Não cabe ao Senado desacatar uma decisão do STF. O caso do senador tucano Aécio Neves, que coloca em xeque uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e ameaça o país com uma crise institucional grave, é consequência de um embate que vem se desenvolvendo desde o julgamento do mensalão em 2011, às vezes sub-reptício, às vezes escancarado.
Naquela ocasião, vários políticos do governo em exercício e empresários foram condenados e presos, fato raro na História do país que deu início a um novo paradigma de interpretação da legislação penal e da própria Constituição.
Essa disputa de interpretações tem levado o Congresso a diversas tentativas de legislar em causa própria, para refrear o ímpeto dos investigadores, especialmente os procuradores de Curitiba — berço da Operação Lava-Jato, que se espalhou por vários pontos do país encontrando eco generalizado no Ministério Público e em juízes como Sergio Moro, de Curitiba, o juiz natural do caso, Marcelo Bretas, do Rio, ou Vallisney de Souza, de Brasília.
O Brasil vive uma disputa entre os que querem usar a lei para punir as ilegalidades que ocorrem há anos — e nos levaram à situação de degradação político-social em que nos encontramos —, e os que, a pretexto de defender o estado de direito, acabam, com a interpretação restrita da lei, alimentando a percepção da sociedade de que a impunidade é a marca da Justiça brasileira.
A legislação basicamente é a mesma, o que está mudando é sua interpretação. O falecido ministro do Supremo Carlos Alberto Direito cunhou a expressão “jurisprudência evolutiva”, que explica o que está acontecendo: para os tempos atuais, já não servem mais os critérios adotados até então, que, aliás, nos levaram aonde estamos. Uma marca registrada do sistema jurídico nacional era a possibilidade de escapar de uma punição com os vários recursos existentes.
A decisão recente do STF de permitir a prisão depois de uma condenação em segunda instância trouxe um ar renovador para um ambiente jurídico envelhecido, e não é por acaso que já existem dentro do próprio STF movimentos para reverter essa decisão, que tem sido fundamental para barrar a impunidade e, por isso mesmo, incomoda os que não eram expostos à ação da Justiça e agora temem simplesmente ir para a cadeia, situação inimaginável anteriormente.
A prisão preventiva também passou a ser utilizada para impedir a ação do condenado de obstrução da Justiça, especialmente quando ele é poderoso, pelo cargo que exerce ou pela situação social. Desde o mensalão, a interpretação da lei passou a ser feita com o objetivo de punir, e não mais de ser benevolente com os que tinham poder, dinheiro, ou capacidade de influência.
A partir da Lava-Jato, essa situação foi exacerbada, e agora vão para prisão o político, o empresário, o ex-ministro e quem mais tiver de ir. Os antes beneficiados estão revoltados, porque nunca estiveram ao alcance desse tipo de ação na Justiça. Não foi outra a intenção dos que, no Congresso, queriam punir o chamado “crime de hermenêutica”, ou seja, a possibilidade de criminalizar a interpretação que um juiz dê a determinado fato do processo.
No caso dos parlamentares, por exemplo, a interpretação usual da norma constitucional era que só se podia prendê-los em flagrante por crime inafiançável. E, por isso, nunca acontecia nada. O sociólogo e jurista alemão Niklas Luhmann, um dos maiores intérpretes das teorias sociais do século XX, considerava que, para ser efetiva, qualquer medida dependia de três fatores: a tomada de decisão, a implementação dessa decisão e a consequente paz social que ela geraria.
É o caso atual, uma decisão da Primeira Turma do Supremo que corrobora uma anterior, do relator da Lava-Jato, Edson Fachin, derrubada por uma medida monocrática do ministro Marco Aurélio Mello. Como a Constituição trata de prisão de parlamentares, mas não garante a eles a impunidade, a decisão não fere a Constituição, pois a punição dada ao senador foi uma pena alternativa à prisão, que consta como do novo Código de Processo Penal.
Não cabe ao Senado desacatar uma decisão do Supremo, mesmo que alguns ministros do próprio STF, estranhamente, venham a público defender que a decisão majoritária da Primeira Turma deve ser contestada como inconstitucional.
E a paz social só será alcançada se a sociedade passar a acreditar que a lei é para todos.