Presidente, que diz ter contraído a doença, mas não mostrou exame, transforma contágio em oportunidade para promover cloroquina. Em nota, presidente argentino ironiza colega brasileiro
Afonso Benites, El País
Jair Bolsonaro, o líder mais negacionista da pandemia no mundo democrático, está disposto a transformar o contágio pelo novo coronavírus – ele disse nesta terça-feira ter testado positivo para a doença – em um veículo de propaganda para a suas ideias a respeito da covid-19. O mandatário brasileiro seguiu insistindo que a infecção pelo novo vírus só é perigosa para idosos e pessoas com doenças prévias, e horas depois do anúncio, postou nas redes sociais um vídeo tomando a hidroxicloroquina, o remédio originalmente para artrite e lúpus que ele defende como capaz de curar a doença, apesar de admitir que não há comprovação científica para tal.
“Estou tomando aqui a terceira dose de hidroxicloroquina. Estou me sentindo muito bem. Estava mais ou menos domingo, mal segunda-feira. Hoje, terça-feira, estou muito melhor do que sábado. Então, com toda certeza, está dando certo”, disse, em vídeo postado no Facebook. “Eu confio na hidroxicloroquina e você?”, arrematou ele, que, como Donald Trump, tem defendido o medicamento em embates até com as próprias autoridades sanitárias de seus países. O Ministério da Saúde brasileiro, sob pressão de Bolsonaro, ampliou o uso da cloroquina no país, embora a OMS (Organização Mundial de Saúde) ainda espere resultados de estudos em larga escala para indicar o remédio como tratamento oficial na pandemia. Nos EUA, o FDA, órgão que regula as ações de saúde, revogou a autorização para a utilização deles nos hospitais do país por considerar “improvável” os efeitos das duas drogas contra a doença.
Bolsonaro, de 65 anos, parece disposto a acomodar seu discurso de minimização sobre a doença com a atual situação de contagiado. O cenário está longe de ser cômodo, em um país que está há quase dois meses sem ministro da Saúde e investe pesadamente na produção de cloroquina. Apesar de o presidente pregar a reabertura da economia e criticar as medidas de isolamento, o Brasil está longe de ter controlado a doença em todo o gigantesco território do país: a covil-19 já matou mais de 66.000 pessoas no Brasil. Se dá sinais de estabilização em São Paulo, por exemplo, ainda está em franca expansão justamente no Centro-Oeste, região onde fica Brasília, a capital federal, e por onde o presidente sempre circulou sem qualquer respeito às medidas de isolamento social.
É por isso que o contágio declarado de Bolsonaro pode ter atingido dezenas de pessoas. Dias antes de ser diagnosticado com a covid-19, o presidente da República se reuniu cara a cara com pelo menos 76 pessoas desde o dia 29 de junho. O período em que uma pessoa que está com a doença pode transmiti-la é de dois a seis dias antes do início dos sintomas, conforme dois médicos infectologistas consultados pela reportagem.
O presidente registrou indisposição, febre e tosse no domingo, dia 5. Se levar em conta dois dias antes o número de pessoas que se reuniram com o mandatário chega a 44. Os dados constam da agenda oficial do presidente, de imagens registradas por sua equipe de comunicação nesses encontros e das transmissões ao vivo que ele próprio fez em seus perfis nas redes sociais.
Ainda assim, o levantamento está subestimado, já que em várias das reuniões consta o nome de apenas uma pessoa, mas havia várias outras estavam presentes. Por exemplo, no dia 30 de junho, o encontro oficial foi com o presidente do time de futebol Palmeiras, Maurício Galiote. Mas é possível notar nas fotos publicadas pelo Palácio do Planalto dirigentes de ao menos mais oito clubes brasileiros. O mesmo ocorreu no encontro com o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Paulo Skaf. Há outras 11 pessoas que não foram nominadas na reunião. As que aparecem nas imagens oficiais é possível contabilizar. As demais, não.
Também não estão neste levantamento os familiares do presidente, as dezenas de apoiadores com quem ele se encontrou nos jardins do Palácio da Alvorada ao longo da semana ou os espectadores da cerimônia de ampliação no auxílio emergencial no dia 30 de junho, tampouco seus seguranças e funcionários que o acompanham no dia a dia ou os militares que estiveram no sobrevoo que fez no sábado passado em Santa Catarina.
Entre os dias 29 de junho e 7 de julho, quando confirmou que estava com covid-19, o presidente se encontrou com ministros, empresários, parlamentares, diplomatas, dirigente de clube de futebol, a vice-governadora de Santa Catarina, Daniela Reinehr, e o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Paulo Skaf. Em algumas dessas reuniões, Bolsonaro cumprimentou as pessoas normalmente, as abraçou e tirou fotos. Uma delas foi no encontro que teve com o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Todd Chapman, no dia 4 de julho, para comemorar a independência norte-americana.
Nesta terça-feira, ao anunciar para três emissoras de TV que estava infectado, Bolsonaro se afastou dos repórteres e cinegrafistas e retirou a máscara para que mostrassem o seu rosto e demonstrar que ele estava “muito bem”, segundo suas palavras. No momento em que fez esse anúncio, o Brasil registrava 1,6 milhão de infectados por coronavírus e 65.487 óbitos. Os dados são do Ministério da Saúde.
Depois que o presidente divulgou o resultado de seu exame, várias dessas pessoas informaram que também foram testadas, nenhuma delas informou se também contraiu a doença. “A recomendação é que só faça o teste quem apresentar os sintomas. Caso contrário, há chance de apresentar falso negativo”, disse a infectologista Rosana Paiva.
No meio político nacional e internacional, a reação ao exame do presidente foi imediata. Em mensagem irônica, o presidente da Argentina, Alberto Fernandéz, enviou uma nota de pesar a Bolsonaro. No documento, ele deseja pronto restabelecimento ao colega brasileiro. “Este vírus não distingue entre governantes e governados. Todos e todas estamos ameaçados e por isso os cuidados devem ser redobrados”, dizia trecho do documento. Por ser peronista, Fernandez é considerado um opositor por Bolsonaro.
Os opositores do presidente ressaltaram que a atitude negacionista dele e ao não respeitar o distanciamento social acabaram resultando em seu contágio. “Bolsonaro promoveu aglomerações. Vetou a obrigatoriedade das máscaras. Minimizou os efeitos da covid-19 diante de mais de 65 mil mortos. Hoje, após anúncio de seu teste positivo, tirou a máscara e expôs os jornalistas. De tão aliado do coronavírus, Bolsonaro e ele viraram um só”, criticou o líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (REDE-AP), em sua conta no Twitter.
Derrotado no segundo turno da eleição presidencial de 2018, o petista Fernando Haddad, também comentou o tema pelas redes sociais. “Lamento pelos mais de 1,6 milhão de infectados e pelo fato de termos entre nós o pior gestor de crise do mundo. Desejo que todos se restabeleçam, inclusive Bolsonaro”.
O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, afinou o discurso com seu pai sobre o uso da hidroxicloroquina, mesmo que não haja provas de que o medicamento funcione no combate à doença. “O presidente há de sair dessa, o tratamento com cloroquina é bastante eficaz no início da doença (e deveria estar disponível para todo brasileiro que necessitar)”, afirmou em seu Twitter.