Descuido na redação da PEC deixou de excluir operação do BC do teto de gastos
Durante a atual situação de calamidade pública decretada pelo Congresso Nacional, em virtude da pandemia de covid-19, o Banco Central terá um poder muito grande de intervenção nos mercados. Por meio da emenda constitucional 106, promulgada em maio desse ano, o BC foi autorizado a comprar e a vender títulos de emissão do Tesouro, nos mercados secundários local e internacional, e os ativos, em mercados secundários nacionais no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos.
Na aquisição dos ativos, o BC dará preferência aos títulos emitidos por microempresas e por pequenas e médias empresas. A única condição é que os ativos tenham classificação em categoria de risco de crédito no mercado local equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos uma das três maiores agências internacionais de classificação de risco e preço de referência publicada por entidade do mercado financeiro credenciada pelo BC.
O objetivo de todo esse poder que os representantes do povo brasileiro deram ao BC foi para que ele evite uma depressão econômica no Brasil, adotando uma política monetária flexível que, durante a monumental crise financeira de 2008/2009 ficou conhecida como QE – sigla para o termo em inglês “Quantitative Easing”.
Como, naquela crise, a taxa de juros nos países desenvolvidos já estava próxima a zero (negativa, em termos reais), o uso dos juros pelos Bancos Centrais para regular a atividade econômica já não tinha efeito. Alguns deles passaram, então, a comprar grande quantidade de títulos bancários no mercado financeiro e de capitais e de títulos dos seus próprios governos negociados no mercado secundário. Por meio desse mecanismo, os BCs injetaram uma quantidade imensa de moeda na economia, evitando, com isso, uma depressão mundial.
Com a EC 106, o Congresso Nacional deu poderes ao BC para que faça o mesmo, se isso for necessário, para evitar que a economia brasileira entre em depressão. O problema é que, da forma como está sendo operacionalizada, a política do QE tupiniquim ficou limitada.
Quando anunciou as regras e diretrizes do seu programa de compras, o BC informou que as aquisições de títulos privados teriam impacto no resultado fiscal primário. Cada compra elevaria o déficit deste ano e a venda reduziria o déficit. A tese apresentada pelo BC foi que a compra de ativo privado afeta a dívida líquida do setor público (DLSP) e, portanto, o resultado primário.
A dificuldade da tese do BC é que uma despesa primária precisa transitar pelo Orçamento da União, pois um gasto não pode ser executado sem que esteja autorizado pela lei orçamentária. Assim, o governo teria que enviar ao Congresso um pedido de crédito suplementar ao Orçamento para acomodar a despesa com a compra de títulos privados pelo BC, informaram fontes governamentais ao Valor.
A questão é que uma despesa primária está, necessariamente, submetida ao teto de gastos da União, a menos que tenha sido excluída do limite por determinação constitucional. Por um descuido de quem redigiu a chamada PEC do Orçamento de Guerra, que deu origem à EC 106, a despesa do BC com a aquisição de títulos privados não foi excluída do teto.
Para contornar esse problema, bastaria que o presidente Jair Bolsonaro editasse uma medida provisória abrindo um crédito extraordinário no Orçamento, acomodando, assim, a despesa do BC. Pela EC 95/2016, que instituiu o teto, os créditos extraordinários estão excluídos do limite da despesa. Mas, na MP, o presidente teria que dizer o valor do crédito e informar como a despesa seria custeada.
Este é um problema sério, advertiu o consultor da Câmara dos Deputados Antônio D’Ávila Carvalho Júnior, em entrevista ao Valor. Ele disse que o Banco Central vai emitir moeda para comprar os títulos privados e observou que esse aumento do passivo (monetário) do BC “não é, conceitual e legalmente, uma receita orçamentária”. Para ele, inserir tal receita no Orçamento seria inconstitucional.
D’Ávila foi um dos auditores do Tribunal de Contas da União (TCU) que investigaram as “pedaladas fiscais” realizadas no governo da ex-presidente Dilma Rousseff. Ele disse que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) determina que apenas as despesas relativas a pessoal e encargos sociais, custeio administrativo e os investimentos do BC devem integrar a lei orçamentária anual.
O consultor afirmou também que o teto de gastos não pode limitar a atuação do Banco Central, quando se trata de emissão de moeda, não interessando se a operação possa ser ou não classificada pelas estatísticas fiscais como despesa primária. Ou seja, a emenda de teto de gastos não tem qualquer influência/limitação/restrição no que tange à política monetária.
D’Ávila discorda da interpretação apresentada pelo Banco Central de que a compra de ativos privados altera a DLSP, ou seja, o resultado primário do setor público. Para ele, os títulos privados a serem adquiridos atendem aos critérios estabelecidos pelas estatísticas fiscais para serem registrados como um ativo na dívida líquida do setor público.
O consultor observou ainda que o BC saberá os valores de mercado dos papéis no momento em que for adquiri-los. “Uma debênture no valor de R$ 1.000 e que seja avaliada como BB- será adquirida, por exemplo, por R$ 200. Essa deverá ser a quantia a ser entregue pelo BC ao detentor do título e esse será o valor do ativo a ser registrado nas estatísticas fiscais”, explicou. Por isso, para ele, não haverá variação na DLSP, ou seja, no resultado primário.
D’Ávila considera que a operação de compra de títulos privados pelo BC é de natureza monetária, deve ficar fora do Orçamento, por mandamento constitucional e não se submete ao teto de gastos, ainda que possa ser classificada pelo BC, em suas estatísticas fiscais, como uma despesa primária.
Enquanto essa questão de contabilidade pública não for solucionada, o BC não poderá comprar títulos privados e o QE tupiniquim estará limitado. Só poderá comprar títulos do Tesouro negociados no mercado secundário.