Desde a retomada das eleições diretas pelo poder civil em 1985 que todos os presidentes eleitos optaram por construir uma ampla coalisão multipartidária no Congresso Nacional para governar. Os motivos eram, e continuam sendo, a fragmentação partidária, a necessidade de reformas constitucionais exigirem quorum qualificado de três quintos e o fato de o partido do Presidente jamais exceder a 20% dos deputados.
A esse método ou sistemática de governar deu-se o nome de “presidencialismo de coalizão”. Isto porque, sinteticamente, em troca dos votos necessários para fazer passar seu programa de governo, o chefe do Executivo deve abrir espaços na administração pública não só para representantes dos partidos que compõem a sua base, mas também ampliar apoios.
Esse modo de governar foi duramente atingido por uma série de escândalos, cujo ápice se deu na operação Lava Jato. Porém, dada a estrutura e dinâmica da política brasileira, permanece impossível governar sem lançar mão dele, à falta de uma ampla reforma política.
O Presidente Jair Bolsonaro decidiu abrir mão do sistema, dispensando a alternativa habitual de uma ampla coalisão multipartidária para governar. Eleito num momento de ampla rejeição da política, dos políticos e dos partidos, entendeu que não deveria alinhar-se com a “velha política” e seus métodos, incluído o “presidencialismo de coalizão”.
Ainda assim, há que governar e entregar o que prometeu, o seu programa de governo, o que só é possível com votos suficientes no parlamento. Como fazê-lo? Emerge então o “presidencialismo de colisão”, cujos alicerces básicos são os seguintes:
(I) proclamar ter o apoio da espada (militares) e do povo (seus seguidores) para constranger o Congresso e o Judiciário;
(II) manter em constante stress os adversários, reais ou imaginários, considerados “inimigos”;
(III) mobilizar continuamente os seus seguidores/apoiadores para pressionar as instituições e adversários;
(IV) e organizar e empregar uma estrutura digital, via redes sociais, para fins de mobilização e ataque a oposição, instituições, mídia e adversários, inclusive com ameaças, como alternativa ao apoio do Congresso, em uma espécie de democracia direta
Esse “presidencialismo de colisão” dá sinais que entrou em colapso, e estão à vista os determinantes do seu esgotamento em tempo mais curto do aquele que o precedeu.
As Forças Armadas se mantêm refratárias a qualquer uso político que se queira fazer delas, sendo impossível acreditar que apoiariam o Presidente em uma aventura autoritária, pois seu compromisso democrático tem se mantido impecável. O emprego das mídias digitais para manter mobilizados seus seguidores, ameaçar adversários, Congresso e Supremo Tribunal Federal foi desarticulado pelos inquéritos em curso na Corte e no Parlamento sobre as chamadas fake-news, e que alcançaram toda a estrutura de financiadores, propagadores e seus robôs, e o “gabinete do ódio”.
Mais além, o “presidencialismo de colisão” teve sua exaustão acelerada pela eclosão da pandemia, dado que os seguidos ataques aos governadores, prefeitos e academia geraram conflitos em série e quase nenhuma coordenação, com as consequências que aí estão em termos de mortes, carências de pessoal e equipamentos.
A exaustão também se verificou na economia, onde o projeto liberal do ministro Paulo Guedes foi paralisado pela crise do coronavírus, com o consequente adiamento da agenda das reformas e a reversão, ainda que provisória, da política de redução do Estado.
Por fim, os inquéritos e investigações em curso que alcançam o Presidente da República e família, tiveram o condão de enfraquecer seu apoio na sociedade, levando a necessidade irônica de organizar uma base parlamentar nos moldes do “presidencialismo de coalizão” – justo ele que o negara – para fins preventivos e defensivos, no caso de um processo de impeachment.
Viu-se assim o presidente da República virar o promotor da volta triunfal da “velha política”, num retorno pela porta dos fundos do loteamento em larga escala, sem seletividade curricular, de cargos na administração para parlamentares visando formar justamente uma ampla coalizão multi-partidária.
Essa guinada apresenta riscos, dentre os quais a perda de parte dos seus fies seguidores de raiz, e a sua nova e improvisada base, alicerçada no Centrão, pouco resistente às pressões decorrentes de uma queda de popularidade.
O colapso do “presidencialismo de colisão”, aponta para o resgate de uma política cujo contorno é menos conflitivo e mais negocial. Mas inexistem evidências de que veio para ficar ou mesmo que mantenha alguma consistência. Até porque, parte dos conflitos provocados pelo Presidente e os processos em curso que o ameaçam estão longe de um desfecho e, pelo potencial corrosivo que detêm, provocarão novas e sucessivas crises.
Estamos, portanto, no fim de um ciclo político caracterizado por um sistema presidencialista que nas suas diversas faces, esgotou-se. Em retrospecto, olhando para os últimos 30 anos, dois impeachments e crises recorrentes, talvez seja o caso de iniciar a discussão e o amadurecimento de uma alternativa real ao que aí está, como o parlamentarismo ou, mais adequado à nossa história e geografia política, o semipresidencialismo.
*Raul Jungmann – ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.