com tendência ao suicídio podem mudar conforme a idade das pessoas. Enquanto a maioria dos adultos consegue elaborar seus pensamentos e expressar suas atitudes de alguma maneira, inclusive pelo silêncio excessivo e pela mudança de hábitos, as crianças podem ficar confusas. Por isso, muitas vezes, mostram seu sofrimento e desconforto de forma diferenciada.

“Normalmente, as crianças podem ficar mais irritadas, mais agressivas, mais intolerantes. Ter comportamentos externalizantes, brigar, bater, morder. Algumas voltam a usar chupeta ou fralda, ou a ter diurese”, afirma o psiquiatra André de Mattos Salles, especialista em Psiquiatria da Infância e Adolescência, que também atende no Hospital Universitário de Brasília (HUB) da Universidade de Brasília (UnB) e no Centro de Orientação Médico-Psicopedagógica (COMPP), vinculado à Secretaria de Saúde do Governo do Distrito Federal.

Somente em 2019, o Brasil instituiu a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, por meio da Lei 13.819, de 26 de abril de 2019. A lei foi regulamentada em fevereiro deste ano, pelo Decreto 10.225, que institui o Comitê Gestor dessa política. A lei, que recebeu o nome de Vovó Rose – em homenagem a uma senhora que perdeu uma neta e se tornou militante pela aprovação – estabelece também treinamento para educadores e conselheiros tutelares, campanhas de prevenção de suicídio e a implantação de um número de telefone especializado.

A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, disse que as estimativas de automutilações chegam a 14 milhões de jovens no Brasil. A declaração ocorreu durante evento público em Goiânia, no mês passado. Conselheiros tutelares afirmam que falta estrutura para que a lei se torne eficaz, já que, conforme reclamam, os municípios não oferecem estrutura necessária para o atendimento. Em todo o mundo, estudos apontam que cerca de 20% dos adolescentes já se automutilaram pelo menos uma vez na vida.

A ajuda de profissionais, como médicos e terapeutas, é um caminho capaz de salvar vidas nesses casos, que podem se agravar em períodos de isolamento social. O conselho é não ter vergonha e buscar por socorro antes que a situação se agrave, saia do controle e chegue a um final trágico.

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